Processo n.º 175/2010 Data do acórdão: 2011-10-20
(Autos de recurso penal)
Assuntos:
– homem de confiança
– método proibido de prova
– tráfico de estupefaciente
– crime de perigo abstracto ou presumido
– art.o 113.o, n.o 2, alínea a), do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
1. A figura de homem de confiança, no seu conceito extensivo, abrange todas as testemunhas que colaboram com as instâncias formais da perseguição penal, tendo como contrapartida a promessa da confidencialidade da sua identidade e actividade.
2. Cabem neste conceito lato tanto os particulares (pertencentes ou não ao submundo da criminalidade) como os agentes das instâncias formais, nomeadamente da polícia (Untergrundfahnder, under cover agent, agentes encobertos ou infiltrados), que disfarçadamente se introduzem naquele submundo ou com ele entram em contacto; e quer se limitem à recolha de informações (Polizeispitzel, detection), quer vão ao ponto de provocar eles próprios a prática do crime (polizeiliche Lockspitzel, agent provocateur, entrapment).
3. Como ponto de partida, o recurso ao homem de confiança configurará normalmente um meio enganoso. Entretanto, isto não significa que o recurso ao homem de confiança esteja, sempre e sem mais, a coberto de proibição de prova, nos termos do art.o 113.o, n.o 2, alínea a), do Código de Processo Penal de Macau.
4. É, por exemplo, de sustentar a inadmissibilidade e, por isso, a coberto de estrita proibição de prova, da intervenção do homem de confiança com propósitos e para fins unicamente repressivos: isto é, exclusivamente preordenada à repressão de crimes já consumados, em homenagem nomeadamente à ideia duma administração eficaz da justiça penal.
5. Mas, já é admissível a intervenção do homem de confiança sempre que se pretender através dela prosseguir finalidades exclusiva ou prevalentemente preventivas, pelo menos em relação a perigos concretos e imediatos de atentado contra a vida ou a perigo correspondente de sacrifício grave da integridade física de terceiros. Será, concretamente assim sempre que a perseguição de eventuais agentes, lograda através do homem de confiança, se integre em programas de repressão e desmantelamento do terrorismo, da criminalidade violenta ou altamente organizada.
6. Sendo certo que, por princípio, apenas deverão ter-se como proibidos os meios enganosos susceptíveis de colocar o arguido numa situação de coacção idêntica à dos demais métodos proibidos de prova. Este deverá ser, pelo menos, o critério privilegiado para a equacionação e superação dos casos mais duvidosos.
7. O crime de tráfico de estupefaciente (nomeadamente previsto no então Decreto-Lei n.º 5/91/M, de 28 de Janeiro, e hoje na homóloga Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto) é um crime de perigo abstracto ou presumido, no sentido de que para cuja consumação não se exige a existência de um dano real e efectivo, mas sim basta a simples criação de perigo ou risco de dano para o bem protegido, qual seja, o da saúde pública, na dupla vertente física e moral das pessoas.
