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Processo nº 373/2011
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 29 de Setembro de 2011
Descritores: Acidente de trabalho
Predisposição patológica
Presunção de acidente

SUMÁRIO
I- A predisposição patológica a que se refere o art. 8º do DL nº 40/95/M, de 14/08 só é relevante para efeito de não exclusão do direito à reparação integral quando tiver havido, efectivamente, um acidente de trabalho, isto é, quando tiver existido uma causa próxima despoletadora da lesão da qual o sinistrado sofre sequelas, as quais que não sofreria se não fosse a causa patente ou oculta representada por aquela predisposição.
2- Para se presumir que a lesão ou doença é consequência de acidente de trabalho é preciso que ela se verifique no local e tempo de trabalho.
3- Todavia, quando tenha a seu favor tal presunção, já o trabalhador não está dispensado da prova do nexo causal entre acidente e a incapacidade.






Proc. Nº 373/2011

Acordam no Tribunal de Segunda Instância

I- Relatório

A, residente na cidade de XX, povoação de XX, vila de “XX”, província de XX, representado pelo Ministério Público, ao abrigo dos arts. 56º, al.9), nº2, da Lei de Bases da Organização Judiciária (Lei nº 9/1999) e 7º, nº1 e 60º, nº1, do Código de Processo de Trabalho (Lei nº 9/2003), intentou acção para efectivação de direitos resultantes de acidente de trabalho, pedindo a condenação da Companhia de Seguros da B (Macau), S.A.” no pagamento da indemnização por incapacidade temporária absoluta no valor global de Mop$ 590.771,78.
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Prosseguiram os autos a sua normal tramitação até à sentença, que julgou procedente a acção e, em consequência disso, condenou a ré no pagamento ao autor do valor peticionado, acrescido de juros calculados à taxa legal.
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É dessa decisão que vem interposto o presente recurso jurisdicional apresentado pela ré seguradora, cujas alegações terminaram com as seguintes conclusões:
I. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida pelo douto Tribunal Judicial de Base que julgou a acção procedente e, por entender que o acidente que atingiu o Autor A é um acidente de trabalho, condenou a Ré, ora Recorrente, no pagamento de uma indemnização no valor global de MOP$ 590,771.78 acrescido dos respectivos juros.
II. Resulta claramente que a decisão recorrida, interpretada de per si, com a experiência comum e com os elementos dos autos nela acolhidos, se encontra inquinada do vício de erro na apreciação da prova, tendo violado o disposto no art. 8º do Decreto-Lei nº 40/95/M, de 14 de Agosto, e que após a reapreciação da prova por parte desse Venerando Tribunal da Segunda Instância, deverá ser proferido douto Acórdão que considere que a hemorragia cerebral súbita donde resultou a hemiplegia esquerda não derivou de acidente de trabalho, tendo antes sido provocada por males e patologias de origem endógena, e por tanto sem conexão com o trabalho, com a consequente absolvição da Recorrente relativamente aos pedidos de compensação formulados nos autos.
III. O presente recurso versa assim sobre matéria de facto e sobre matéria de direito.
IV. Realizada audiência de discussão e julgamento entendeu o douto Tribunal a quo dar por provado que o autor foi ferido e desmaiou no supracitado local de trabalho a 28 de Agosto de 2008 pelas 19h30 (1º); que de acordo com o relatório médico emitido no dia 16 de Janeiro de 2009 pelo Hospital XX a percentagem de incapacidade para trabalho do autor é de 50% (2º); que a diagnose médico-legal clínica é: A hemorragia cerebral no gânglio basal de direito, entrando nos ventrículos, hidrocefalia obstrutiva e após recuperação haverá hemiplegia esquerda (3º); que nos termos do parecer da diagnose clínica de medicina forense feito de acordo com o ultimo relatório médico, a incapacidade permanente parcial do autor é de 50%, e a duração da ITA é de 124 dias (4º); que de acordo com a citação do parecer médico-legal “a hemorragia cerebral súbita no gânglio basal direito a qual entrou no ventrículo foi causada pela ruptura de vasos sanguíneos. (...) Com