Processo n.º 306/2011 Data do acórdão: 2011-10-20
(Recurso penal)
Assuntos:
– acolhimento de filha menor com visto de permanência expirado
– art.° 15.o, n.° 1, da Lei n.° 6/2004
– conflito de deveres
– art.° 35.°, n.° 1, do Código Penal
S U M Á R I O
A conduta praticada pelos pais, de acolhimento, em Macau, de uma filha menor sua e aqui com visto de permanência já expirado, deve ser punida nos termos do art.° 15.°, n.° 1, da Lei n.° 6/2004, de 2 de Agosto, porquanto nela não há conflito de deveres enquadrável no art.° 35.°, n.° 1, do Código Penal de Macau.
O relator por vencimento,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 306/2011
(Recurso penal)
Recorrente: Ministério Público
Recorridos: A e B
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
A Digna Delegada do Procurador veio recorrer da sentença proferida no Processo Sumário n.o CR4-11-0049-PSM do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, na parte concretamente respeitante à decidida absolvição, com fundamento na existência do conflito de deveres aludido no art.o 35.o, n.o 1, do vigente Código Penal (CP), dos dois arguidos desse processo, chamados A e B, do crime de acolhimento, p. e p. pelo art.o 15.o, n.o 1, da Lei n.o 6/2004, de 2 de Agosto, alegadamente praticado em relação à filha menor de ambos.
Sustentou, pois, a Digna Recorrente a invalidação da decisão absolutória em questão, por invocada existência do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (com pertinência à tomada de posição quanto ao falado conflito de deveres), e por arguida inobservância, pelo Tribunal recorrido, do disposto no art.o 355.o, n.o 2, do vigente Código de Processo Penal (CPP), e rogou, a final, a condenação directa dos arguidos também no crime de acolhimento, ou, subsidiariamente, o reenvio do processo para novo julgamento no Tribunal Judicial de Base (cfr. a motivação apresentada a fls. 50 a 57v dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso, não responderam os dois arguidos recorridos.
Subidos os autos, emitiu o Digno Procurador-Adjunto parecer (a fls. 100 a 101v), pugnando pelo provimento do recurso, por entendida existência do erro de direito cometido pelo Tribunal a quo aquando da tomada da decisão absolutória.
Feito o exame preliminar e com vistos corridos, procedeu-se à audiência de julgamento neste Tribunal de Segunda Instância.
Como o douto projecto de acórdão apresentado pelo Mm.° Juiz Relator a quem o processo ficou distribuído não foi aprovado em votação feita no seio deste Colectivo ad quem, é de decidir do recurso sub judice através do presente acórdão definitivo lavrado pelo primeiro dos juízes-adjuntos de acordo com a posição que fez vencimento.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Da leitura da fundamentação fáctica da decisão recorrida, sabe-se que em relação ao crime de acolhimento, inicialmente também imputado pelo Ministério Público (a fl. 32) com base no auto de notícia que fez instaurar o Processo Sumário em causa (cfr. também o teor dos 2.o e 4.o parágrafos da página 2 da acta da audiência em primeira instância, lavrada a fls. 31 e seguintes dos autos):
– foi materialmente dado como provado pelo Tribunal a quo que:
– no dia 17 de Março de 2011, numa fracção autónoma sita em Macau, estavam dentro de um quarto os dois arguidos, imigrantes clandestinos, e sua filha, com cinco anos de idade, cujo prazo de permanência em Macau estava expirado;
– o 1.o arguido Atem como habilitações literárias o ensino secundário;
– os arguidos são casados entre si e têm a filha de cinco anos de idade a seu cargo;
– os arguidos não têm trabalho na China;
– a 2.a arguida B tem como habilitações literárias o ensino secundário;
– ambos os arguidos confessaram os factos e mostraram-se arrependidos;
– enquanto o Tribunal a quo já não deu como provado que os arguidos sabiam que não podiam ter consigo a sua filha.
Por outro lado, de acordo com o teor da acima referida acta da audiência, os dois arguidos confessaram de modo integral e sem reservas os factos, em face do que o Tribunal a quo ditou para a acta a sua decisão no sentido de considerar desnecessária a produção da prova relativa aos factos imputados, e provados assim os factos, com passagem de imediato às alegações orais (cfr. o teor do primeiro parágrafo da página 4 da mesma acta da audiência, ora a fl. 40 dos autos).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Desde já, é de observar que não pode existir o primeiramente assacado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, porquanto do teor da acta da audiência, se sabe que o Tribunal recorrido já investigou todo o tema probando objecto do processo penal subjacente à presente lide recursória, ao ter considerado como provados os factos com base na confissão integral e sem reservas dos dois arguidos.