8. No caso concreto dos autos, a intervenção, sob o plano previamente montado pela polícia, de um arguido como homem de confiança na captura ulterior de um outro arguido pela prática de actos integradores do crime de tráfico de estupefaciente, é legalmente admissível, porque esse plano foi preordenado prevalentemente às finalidades preventivas em relação ao cometimento de um crime de perigo abstracto contra a saúde pública na sua dupla vertente física e moral, e até porque o meio em causa não foi susceptível de colocar este último arguido numa situação de coacção idêntica à dos demais métodos proibidos de prova previstos no n.o 2 do art.o 113.o do Código de Processo Penal, para a prática do tráfico de substância estupefaciente em causa, já que este arguido sempre estava disposto a traficar essa substância a outras pessoas, por método semelhante (i.e., receber “encomenda” por via telefónica, e depois, entregar a “mercadoria” ao comprador), sendo-lhe indiferente ser essa pessoa compradora aquele arguido que colaborou com a polícia como homem de confiança, a telefonar para lhe pedir compra de estupefaciente, daí que não se pode dizer que foi esse arguido “instigado” à prática de um crime que, não fora o plano da polícia (executado com o auxílio do dito homem de confiança), jamais teria cometido.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 175/2010
(Autos de recurso penal)
Recorrente: Ministério Público
Arguidos recorridos: A e B
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o acórdão final proferido no subjacente processo comum colectivo n.o CR4-08-0206-PCC do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), na parte que absolveu, por força do art.o 113.o, n.o 2, alínea a), do Código de Processo Penal de Macau (CPP), o 2.o arguido A e a 3.a arguida B da inicialmente acusada prática, por cada um, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefaciente, p. e p. pelo art.o 8.o, n.o 1, do Decreto-Lei n.o 5/91/M, de 28 de Janeiro, veio o Ministério Público recorrer desse aresto para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para rogar a condenação desses dois arguidos no crime de tráfico de estupefacientes, por defendida inverificação, in casu, da situação prevista no art.o 113.o, n.o 2, alínea a), do CPP, e arguir a existência do vício de contradição insanável da fundamentação na decisão de convolação, aí tomada finalmente a respeito da 3.a arguida, do acusado crime de tráfico de estupefaciente para o crime de tráfico de quantidades diminutas (cfr. o teor da motivação do recurso, a fls. 298 a 304 dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso ficaram silentes os dois arguidos recorridos.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 323 a 325), pugnando pela procedência do recurso.
Feito o exame preliminar, e corridos os vistos legais, e com audiência já feita nesta Segunda Instância, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Com pertinência à solução, é de considerar os seguintes elementos, coligidos do exame dos autos:
1. Na acusação deduzida (a fls. 139 a 141), o Ministério Público imputou:
– ao 1.o arguido C a prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de detenção ilícita de estupefaciente para consumo pessoal, p. e p. pelo art.o 23.o, alínea a), do Decreto-Lei n.o 5/91/M, de 28 de Janeiro;
– ao 2.o arguido A a prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefaciente, p. e p. pelo art.o 8.o, n.o 1, do Decreto-Lei n.o 5/91/M, com circunstância prevista no art.o 18.o, n.o 2, do mesmo diploma legal;
– e à 3.a arguida B a prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefaciente, p. e p. pelo art.o 8.o, n.o 1, do Decreto-Lei n.o 5/91/M, e de um crime de detenção ilícita de estupefaciente para consumo pessoal, p. e p. pelo art.o 23.o, alínea a), do mesmo diploma legal.
2. No acórdão final proferido (a fls. 277 a 282v) em primeira instância e ora recorrido pelo Ministério Público, foi descrito como provado nomeadamente o seguinte, tal como acusado no libelo:
– em 15 de Abril de 2008, às 17:05, a Polícia Judiciária interceptou o 1.o arguido C para fins de investigação;
– no mesmo dia, sob organização pela Polícia, o arguido C telefonou ao 2.o arguido A, que lhe tinha chegado a fornecer droga no passado, para dizer, camufladamente, a este que precisava de droga, tendo combinado em efectuar a transacção pelas 22:30 num posto de autocarro perto de um edifício sito na Avenida da Praia Grande;
– às 22:47, à porta desse edifício, a Polícia interceptou o 2.o arguido A;
– após capturado, o 2.o arguido A levou a Polícia a entrar no rés-do-chão desse edifício, e retirou, junto aos contadores de água na escadaria do rés-do-chão, uma caixinha de cigarros previamente aí colocada, contendo no seu interior três embalagens de pó, em cor branca, de Ketamina, com 3,848 gramas líquidos, no total, desta substância, para ser vendida ao 1.o arguido C;
– depois, o 2.o arguido A colaborou com a Polícia, tendo telefonado à 3.a arguida B, que lhe tinha chegado a fornecer droga no passado, para dizer, camufladamente, a esta que precisava de droga, tendo combinado em efectuar a transacção pela 01:30 do dia 16 de Abril de 2008, à porta de um estabelecimento de Karaoke;
– à 01:25 da madrugada, a Polícia interceptou a 3.a arguida B à porta do estabelecimento de Karaoke em questão, e encontrou no bolso das calças vestidas por esta arguida, de entre outras coisas, sete embalagens de pó em cor branca, contendo 4,101 gramas líquidos, no total, de Ketamina, tendo esta quantidade de Ketamina sido previamente comprada por ela numa discoteca sita em Zhuhai, e depois dividida por ela em sete pequenas embalagens, quatro das quais destinadas a serem vendidas ao 2.o arguido A, e uma parte das remanscentes destinada ao consumo dela própria e uma outra parte destinada à venda a outrem em outra ocasião;
– os três arguidos são delinquentes primários à data dos factos, conforme o que consta dos respectivos certificados de registo criminal.
