Processo nº 946/2009
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 13 de Outubro de 2011
ASSUNTO:
- Anulação oficiosa do julgamento
SUMÁRIO:
- Nos termos do nº 4 do artº 629º do CPCM, o Tribunal a quem anulará, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na primeira instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta.
O Relator,
Ho Wai Neng
Processo nº 946/2009
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 13 de Outubro de 2011
Recorrente: A (Ré)
Recorrido: B (Autor)
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – Relatório
Por sentença de 24/04/2009, decidiu-se julgar a acção parcialmente procedente, condenando a Ré a pagar ao Autor na quantia de MOP$422.872,80, acrescida de juros de mora à taxa legal a contar desde a citação.
Dessa decisão vem recorrer a Ré, ora recorrente, alegando, em sede de conclusão, o seguinte:
I. Nos termos dos factos provados (1. e 10, 5°, 6.°, 7.° e 12.° da Base Instrutória), os trabalhos adicionais realizados, durante três meses a partir de Fevereiro de 2004, i.e. após a data da conclusão dos trabalhos referidos na alínea I) da matéria de facto assente, são exactamente os trabalhos de fundação necessários à realização da obra que se encontram assinalados no caderno de encargos como 3.ª Fase, aí orçamentados em MOP$48,424.50, e que foram solicitados pela R. ao A. em Março de 2004- a sentença recorrida padece de nulidade, nos termos do art. 571.°, n.º 1, c) do CPC, pois os fundamentos estão em oposição com a decisão.
II. Relativamente à "obra de subempreitada das 1.ª e 2.ª Fases da Obra de Fundações", em que as partes fixaram preços unitários por metro cúbico de solo removido, por metro cúbico de rocha removida, por metro cúbico de cimento ou quilograma de ferro aplicado, e o multiplicaram pelo número de unidades que previam aplicável à obra, à semelhança do que se encontrava fixado no caderno de encargos, o preço assim convencionado era o preço a pagar pela R ao A.; relativamente aos trabalhos adicionais, designados por "obra de subempreitada da 3.ª Fase da Obra Fundações" a R. logrou provar que as mesmas estavam orçamentadas no caderno de encargos pelo preço de MOP$48,424.50 (10.° da Base Instrutória), ou seja, um preço aceite por entidade pública, ou seja, o dono da obra, o Governo da RA.E.M., pelo que, tal é o máximo preço devido pelas referidas obras adicionais- fez-se indevida interpretação e aplicação do art. 873.° do C.C., aplicável "ex vi" art. 1137.º, n.º 1, do C.C.
III. A emissão de facturas pelo subempreiteiro não serve para liquidação do seu crédito e para interpelação ao pagamento se tais facturas nunca foram entregues ao devedor- a decisão faz indevida interpretação e aplicação do art. 794.°, n. ° 1 do C.C.
IV. Mesmo que tivesse havido remessa de tais facturas as mesmas não serviriam para prova do contrato de subempreitada e preço devido pelo mesmo, como documentos unilaterais que são, da autoria sómente do credor, provado que tais facturas estão desconformes com o preço convencionado e orçamentado com aceitação de entidade pública, já que ficou provado que a R. pagou a quantia de MOP$580,000.00, que compreende a totalidade do preço-custo dos trabalhos referidos na alínea K) da matéria de facto assente e dos trabalhos referidos no artigo 1.° (os trabalhos adicionais que o A. executou durante 3 meses) e ainda a quantia de MOP$20,000.00 como custos à composição do solo- a decisão faz indevida interpretação e aplicação dos arts. 400.º, 752.° e 787.° do C.C.
V. O A. alegou que os trabalhos adicionais orçavam em MOP$476,281. e que tinha direito a receber a totalidade do dinheiro mencionado nas facturas emitidas, no montante de MOP$1,022,872.80, mas não o logrou provar, pelo contrário, ficou provado que a R. pagou ao A. a quantia de MOP$580,000.00, totalidade do preço-custo dos trabalhos iniciais e dos trabalhos adicionais de subempreitada, e ainda a quantia de MOP$20,000.00 de custo ao estudo feito à composição do solo. Ainda que este facto não houvesse resultasse provado, porque competia ao A. fazer a prova dos factos constitutivos do direito que invocava, em ordem a ver proceder o seu pedido, cabendo à R. sómente a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado, o pedido formulado pelo A. teria que improceder - a decisão faz indevida interpretação e aplicação do art. 335.° do C.C.
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Por despacho do Mmº titular do processo, de 17/06/2009, foi determinada a prestação da caução por parte da Ré em consequência do recurso jurisdicional por si interposto, no valor da quantia condenada.
Dessa decisão vem recorrer a Ré, ora recorrente, alegando, em sede de conclusão, o seguinte:
I. Notificada a mandatária da parte em processo pendente de despacho para se pronunciar sobre requerimento apresentado para prestação de caução pelo seu representado, tal notificação só pode ser entendida nos exactos termos em que a mesma foi emitida e com o significado que qualquer outro declaratário normal na mesma posição dela extraíria entendimento contrário faria indevida interpretação e aplicação dos art.s 175.°, n.º 3, do CPC e 228.° do CC.