Outrossim, também não se verifica a falta de observância do dever de fundamentação exigido no art.o 355.o, n.o 2, do CPP, dado que o Tribunal a quo já cumpriu, na óptica do presente Tribunal de recurso, este dever.
Entretanto, já tem razão a Digna Recorrente, ao criticar que o Tribunal a quo não atendeu devidamente aos factos confessados pelos dois arguidos.
De facto, se estes já confessaram todos os factos a respeito dos quais o Ministério Público lhes imputou a prática também do crime de acolhimento, e o Tribunal recorrido já aceitou como relevante essa confissão com decidida desnecessidade de produção de outra prova (cfr. o disposto nos n.os 1 e 2 e 3 (sendo este a contrario sensu) do art.o 325.o do CPP), então o mesmo Tribunal não poderia dar como não provado que os arguidos sabiam que não podiam ter consigo a sua filha.
Assim, é de corrigir agora esse “facto não provado” em questão, no sentido de passar a considerar provado que os arguidos sabiam que não podiam ter consigo a sua filha, para além de ser de considerar como provado, por força precisamente da confissão integral e sem reservas então relevantemente prestada pelos dois arguidos, que eles agiram livre, consciente e voluntariamente também no respeitante ao imputado crime de acolhimento, e, portanto, sem necessidade de determinação do reenvio desta parte do objecto do processo para novo julgamento, porquanto por força dos efeitos da mesma confissão integral e sem reservas dos factos, ao presente Tribunal ad quem é possível decidir directamente da causa na presente sede recursória.
Nesses parâmetros, é de ajuizar agora da questão do conflito de deveres a que se refere o art.º 35.º, n.º 1, do CP, segundo o qual <>
A norma incriminadora em causa nos presentes autos é o art.o 15.o, n.o 1, da Lei n.o 6/2004, que reza que <>.
Considerada toda a matéria fáctica pertinente já acima referida, crê-se que é de excluir qualquer juízo de eventual subsunção da situação concreta em apreço no instituto de conflito de deveres, como uma das causas de exclusão de ilicitude (art.º 30.º, n.os 1 e 2, alínea c), primeira parte, conjugado com o art.º 35.º, n.º 1, todos do CP), isto porque, tal como já se entendeu no aresto deste Tribunal de Segunda Instância, de 25 de Março de 2004 no Processo n.o 38/2004, perante o tipo legal congénere do art.o 8.o da anterior Lei n.o 2/90/M, de 3 de Maio:
Apesar de recair simultaneamente nos ombros dos dois arguidos dos autos, o consabido dever jurídico de cuidar da sua filha menor, derivado do seu poder paternal sobre a mesma (educando-a e auxiliando-a, etc.), para além do dever também jurídico – como qualquer cidadão de Macau – de não acolher nenhum indivíduo que se encontre em situação de clandestinidade, o valor daquele dever é inferior ao deste último.
É que o eventual incumprimento do dever de cuidar da filha menor se reflecte, em primeira linha e directamente (– e se se considerar que “a família é a célula da sociedade” e que “as crianças são os futuros pilares da sociedade”, etc. –), na esfera da relação entre a filha e os pais, e só muito reflexamente na sociedade em geral, enquanto o incumprimento do dever de não acolher os clandestinos já faz, desde logo e sem mais, sofrer toda a sociedade de Macau. Aliás, há diversas outras vias para os arguidos cumprirem o seu dever de cuidar bem da sua filha menor, enquanto só lhes subsiste uma via para cumprir o dever de não acolher, em Macau, os clandestinos, que é a de não acolherem mesmo os clandestinos.
Portanto, na ausência de qualquer autêntico conflito de deveres (então entendido como existente pelo Tribunal recorrido), há que passar a condenar os dois arguidos também como autores de um consumado crime de acolhimento, p. e p. pelo art.o 15.o, n.o 1, da Lei n.o 6/2004.
E em sede da medida da pena, e atendendo em especial a que a pessoa ilegalmente acolhida pelos dois arguidos foi a filha menor deles próprios, é de impor a cada um dos arguidos, sob a égide dos padrões da medida da pena plasmados nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o do CP, três meses de prisão (dentro da moldura legal de um mês a dois anos de prisão), pela autoria material de um crime consumado de acolhimento, pena de três meses essa que não poderá ser substituída por igual tempo de multa, dadas as necessidades de prevenção deste delito (art.o 44.o, n.o 1, parte final, do CP).