3. A final, o Tribunal Colectivo a quo decidiu:
– condenar o 1.o arguido C, como autor de um crime de consumo ilícito de estupefaciente, punido pelo art.o 14.o da Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto (como sendo a lei concretamente mais favorável), em 15 dias de multa, à taxa diária de MOP100,00, no total de MOP1.500,00 de multa, convertível em 10 dias de prisão, no caso de não ser paga nem substituída por trabalho;
– absolver (por força do art.o 113.o, n.o 2, alínea a), do CPP) o 2.o arguido A da acusada prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.o 8.o, n.o 1, do Decreto-Lei n.o 5/91/M (por o Tribunal a quo entender que a vontade da nova venda de Ketamina por parte deste arguido a favor do 1.o arguido foi provocada pela organização da Polícia);
– condenar a 3.a arguida B, como autora de um crime de detenção ilícita de estupefaciente para consumo pessoal, p. e p. pelo art.o 23.o, alínea a), do Decreto-Lei n.o 5/91/M, em 45 dias de prisão, e de um crime de tráfico de quantidades diminutas de estupefaciente, p. e p. pelo art.o 9.o, n.o 1, do mesmo Decreto-Lei, em 1 ano de prisão e MOP10.000,00 de multa (sendo a multa convertível em 1 mês de prisão, no caso de não ser paga nem substituída por trabalho), e, em cúmulo, na pena de 1 ano e 1 mês de prisão, e MOP10.000,00 de multa (convertível esta em 1 mês de prisão, no caso de não ser paga nem substituída por trabalho) (isto porque o Tribunal a quo considerou também aplicável à 3.a arguida o disposto no art.o 113.o, n.o 2, alínea a), do CPP em relação às quatro embalagens de Ketamina destinadas à venda ao 2.o arguido, mas já julgou verificados os pressupostos da punição da 3.a arguida no crime de consumo e de tráfico de quantidades diminutas, por esta ter destinado as outras três embalagens de Ketamina para consumo próprio e para venda a outrem).
4. A 3.a arguida, detida policialmente em 16 de Abril de 2008 (cfr. fl. 4), começou por ficar sujeita à prisão preventiva decretada em 17 de Abril de 2008 (cfr. o despacho judicial de fls. 62 a 63), e foi solta em 14 de Janeiro de 2010 por ordem do Tribunal a quo (por este ter entendido que o tempo da prisão preventiva entretanto decorrido já ter excedido o período da prisão finalmente imposta à mesma arguida).
5. O 2.o arguido e a 3.a arguida, tal como o 1.o arguido, confessaram integralmente e sem reservas os factos (cfr. o teor da acta de audiência de julgamento em primeira instância, lavrada a fls. 274 a 276).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Por uma questão de sequência lógica das coisas, é de conhecer primeiro da questão principal levantada pelo Ministério Público a respeito da defendida inverificação, in casu, da situação prevista no art.o 113.o, n.o 2, alínea a), do CPP, cuja eventual procedência iria tornar inútil o conhecimento da segunda e última questão assacada no recurso, relativa à alegada contradição insanável da fundamentação.
No fundo, trata-se de saber se a Polícia não tenha usado (como defende o Ministério Público no recurso) um método proibido de prova para imputar ao 2.o arguido e à 3.a arguida a prática do crime de tráfico de estupefacientes.
No caso dos autos, conforme a matéria de facto já dada por assente pelo Tribunal a quo, estes dois arguidos foram apanhados pela Polícia devido a planos montados de moldes similares por esta em colaboração com o 1.o arguido e o 2.o arguido que serviram, ao fim e ao cabo, como “homem de confiança” (no sentido lato deste termo) por conta da Polícia, com vista à captura do 2.o arguido e da 3.a arguida, respectivamente.
