ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
I – Relatório
A intentou acção declarativa com processo ordinário contra B, pedindo, além do mais, o seguinte:
a) Que o Autor seja declarado legítimo possuidor da fracção autónoma designada por "XXX", do XX.º andar "X", para habitação, do prédio urbano sito na Praça de Lobo de Ávila, com os n.os XX e XX, inscrito na matriz predial sob o artigo n.º XXXXX, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXX do Livro X-XX;
d) Que seja ainda declarado que o Autor goza, nos termos da lei, do direito de retenção sobre a referida fracção autónoma designada por "XXX".
Quanto ao primeiro pedido [alínea a)], a acção foi julgada procedente; quanto ao segundo [alínea d)], improcedente.
Em recursos interpostos por autor e réu, o Tribunal de Segunda Instância (TSI) negou provimento ao recurso do autor em que pedia o reconhecimento do direito de retenção e concedeu provimento ao último dos recursos, revogando a sentença na parte em que declarou o autor como legítimo possuidor da fracção autónoma em causa e absolvendo o réu quanto a esse pedido.
Inconformado, recorre agora o autor A para este Tribunal de Última Instância (TUI), pedindo a revogação do Acórdão recorrido.
Para tal, formula as seguintes conclusões úteis:
- Resulta do n.º 1 do artigo 325.° do Código Civil de Macau (CCM), que a caducidade só pode ser apreciada oficiosamente em matéria excluída da disponibilidade das partes.
- Tratando-se de matéria na disponibilidade das partes, a caducidade apenas pode ser apreciada oficiosamente quando invocada por aquele a quem aproveita (n.º 2 do normativo supra referido, o qual remete para a aplicação do n.º 1 do artigo 296.º, também do CCM).
- A caducidade tem de ser invocada por aquele a quem aproveita na Contestação, conforme o prescrito no artigo 409.º do Código de Processo Civil (CPC).
- Porém, o ora Recorrido, B, não invocou na Contestação a caducidade do direito do Recorrente em instaurar a acção possessória discutida nos presentes autos.
- Como tal, estava vedado ao Venerando Tribunal a quo, apreciar oficiosamente da caducidade ou não da acção possessória instaurada pelo Recorrente.
- Donde que, o segmento decisório plasmado no douto acórdão recorrido relativamente a esta parte, viola abertamente o disposto no artigo 325.º do CCM, bem como, o disposto no artigo 409.º do CPC, devendo, como tal, ser revogado.
- Acresce que, o douto acórdão recorrido defende expressamente o entendimento de que, caso não se verificasse a caducidade da posse do Recorrente, este teria direito a ver a dita posse reconhecida, bem como o direito de retenção sobre a fracção autónoma em questão, o qual seria oponível ao Recorrido.
- Deste modo, em caso de revogação do douto acórdão do TSI na parte supra referida, salvo melhor opinião, poderá esse Venerando Tribunal de Última Instância, decidir, desde logo, por declarar o ora Recorrente o legítimo possuidor da fracção autónoma em causa, sem necessidade de fazer baixar de novo os presentes autos ao Tribunal de Segunda Instância.
Por despacho do ora relator não foi recebido o recurso, quanto à alínea d) do pedido, atrás mencionado, em virtude o Acórdão recorrido ter confirmado, sem voto de vencido, a decisão de 1.ª instância, nos termos do n.º 2 do artigo 638.º do Código de Processo Civil.
O auto reclamou para a conferência desse despacho.