E em cúmulo jurídico com a pena de dois meses de prisão, já aplicada pelo Tribunal recorrido para o crime de reentrada ilegal do art.o 21.o da Lei n.o 6/2004, é de graduar-lhes a pena única em quatro meses de prisão, nos termos do art.o 71.o, n.os 1 e 2, do CP, pena única que, apesar de não poder ser substituída por igual tempo de multa devido às necessidades de prevenção criminal, será suspensa na sua execução por dezoito meses, nos termos do art.o 48.o, n.o 1, do CP.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar parcialmente provido o recurso do Ministério Público, passando, pois, a condenar os arguidos Ae Liu Xiao Hong como autores materiais de um crime consumado de acolhimento, p. e p. pelo art.o 15.o, n.o 1, da Lei n.o 6/2004, de 2 de Agosto, na pena de três meses de prisão, e, em cúmulo com a pena de dois meses de prisão já imposta na sentença recorrida para o crime de reentrada ilegal do art.o 21.o da mesma Lei, na pena única de quatro meses de prisão, suspensa na sua execução por dezoito meses.
Como os dois arguidos acabam por ser condenados no crime de acolhimento, pagará, correspondentemente, cada um deles nesta Segunda Instância uma UC de taxa de justiça (já depois de reduzida em metade devido à confissão integral e sem reservas dos factos).
Fixam, no total, em mil e oitocentas patacas os honorários da Exm.a Defensora Oficiosa dos dois arguidos, devendo pagar cada um deles (atenta a percentagem do decaimento do Ministério Público no recurso) trezentas patacas por conta desse montante total, enquanto as restantes mil e duzentas patacas ficarão a cargo do Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância, ao qual caberá adiantar, por ora, todo o montante.
Notifique também a própria pessoa dos dois arguidos recorridos.
Macau, 20 de Outubro de 2011.
_________________________
Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
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Tam Hio Wa
(Segunda Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Relator do processo) (Vencido seguir declaração)
Processo nº 306/2011
Declaração de voto
Como resulta do douto Acórdão que antecede, fez vencimento o entendimento segundo o qual era de excluir qualquer juízo de eventual enquadramento do caso em apreço no instituto de conflito de deveres, e que verificada também não estava uma situação de inexigibilidade.
Decididamente, e sem embargo do muito respeito devido, não acompanhamos o assim entendido, mostrando-se-nos de manter o entendimento que temos vindo a assumir sobre a questão; (cfr., v.g., a declaração de voto que anexei ao Acórdão de 25.03.2004, Processo n.° 38/2004).
Com efeito, e como perante situações análogas e no âmbito do mesmo enquadramento jurídico se pronunciou diversas vezes o então T.S.J.M., (cfr., v.g., os Acs. 16.04.97, Proc. nº 642 e 643; de 14.05.97, Proc. nº 660; de 21.05.97, Proc. nº 675 e de 18.09.97, Proc. nº 703), somos de opinião que o dever legal dos arguidos ora recorridos de assistir e acolher em Macau o seu filho (menor), é superior ao que lhes impedia de o fazer pelo facto de ser o mesmo indocumentado.
Dúvidas não há que, na generalidade dos casos, o “interesse público” deve preferir aos “interesses privados”.
Não se pretende inverter tal situação.
Porém, “in casu”, em causa está “a integridade física e moral de um menor” que, por Lei, aos arguidos incumbe especialmente salvaguardar.
Veja-se, pois o art. 1733°, n.° 1 do C.C.M. que prescreve que “compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens”, assim como o prescrito no art. 1737°, segundo o qual “os pais não podem renunciar ao poder paternal nem a qualquer dos direitos que ele especialmente lhes confere, sem prejuízo do que neste Código se dispõe acerca da adopção”.
Da mesma forma, não nos parece que a situação “sub judice” não seja de se enquadrar na norma ínsita no artº 35º do C.P.M. – “Conflito de deveres” – na medida em que tal como vem explicitada na factualidade provada, não se nos afigura de considerar que tinham os arguidos diversas, ou outras, vias para cumprir o seu dever de cuidar do seu filho.
Com isso, refira-se, não se pretende sequer sugerir que legal foi a entrada e permanência do menor em Macau, contudo, sendo de se considerar “justificada” a conduta dos arguidos, julgava improcedente o presente recurso.
Macau, aos 20 de Outubro de 2011
José Maria Dias Azedo
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