De facto, os 1.o e 2.o arguidos agiram efectivamente como homem de confiança entendido no seu conceito lato, se, tal como já foi referido no acórdão deste TSI de 20 de Junho de 2002, do processo n.o 242/2001, relatado também por ora relator, <>.
Assim sendo, põe-se o problema da nulidade ou não deste tipo de prova obtido mediante o homem de confiança, à luz do art.º 113.º, n.os 1 e 2, alínea a), do CPP, para cuja solução há que recorrer outra vez, na esteira do aresto deste TSI acima citado, aos seguintes preciosos ensinamentos do mesmo Professor MANUEL DA COSTA ANDRADE, na obra acima referida, págs. 231 a 236, feitos no contexto do ordenamento processual penal português, mas muito semelhante ao de Macau:
– “... como ponto de partida: o recurso ao homem de confiança configurará normalmente um meio enganoso, sendo, como tal, recondutível à categoria dos métodos proibidos pelo artigo 126.º, n.º 2, al. a), do CPP.” (Com nota deste TSI: homólogo ao art.º 113.º, n.º 2, alínea a), do CPP de Macau);
– entretanto, “Não significa isto que o recurso ao homem de confiança esteja, sempre e sem mais, a coberto de proibição de prova”;
– “Cremos, por exemplo, ser de sustentar a inadmissibilidade e, por isso, a coberto de estrita proibição de prova, da intervenção do homem de confiança que se limita a provocar uma pessoa ao consumo v.g., de estupefacientes com o fim exclusivo de, como tal, – sc., como mero consumidor – o perseguir penalmente. O mesmo tenderá a valer, em geral, para os demais casos de intervenção de homens de confiança com propósitos e para fins unicamente repressivos: isto é, exclusivamente preordenada à repressão de crimes já consumados, em homenagem nomeadamente à ideia duma administração eficaz da justiça penal.
O tratamento já poderá ser diverso sempre que o homem de confiança prossiga finalidades exclusiva ou prevalentemente preventivas. <>. Será, concretamente assim sempre que a perseguição de eventuais agentes, lograda através do homem de confiança, se integre em programas de repressão e desmantelamento do terrorismo, da criminalidade violenta ou altamente organizada. De outra forma, deixar-se-ia a sociedade desarmada face a manifestações tão drásticas e intoleráveis de criminalidade. Ou, em alternativa – risco não menos sério e de consequências não menos perversas e indesejáveis – induzir-se-ia o recurso a formas incontroláveis de resposta”;
– sendo certo que, “por princípio, apenas deverão ter-se como proibidos os meios enganosos <> métodos proibidos de prova. Este deverá ser, pelo menos, o critério privilegiado para a equacionação e superação dos casos mais duvidosos.” (Com sublinhado colocado por este TSI).
Tida devidamente em mente estas ideias-chave e a consideração de que o crime de tráfico de estupefaciente (nomeadamente previsto no então Decreto-Lei n.º 5/91/M, e hoje na homóloga Lei n.o 17/2009) é um “crime de perigo abstracto ou presumido”, no sentido de que para cuja consumação não se exige a existência de um dano real e efectivo, mas sim basta a simples criação de perigo ou risco de dano para o bem protegido, qual seja, o da “saúde pública, na dupla vertente física e moral” das pessoas, na esteira do douto entendimento do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de Portugal, de 20 de Março de 2002, proferido no Recurso n.º 13074/2001 (3.ª Secção), aqui tido necessariamente apenas como doutrina, é de concluir que o meio então empregue pela Polícia com vista à captura do 2.o arguido e da 3.a arguida, como foi, in casu, e na óptica deste TSI, preordenado prevalentemente às finalidades preventivas em relação ao cometimento de um crime de perigo abstracto contra a saúde pública na sua dupla vertente física e moral, não devia ter sido reputado pelo Tribunal a quo como inadmissível “a coberto de estrita proibição da prova” (nas palavras do mesmo dilecto Professor), até porque no caso dos autos, o meio em causa não foi susceptível de colocar o 2.o arguido nem a 3.a arguida numa situação de coacção idêntica à dos demais métodos proibidos de prova previstos no n.º 2 do art.º 113.º do CPP, para o tráfico das substâncias estupefacientes em causa, já que estes dois arguidos sempre estavam dispostos a traficar essas substâncias a outras pessoas, por método semelhante (i.e., receber “encomenda” por via telefónica, e depois, entregar a “mercadoria” ao comprador), sendo indiferente ser essas pessoas compradoras o 1.o arguido, ou o próprio 2.o arguido ora recorrido ou ainda outros indivíduos, daí que não se pode dizer que foram o 2.o arguido e a 3.a arguida “instigados” à prática de um crime que, não fora o plano da Polícia (executado com o auxílio respectivo do 1.o arguido e do 2.o arguido), jamais teria cometido.