II – Os factos
a) Os factos considerados provados pelo Tribunal de Segunda Instância, são os seguintes:
O Autor "A" é uma instituição de crédito, legalmente constituída em Macau, tendo por objecto o exercício do comércio bancário (alínea A da Especificação);
A fracção que constitui objecto dos presentes autos encontra-se actualmente identificada como "XXX" do XX° andar, para habitação, do prédio urbano sito na Praça de Lobo de Ávila, com os nºs XX e XX, inscrito na matriz predial sob o artigo XXXXX, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n° XXXX do Livro X-XX, com a constituição da propriedade horizontal inscrita sob o n° XXXX do Livro X-XXX, conforme documento a fls. 11 a 26 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido (alínea B da Especificação);
A 1.06.2001, a "C", mediante escritura pública outorgada pelo Notário Privado, Sr. F, vendeu esta fracção "XXX" a "D", conforme consta de fls. 30 a 39 dos autos de providência apensa, cujo teor se dá por reproduzido (alínea C da Especificação);
O Réu B é o actual proprietário da fracção acima identificada por a ter adquirido mediante escritura pública de compra e venda outorgada a 17.08.2001, conforme documento a fls. 86 a 89 destes autos, cujo teor se dá por reproduzido (alínea D da Especificação);
Nos autos de providência cautelar apenas foi proferido o despacho de fls. 136 a 139 daqueles autos, nele se ordenando a restituição ao Requerente "A" da posse da fracção em causa, decisão essa ainda não transitada em julgado (alínea E da Especificação);
Na sequência desta decisão, foi concretizada a entrega judicial da fracção em causa, o que ocorreu a 27.03.2003, conforme auto a fls. 147 da providência apensa (alínea F da Especificação);
Mediante contrato promessa outorgado a 15.06.1995, a sociedade "C" prometeu vender a E, que prometeu comprar, a fracção autónoma referida em B) dos factos assentes, conforme documento a fls. 8/12 dos autos de providência cautelar apensa (resposta ao quesito 1.º);
O preço acordado de MOP$8,049,600.00 deveria ser pago de harmonia com o escalonamento previsto na cláusula 2.ª do mesmo contrato-promessa de fls. 8/12 da providência apensa (resposta ao quesito 2.º);
No âmbito da sua actividade, o Banco Autor concedeu ao referido E um empréstimo, no montante de HKD$3,800,000.00, destinado a financiar a referida compra (resposta ao quesito 3.º);
Este empréstimo foi utilizado em 8.09.1995, através do crédito da importância de HK$28.835,00 na conta de que era titular E e o remanescente (HKD$3.771.165,00) na conta de que era titular a "C", por instruções daquele E (resposta ao quesito 4.º);
Para garantia de reembolso do empréstimo referido sob o artigo 3°, seus juros e demais encargos, foi assinado, a 8.09.1995, entre o Autor, a "C" e E o contrato constante de fls. 23 e 24 dos autos de providência, cujo teor se dá por reproduzido (resposta ao quesito 5.º);
Mediante a cláusula 10.ª deste último contrato, E obrigava-se a pagar as amortizações mensais estipuladas, sendo que, em caso de incumprimento, o Autor poderia rescindir o mesmo contrato e deveria a C transmitir "o direito de aquisição da fracção "XXX" ou a sua propriedade a favor do A, quando este o exigisse (resposta ao quesito 6.º);
E, nesse caso, o mesmo E deveria entregar, imediata e incondicionalmente, o aludido imóvel ao Banco Autor (resposta ao quesito 7.º);
Este E não cumpriu a sua obrigação de reembolso do referido empréstimo (resposta ao quesito 8.º);
A 13.06.2000, a "C" e a ora Autora assinaram o contrato constante de fls. 27 dos autos de providência apensa, cujo teor se dá por reproduzido (resposta ao quesito 9.º);
Mediante esse contrato, foi transferida a favor do Autor "o direito de aquisição da fracção" "X XX" e o demais direitos resultantes do contrato-promessa de compra e venda referida sob o artigo 1° deste base instrutória (resposta ao quesito 10.º);
Após a assinatura do documento referido sob o artigo 5°, a 8.09.95, a "C" cedeu a E a "posse" da fracção em causa, entregando-lhe as respectivas chaves (resposta ao quesito 12.º);
Que a exerceu ininterruptamente até 13.06.2000 (resposta ao quesito 13º);
A partir de 13.06.2000, a "posse" da fracção passou a ser exercida pelo Autor, por a fracção e as respectivas chaves lhe terem sido entregues por E (resposta ao quesito 14.º);
Passou, assim, o Autor a ocupar e a dispor da referida fracção, guardando-a e conservando-a, ali se deslocando funcionários seus para inspeccionarem as condições de conservação e de habitabilidade do imóvel (resposta ao quesito 15.º);
A 22.10.2001 a fracção em causa foi ocupada por desconhecidos (resposta ao quesito 16.º);
E foi depois, essa porta, trancada com a colocação de uma corrente e um cadeado, passando o Réu a ocupar o referido imóvel (resposta ao quesito 17.º);
Em virtude deste ocupação da fracção pelo Réu, o Autor ficou privado de obter dela rendimentos (resposta ao quesito 18.º);
E, enquanto promitente comprador da fracção "XXX" nunca, por qualquer forma, ratificou o contrato celebrado entre a "C" e o Autor e referido sob o artigo 9° da base instrutória (resposta aos quesitos 20.º);
O Réu está privado do gozo da fracção em causa desde 27.03.2003 (resposta ao quesito 21.º); e
Por se encontrar o Réu impossibilitado de proporcionar a outrem o gozo da fracção (resposta ao quesito 22.º).