II. Proferido despacho decidindo sobre o incidente de prestação de caução sem que haja sido proferido despacho ordenando a notificação à mandatária da parte requerida para, no prazo de 15 dias, oferecer caução idónea ou contestar o pedido, indicando logo as provas, com a cominação de que a falta de contestação tem efeito cominatório semipleno, nos termos dos artigos 890.°, 891.° e ss., "ex vi" art. 900.°, e art.s 405.° e 406.° do CPC, e sem que tal notificação haja sido feita, verifica-se que ocorre nulidade por falta de citação, ainda que a mesma haja de ser substituída por notificação à mandatária "in casu", nos termos do art. 900.° e 200.°, n.º 1, do CPC- foi feita indevida interpretação e aplicação do art. 140.° do CPC.
III. Porque após a notificação à mandatária da parte no processo pendente para se pronunciar sobre requerimento apresentado para prestação de caução pelo seu representado inexistiu qualquer outra intervenção no processo e o acto seguinte que foi notificado à parte é o despacho de fls. 184 que fixa o valor da caução em MOP$422,872.80, acrescido de juros vencidos desde a citação, calculados à taxa legal até à data em que é efectuada a caução (...), devendo a supra caução ser prestada por meio de depósito em dinheiro, só após tal notificação pode a parte conhecer da acima mencionada nulidade, que se não encontra sanada, porque na seguinte intervenção que teve no processo foi arguida a referida nulidade- entendimento diverso faz indevida interpretação e aplicação dos arts. 142.°, 150.°, n.º 2, e 151.°, n.º 1 do CPC.
IV. Verificada a nulidade prevista no art. 140.°, al. a) 1, do CPC, deve ser considerado nulo o despacho que decide o incidente.
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O Autor respondeu à motivação dos recursos da Ré, nos termos constantes a fls. 196 a 210 e 239 a 246, cujo teores aqui se dão integralmente reproduzido, pugnando pela improcedência dos mesmos.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II – Factos
Foram provados os seguintes factos:
- O A., comerciante em nome individual, é proprietário do estabelecimento denominado "C", em chinês "D" sita em Macau, na Estrada Aldeia, n.º X, Edifício Aldeira Turística, na Ilha de Coloane.
- A qual inclui na sua actividade comercial a execução de obras de fundações e de telhados de prédios e a importação e exportação em geral de máquinas e construção civil.
- No exercício da sua actividade comercial, o A. assinou um contrato de subempreitada com a "A" em 29 de Dezembro de 2003.
- Sociedade esta, que se obriga com a assinatura do seu único administrador, E.
- Pois, a aludida "A" tinha recebido, então, uma obra do Governo da R.A.E.M.: a construção de um edifício para a Universidade de Macau.
- Assim, a Ré, "A" , assinou um contrato de subempreitada com o A., de modo a incumbir este de executar as obras de fundações do prédio universitário pelo preço estimativo de MOP$434,550.00.
- Assim, por solicitação da Ré, deveriam ser efectuados pelo A. as fundações do aludido prédio universitário .
- Tendo sido fixado o prazo dos trabalhos em 40 dias (desde 17/12/03 até 26/01/04).
- O Autor executou os trabalhos mencionados no aludido contrato de subempreitada no prazo de 40 dias.
- O preço inicial de MOP$434,550.00, mencionado no supra-mencionado contrato de subempreitada (doc. n.º 4), era uma simples estimativa do custo das fundações .
- Porém, logo que os trabalhos das fundações tiveram início, ambas as partes concordaram que a supra-referida quantia de MOP$434,550.00 fosse aumentada para MOP$543,892.40, devido as fundações terem sido mais custosas, ou seja, deveria ser as mesmas a 75 metros cúbicos da superfície, contudo teve que fazer as mesmas (as fundações) mais fundas, ou seja, a 192.2 metros cúbicos.
- Após concluídos os trabalhos referidas na alínea I) da matéria de facto assente, o A. executou mais alguns trabalhos durante 3 meses.
- Durante a referida obra, foram emitidas 6 facturas no montante de MOP$1,022,872.80 ora juntos aos autos a fls. 31 a 36, cujo teor aqui se dá integralmente reproduzido.
- A Ré somente liquidou a quantia de MOP$580,000.00, que compreende a totalidade do preço-custo do trabalhos referidos na alínea K) da matéria de facto assente (MOP$543.892,40) e dos trabalhos referidos no artigo lº, e ainda a quantia MOP$20,000.00 como custos do exame à composição do solo.
- A Autora interpelou a Ré, por várias vezes, designadamente através do seu mandatário, para que a mesma procedesse ao pagamento das quantias consideradas em falta, nomeadamente nas datas de 23 de Outubro de 2004 e de 3 de Dezembro de 2004 respectivamente.