É, pois, de revogar a decisão recorrida na parte ora concretamente impugnada pelo Ministério Público, por efectiva inexistência do método proibido de prova tido por existente pelo Tribunal a quo, com o que já não se torna necessário conhecer da remanescente questão posta algo subsidiariamente no recurso, atinente à alegada contradição insanável da fundamentação na decisão de convolação do crime de tráfico para o crime de tráfico de quantidades diminutas a respeito da 3.a arguida.
Do acima concluído, decorre a necessidade de conhecer aqui directamente do mérito da acusação pública então deduzida contra o 2.o arguido e a 3.a arguida na parte respeitante ao imputado crime de tráfico de estupefaciente, p. e p. pelo art.o 8.o, n.o 1, do Decreto-Lei n.o 5/91/M.
Ora, atenta a matéria de facto já descrita como provada no acórdão recorrido, há que dar por assente que:
– o 2.o arguido deteve efectivamente, de modo ilícito, 3,848 gramas líquidos de Ketamina para serem vendidos ao 1.o arguido, e colaborou concretamente com a Polícia na captura da 3.a arguida;
– a 3.a arguida deteve sete embalagens de Ketamina com 4,101 gramas líquidos no total, quatro das quais destinadas à venda ao 2.o arguido, e outras três para, em parte, consumo próprio, e, em parte, para venda a outrem, tendo aquela quantidade total de Ketamina sido dividida por ela em tais sete embalagens.
Como a quantidade concreta de 3,848 gramas líquidos de Ketamina então detida pelo 2.o arguido para ser vendida ao 1.o arguido não pode ser tida como inferior ao “necessário para consumo individual durante três dias” (para efeitos de eventual aplicação do tipo legal de tráfico de quantidades diminutas do art.o 9.o, n.o 1, do Decreto-Lei n.o 5/91/M), nem inferior a cinco vezes da “quantidade de referência de uso diário” definida no correspondente mapa anexo à nova Lei n.o 17/2009 (para efeitos da consideração do tipo legal de tráfico de menor gravidade do art.o 11.o, n.o 1, alínea 1) e n.o 2, da nova Lei), é de aplicar ao 2.o arguido o tipo legal de tráfico de estupefaciente do art.o 8.o, n.o 1, do Decreto-Lei n.o 5/91/M (com circunstância de atenuação livre da pena prevista no art.o 18.o, n.o 2, do próprio Decreto-Lei), vigente à data da prática dos factos, ou do art.o 8.o, n.o 1, da nova Lei (com circunstância de atenuação especial da pena prevista no art.o 18.o desta Lei).