III – O Direito
1. As questões a resolver
Por um lado, importa apreciar a reclamação para a conferência, no sentido de confirmar ou não a decisão de não admitir o recurso da decisão relativa ao direito de retenção.
Por outro, lado, trata-se de saber se a caducidade da acção possessória não é de conhecimento oficioso, por estar estabelecida em matéria não excluída da disponibilidade das partes e se o réu tinha o ónus de ter alegado esta excepção na contestação para que o Tribunal dela pudesse conhecer.
2. Confirmação sem voto de vencido da sentença de 1.ª instância.
O relator não admitiu o recurso na parte em que o recorrente impugna a decisão sobre o direito de retenção, face ao disposto no artigo 638.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, por ter havido confirmação da sentença de 1.ª instância nessa parte, sem voto de vencido.
Reclamou o recorrente (autor), dizendo que o entendimento do Acórdão recorrido quanto ao direito de retenção é diametralmente oposto ao do Tribunal de 1.ª instância.
Só que isso é inteiramente irrelevante, já que nos termos do artigo 638.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, o que interessa é se a decisão do TSI confirma ou não a de 1.ª instância, “… ainda que por diverso fundamento …”. Ou seja, o que releva é que as decisões sejam no mesmo sentido. Já os fundamentos das mesmas podem divergir completamente.
Por outro lado, diz o autor que a questão da caducidade também releva para a questão da posse e do direito de retenção.
Não é exacto. A questão da caducidade respeita ao direito de accionar; a acção de manutenção e de restituição da posse caducam se não forem intentadas dentro do ano subsequente ao facto da turbação ou do esbulho (artigo 1207.º, n.º1, do Código Civil).
Já a questão da posse e do direito de retenção foi resolvida pelo Acórdão recorrido ao considerar que o autor perdeu a posse, por causa da posse de outrem, que durou mais de um ano, nos termos do artigo 1192.º, n.º 1, alínea d) do Código Civil.
Aqui nesta segunda situação não está em causa nenhum prazo de caducidade, porque não se trata de nenhum direito de accionar. Trata-se antes da perda da posse pela posse de outrem, exercida durante um certo lapso de tempo.
Com o que nega provimento à reclamação por ter havido confirmação por parte do Acórdão recorrido da sentença de 1.ª instância nessa parte, sem voto de vencido.
3. Caducidade da acção possessória. Disponibilidade das partes. Arguição da caducidade pela parte interessada. Conhecimento oficioso. Excesso de pronúncia.
O réu apenas suscitou a caducidade da acção de restituição de posse nas alegações de direito, imediatamente antes da sentença de 1.ª instância, dizendo que a sentença não atentou que a caducidade da acção, que decorre do artigo 1207.º do Código Civil, como excepção peremptória, extinguiu o direito do autor.
Anteriormente, designadamente, na contestação, nunca o réu tinha deduzido a excepção de caducidade.
Dispõe o artigo 1207.º do Código Civil:
“Artigo 1207.º
(Caducidade)
1. A acção de manutenção, bem como as de restituição da posse, caducam, se não forem intentadas dentro do ano subsequente ao facto da turbação ou do esbulho.
2. Tendo o esbulho sido praticado com violência ou às ocultas, o prazo de 1 ano só se conta a partir da data em que, em face do esbulhado, cesse a violência ou a posse se torne pública”.
Mas há que atentar no que estatuem os artigos 325.º, n.º 2 e 296.º, n.º 1 do Código Civil:
“Artigo 325.º
(Apreciação oficiosa da caducidade)
1. A caducidade é apreciada oficiosamente pelo tribunal e pode ser alegada em qualquer fase do processo, se for estabelecida em matéria excluída da disponibilidade das partes.
2. Se for estabelecida em matéria não excluída da disponibilidade das partes, é aplicável à caducidade o disposto no artigo 296.º”.
“Artigo 296.º
(Invocação da prescrição)
1. O tribunal não pode suprir, de ofício, a prescrição; esta necessita, para ser eficaz, de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita ou pelo seu representante.