- A Ré ao abster-se de proceder ao pagamento voluntário e atempado, obrigou o A. a recorrer às vias judiciais para satisfação do direito que lhe assiste, tendo pago MOP$40,000.00.
- Em Março de 2004, a sociedade R. solicitou ao A. que procedesse a mais alguns trabalhos de fundação necessários à realização da obra que se encontram assinalados no caderno de encargos como 3ª fase, e que aí se encontravam orçamentados em MOP$48,424.50.
III – Fundamentos
Do recurso da sentença final:
Entende a recorrente que o tribunal a quo incorreu em erro de facto ao afirmar que as obras adicionais constituem em duas partes: 1) os trabalhos executados durante três meses após a conclusão das obras inicialmente acordadas (a partir de Fevereiro de 2004); e 2) os trabalhos de fundação necessários à realização da obra que se encontram assinalados no caderno de encargos como 3ª Fase, a solicitação da Ré ao Autor em Março de 2004.
Pois, para a recorrente, o tribunal a quo duplicou os trabalhos, já que na realidade, aqueles dois trabalhos são exactamente os mesmos.
Partindo das próprias alegações da Ré, já podemos concluir desde logo que os trabalhos em causa não podem ser exactamente os mesmos.
A própria Ré admite que as obras adicionais iniciaram em Fevereiro de 2004.
Sendo assim, como é que podem ser iguais às solicitadas em Março?
De qualquer forma, também não nos afigura correcta a afirmação do tribunal a quo no sentido de que que as obras adicionais constituem em duas partes.
Tendo em conta os factos provados, cremos que a segunda parte das obras adicionais deve considerar-se incluída nos trabalhos executados durante três meses pelo Autor.
Quer Autor, quer a Ré, ambos admitem que foram realizadas obras adicionais.
O que divergem são as quantidades dos trabalhos realizados e o respectivo preço.
Nos termos do nº 1 do artº 335º do CCM que “Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”.
Ou seja, incumbe ao Autor este ónus de alegação e de prova.
No caso em apreço, o Autor para sustentar o seu pedido alegou no artº 11º da petição inicial o seguinte:
“... o A. executou trabalhos adicionais, a pedido da Ré, durante 3 meses: fundações e escavações (Docs. Nºs 5 a 16)”
Trata-se duma alegação genérica, sem precisar, no entanto, os trabalhos adicionais concretamente realizados.
Dos documentos nºs 5 a 16 juntos à petição inicial também não resultam de forma clara quais trabalhos adicionais realizados.
O que já não acontece com o documento nº 23 (fls. 37 dos autos), na qual indica com toda a clareza as obras adicionais realizadas e os respectivos preços.
Ora, salvo o devido respeito, entendemos que os factos constantes no referido documento nº 23 no que respeitam aos trabalhos adicionais devem ser levados a cabo para a base instrutória, sem os quais não é possível obter uma boa decisão do mérito da causa.
Como é sabido, para a determinação do preço das obras, o nº 1 do artº 1137º do CCM mandar aplicar as regras previstas no nº 1 do artº 873º do CCM, nos termos do qual “Se o preço não estiver fixado por entidade pública, e as partes o não determinarem nem convencionarem o modo de ele ser determinado, vale como preço contratual o que o vendedor normalmente praticar à data da conclusão do contrato ou, na falta dele, o do mercado no momento do contrato e no lugar em que o comprador deva cumprir; na insuficiência destas regras, o preço é determinado pelo tribunal, segundo juízos de equidade”.
Para que o tribunal possa aplicar as regras de determinação do preço acima referidas, é indispensável apurar, na medida possível, quais são os trabalhos adicionais realizados.
É certo que o Autor não alegou factos suficientes para o efeito.
Contudo, deve o tribunal a quo, no uso do poder previsto no nº 3 do artº 5º do CPCM, acrescentar os factos constantes no referido documento nº 23 que dizem respeito aos trabalhos adicionais na base instrutória, uma vez que esses factos são complemento ou concretização dos factos já alegados pelo Autor.
Nos termos do nº 4 do artº 629º do CPCM, este Tribunal anulará, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na primeira instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta, que é o caso, nos termos acima já expostos.
Nesta conformidade, é de anular o julgamento feito na primeira instância, determinando a repetição do mesmo com a devida ampliação.
Do recurso da decisão da prestação da caução:
Face à anulação do julgamento acima em referência, torna-se inútil apreciar o recurso da decisão da prestação da caução.
IV – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam:
- em anular oficiosamente o julgamento feito na primeira instância, determinando a repetição do mesmo com ampliação nos termos acima consignados; e
- em não conhecer o recurso da decisão da prestação da caução, por inutilidade superveniente.
Custas pela parte vencida a final.
Sem custas para o recurso da decisão da prestação da caução.
Notifique e registe.
RAEM, aos 13 de Outubro de 2011.
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Ho Wai Neng
(Relator)
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José Cândido de Pinho
(Primeiro Juiz-Adjunto)
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Lai Kin Hong
(Segundo Juiz-Adjunto)
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946/2009