Portanto, em jeito de comparação para efeitos eventualmente a relevar do art.o 2.o, n.o 4, do Código Penal de Macau (CP), ao 2.o arguido, pela autoria material de um crime consumado de tráfico de estupefaciente, é de impor, tidos em conta os padrões previstos sobretudo nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP para efeitos de medida da pena:
– 1 ano e 6 meses de prisão e MOP10.000,00 de multa (convertível esta multa em 5 dias de prisão, no caso de não ser paga nem substituída por trabalho), à luz das disposições conjugadas dos art.os 8.o, n.o 1, e 18.o, n.o 2, do Decreto-Lei n.o 5/91/M, e do art.o 6.o, alínea a), do Decreto-Lei n.o 58/95/M, aprovador do CP, pena de prisão essa que não poderá ser suspensa na sua execução dadas as elevadas exigências da prevenção geral do crime em causa;
– ou 2 anos e 6 meses de prisão (dentro da moldura da pena especialmente atenuada, de 7 meses e 6 dias a 10 anos de prisão), sob a égide das disposições conjugadas dos art.os 8.o, n.o 1, e 18.o, n.o 2, da Lei n.o 17/2009, e do art.o 67.o, n.o 1, alíneas a) e b), do CP, pena de prisão essa que não poderá ser suspensa na sua execução consideradas as elevadas exigências da prevenção geral do crime;
– da comparação acima feita, decorre que é de aplicar mesmo ao arguido a lei antiga, vigente à data dos factos, com imposição de 1 ano e 6 meses de prisão efectiva e MOP10.000,00 de multa (convertível esta em 5 dias de prisão) .
E agora da situação da 3.a arguida:
Como já se referiu acima, esta arguida deteve sete embalagens de Ketamina com 4,101 gramas líquidos no total, quatro das quais destinadas à venda ao 2.o arguido, e outras três para, em parte, consumo próprio, e, em parte, para venda a outrem. E conjugado isto com a restante matéria de facto descrita como provada no acórdão recorrido, é razoavelmente de concluir que a quantidade de Ketamina contida nas quatro embalagens destinadas à venda ao 2.o arguido já excede o “necessário para consumo individual durante três dias” (para efeitos de eventual aplicação do tipo legal de tráfico de quantidades diminutas do art.o 9.o, n.o 1, do Decreto-Lei n.o 5/91/M), pelo que à luz do Decreto-Lei n.o 5/91/M, ela deveria ser punida nos termos do art.o 8.o, n.o 1, deste diploma, pela autoria material de um crime de tráfico, tal como foi inicialmente acusada.
Entretanto, como ante a mesma matéria de facto provada, não se sabe ao certo qual a quantidade concreta de Ketamina contida nas restantes três embalagens de pó branco de Ketamina encontradas nas calças vestidas por essa arguida é que ela tenha destinado ao seu concumo próprio ou à venda a outrem (que não fosse o 2.o arguido), e não integrando essa situação nenhum vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (pois o Tribunal a quo já deu por provada toda a matéria fáctica descrita na acusação), há que convolar o crime de tráfico de estupefaciente do art.o 8.o, n.o 1, do Decreto-Lei n.o 5/91/M, para o crime de tráfico de menor gravidade, previsto pelo art.o 11.o, n.o 1, alínea 1) e n.o 2, da actual Lei n.o 17/2009, por ser de conceder-lhe o benefício de dúvida acerca da quantidade concreta de Ketamina destinada à venda a outrem que não fosse o 2.o arguido, e, como tal, a quantidade de Ketamina por ela detida para ser vendida ao 2.o arguido e a outrem, não poder exceder cinco vezes da “quantidade de referência de uso diário” definida (como sendo em 0,6 gramas) no mapa anexo à Lei n.o 17/2009 para a Ketamina.
Portanto, é de revogar o acórdão recorrido na parte em que condenou a 3.a arguida como autora material de um crime de tráfico de quantidades diminutas do art.o 9.o, n.o 1, do Decreto-Lei n.o 5/91/M, e, em substituição, passar a condenar esta arguida – em convolação do então acusado crime de tráfico de estupefaciente do art.o 8.o, n.o 1, deste diploma legal, em prol do disposto no art.o 2.o, n.o 4, do CP – como autora material de um crime de tráfico de menor gravidade, previsto actualmente no art.o 11.o, n.o 1, alínea 1) e n.o 2, da Lei n.o 17/2009, dentro da moldura de 1 a 5 anos de prisão.