2. Tratando-se de incapaz, a prescrição também pode ser invocada pelo Ministério Público”.
Trata-se apenas de saber se a caducidade do artigo 1207.º é ou não estabelecida em matéria excluída da disponibilidade das partes. Se for, é de conhecimento oficioso do Tribunal. Se não, não é, precisa de ser invocada pelo interessado, no caso, o réu, e apenas na contestação, face ao princípio de que toda a defesa deve ser deduzida na contestação (artigo 409.º, n.º 1, do Código de Processo Civil). Depois da contestação só podem ser deduzidas as excepções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente (artigo 409.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Ora, como é evidente, em matéria de direitos reais, o direito de acção de restituição de posse (e não de reivindicação - como também se lhe refere o réu - que não é uma acção de posse, mas de domínio) está na disponibilidade do titular do direito. Tanto pode intentá-la, como não. É um direito inteiramente disponível.
O réu acena com a imperatividade do artigo 1207.º do Código Civil para afirmar a indisponibilidade do direito. É patente a confusão. Uma coisa é a imperatividade de uma norma jurídica, isto é, se ela pode ser afastada por convenção das partes. Outra é a disponibilidade do direito, isto é, a questão de saber se a vontade das partes é ou não eficaz para produzir o efeito jurídico que pela acção se pretende obter [artigo 406.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil].
Ensinam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA1que entre os direitos indisponíveis estão os relativos ao estado das pessoas, havendo direitos patrimoniais que são indisponíveis, como são todos aqueles que não podem ser renunciados, como o direito a alimentos.
Ora, como se disse, o direito de acção de restituição de posse pode ou não ser exercido, pode ser renunciado pelo titular do direito. Logo, é disponível.
Sendo disponível o direito, não é de conhecimento oficioso do Tribunal.
Não tendo o réu suscitado a caducidade na contestação, não sendo esta de conhecimento oficioso do Tribunal e não havendo norma a admitir a dedução da excepção após a contestação, com a apresentação deste articulado precludiu o direito do réu de deduzir a excepção.
O TSI, ao conhecer oficiosamente da caducidade, violou o disposto no n.º 3 do artigo 563.º do Código de Processo Civil, incorrendo na nulidade do Acórdão conhecida por excesso de pronúncia, prevista na alínea d), parte final, do n.º 1 do artigo 571.º do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 633.º, n.º 1, do mesmo diploma legal.
4. Não impugnação do Acórdão recorrido na parte em que decidiu que o autor perdeu a posse, pela posse de outrem
Só que, ao contrário do que alega o autor, o Acórdão recorrido não se limitou a julgar improcedente a acção por caducidade do direito de acção. No seu ponto 3. o Acórdão refere que, para além da caducidade, o autor teve a posse mas não a manteve, pelo que o seu pedido, de que fosse declarado legítimo possuidor, teria de fracassar. E explicou que o autor adquiriu a posse em 13 de Junho de 2000, mas que dela foi esbulhado em 22 de Janeiro de 2001, quando a fracção foi ocupada por desconhecidos e, posteriormente, o réu passou a ocupá-la. Considerou e decidiu o Acórdão recorrido que o autor perdeu a posse, pela posse de outrem, a do réu, que durou mais de 1 ano, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 1192.º do Código Civil, visto que o autor só intentou a acção de restituição em 12 de Março de 2003.
Quer dizer, embora o TSI tivesse declarado a caducidade do direito de acção, não se limitou a tal pronúncia, aliás, excessiva, como se disse. Decidiu, ainda, que o autor não tem a posse do imóvel.
O autor não impugnou esta parte do Acórdão, pelo que se consolidou a decisão de que o autor perdeu a posse.
Não procede, por conseguinte, o recurso do Acórdão do TSI, na parte em que revogou a sentença que declarou o autor como legítimo possuidor da fracção autónoma em causa.
IV – Decisão
Face ao expendido:
A) Negam provimento à reclamação do despacho do relator;
B) Declaram a nulidade do Acórdão recorrido, por excesso de pronúncia, nos termos da alínea d), parte final, do n.º 1 do artigo 571.º do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 633.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, na parte em que decretou a caducidade da acção de restituição de posse;
C) Negam provimento ao recurso.
Custas do recurso e da reclamação para a conferência pelo autor.
Macau, 26 de Setembro de 2012.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
1 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, 4.ª ed., volume I, p. 315.
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Processo n.º 42/2012