Assim, é de aplicar à 3.a arguida, pela autoria de um crime consumado de tráfico de menor gravidade, 1 ano e 8 meses de prisão, achada à luz dos padrões previstos nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP. E em cúmulo jurídico, a operar aqui de novo nos termos do art.o 71.o, n.os 1 e 2, do CP, desta pena parcelar com a pena de 45 dias de prisão já imposta no acórdão recorrido por causa da autoria material de um crime de detenção de estupefaciente para consumo pessoal, p. e p. pelo art.o 23.o, alínea a), do Decreto-Lei n.o 5/91/M (crime e correspondente pena estes que não são objecto do recurso sub judice), é de passar a impor à 3.a arguida a pena única de 1 ano, 8 meses e 9 dias de prisão, que não poderá ser suspensa na sua execução atentas as elevadas exigências da prevenção, pelo menos geral, do crime de tráfico de menor gravidade.
Entretanto, como o tempo em que esta arguida esteve detida e presa preventivamente à ordem dos autos penais subjacentes à presente lide recursória já teve duração superior a 1 ano, 8 meses e 9 dias de prisão, esta pena única deverá ser tida como já totalmente cumprida (art.o 74.o do CP).
IV – DECISÃO
Nos termos expostos, acordam em julgar procedente a questão principal colocada no recurso do Ministério Público a propósito da temática do método proibido de prova, com o que:
– revogam a recorrida decisão absolutória do 2.o arguido A, passando a condenar este arguido como autor material de um crime consumado de tráfico de estupefaciente previsto pelo art.o 8.o, n.o 1, do Decreto-Lei n.o 5/91/M, de 28 de Janeiro, e punido nos termos conjugados do art.o 18.o, n.o 2, deste diploma legal, na pena de um ano e seis meses de prisão efectiva e dez mil patacas de multa, convertível esta em cinco dias de prisão, no caso de não ser paga nem substituída por trabalho;
– bem como revogam a também impugnada decisão condenatória da 3.a arguida B como autora material de um crime de tráfico de quantidades diminutas do art.o 9.o, n.o 1, do Decreto-Lei n.o 5/91/M, passando, em substituição, a condenar esta arguida como autora material de um crime consumado de tráfico de menor gravidade, previsto actualmente no art.o 11.o, n.o 1, alínea 1) e n.o 2, da Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto, na pena de um ano e oito meses de prisão, e, em cúmulo jurídico desta pena com a pena de quarenta e cinco dias de prisão já imposta à arguida no acórdão recorrido (pela autoria material de um crime de detenção de estupefaciente para consumo pessoal, p. e p. pelo art.o 23.o, alínea a), do Decreto-Lei n.o 5/91/M), na pena única de um ano, oito meses e nove dias de prisão efectiva, pena única esta que se considera já totalmente cumprida pela arguida nos termos do art.o 74.o do Código Penal de Macau.
Custas nesta Segunda Instância pelo 2.o arguido e pela 3.a arguida, com duas UC de taxas de justiça individuais, respectivamente.
Pagarão o 2.o arguido mil patacas de honorários ao seu Exm.o Defensor Oficioso, e a 3.a arguida oitocentas patacas de honorários à sua Exm.a Defensora Oficiosa, honorários esses a adiantar pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Passe mandados de detenção contra o 2.o arguido A, para efeitos de cumprimento da pena de um ano e seis meses de prisão ora aplicada.
Notifique o presente acórdão à própria pessoa da 3.a arguida B, e comunique ao processo sumário n.o CR3-11-0091-PSM do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, e ao Instituto de Acção Social.
Macau, 20 de Outubro de 2011.
_________________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
_________________________
José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)
_________________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta) (vencido nos termos da declaração de voto em anexo)
Processo nº 175/2010 (Autos de recurso penal)
Data: 20/10/2011
Declaração de voto
Vencida por seguintes razões:
Não concordo com a decisão condenatória dos arguidos da prática do crime de tráfico de estupefaciente por entender que no presente processo, a intenção ilícita do 2º e 3ª arguidos de vender droga apreendida nos autos foi provocada pela conduta policial o que é proibida nos termos do art.113º nº 2 al.a) do Código Processo Penal.
Assim sendo, não merecia o recurso provimento e devia manter a decisão absolutória, do Tribunal a quo, dos dois arguidos pela prática do crime de tráfico de estupefaciente.
A Primeira Adjunta
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Tam Hio Wa
Processo n.º 175/2010 Pág. 1/22