efeito, a hemorragia cerebral no gânglio Baçal tem varias causas de raiz e a mais comum são alterações patológicas cerebrovasculares., (...) é certo que a amplitude de mudança da tensão arterial e a tensão dos vasos sanguíneos vão aumentar quando estar a trabalhar, e provocará a deterioração e o agravamento de doença antiga Embora o estado de trabalho seja uma causa indutiva, distinta substancialmente das causas de raiz, mas causa indutiva também é uma causa de doença, logo existe nexo de causalidade”. (esta parte não deve ser vista como se existe por pertencer ao termo concludente) (5º); que a indemnização do período da ITA de 124 dias, ao abrigo do disposto do art 47º nº 1 al.) a do D.L. nº 40/95/M, é de MOP 33.617,78, mas o autor recebeu MOP 30.700,00, ainda lhe falta MOP 2.917,78 (6º); que o Autor ainda não recebeu as despesas hospitalares no valor total de MOP 2.254,00 (7º); que o Autor não recebeu a indemnização pelos 50% de IPP (8º); que entidade empregadora, Companhia de C LTD, transferiu a responsabilidade pelos acidentes de trabalho e doenças profissionais para a Companhia de Seguros da B (Macau) S.A., pela apólice nº CIM/ECC/2006/001269 (9º) que em 28 de Agosto de 2008, quando foi internado no Hospital XX o Autor não apresentava nenhum ferimento exterior (10º); Antes deste evento, o Autor teve a tensão arterial alta (11º); A hipertensão terá desencadeado a hemorragia cerebral súbita e desmaio súbito (12º).
V. No vertente processo, foi determinada a documentação das declarações prestadas na audiência de julgamento, existindo por isso suporte de gravação, o que permitirá ao douto Tribunal de Segunda Instância melhor avaliar, e decidir, sobre o ora invocado erro na apreciação da prova, aqui expressamente se requerendo a reapreciação da matéria de facto, nos termos admitidos no art. 629º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi art 1º do Código de Processo do Trabalho.
VI. A Recorrente, ao invocar no presente recurso o erro na apreciação da prova, que, na sua óptica, inquina a decisão proferida pelo douto Tribunal a quo, não pretende apresentar apenas uma simples discordância relativamente à interpretação dos factos feita por aquele douto Tribunal, tendo bem presente o dispositivo do art. 558º do Código de Processo Civil, e a natureza insindicável da livre convicção relativamente à apreciação da prova efectuada pelo Tribunal recorrido, e ainda estando bem ciente da jurisprudência afirmada nos Tribunais Superiores da RAEM, entendendo a Recorrente que tal se verifica na situação dos autos, e que o vício apontado à decisão recorrida resulta dos próprios elementos constantes dos autos, por si só ou com recurso às regras da experiência comum.
VII. Ou seja, o Perito Médico foi peremptório ao afirmar que foi o Autor sofria de tensão alta, tendo os vasos sanguíneos rebentado por si, sem qualquer interferência de aspectos exteriores. O rebentamento dos vasos sanguíneos teve origem na doença do Autor, nas anomalias endogénicas, tendo explicado que o que provocou o rebentamento do vaso sanguíneo foi a subida da tensão, subida essa que geralmente ocorre quando a pessoa está a trabalhar, já que quando está em descanso a pressão é diferente. No entanto, esclareceu ainda que uma pessoa com tensão baixa se começar a trabalhar e lhe subir a tensão não lhe rebentam os vãos sanguíneos provocando hemorragias. Foi categórico ao afirmar que “o facto de subir a pressão causar ou não hemorragia tem a ver com a própria pessoa”
VIII. Do depoimento prestado em audiência de julgamento pelo Dr. Vitalino Carvalho também resulta que a hemorragia cerebral e consequente hemiplegia esquerda não tem qualquer conexão com o trabalho do Autor.
IX. Do depoimento prestado em audiência de julgamento pela testemunha D técnica dos Serviços para os Assuntos Laborais, resultou que das averiguações efectuadas apurou-se que o trabalhador só prestava trabalho há cerca de 5 meses, sem prestação de trabalho extraordinários, trabalho por turnos ou desrespeito normas laborais.
X. Após reapreciação da prova efectuada em juízo por parte desse Venerando Tribunal da Segunda Instância deverá ser proferido douto Acórdão que julgue procedente o invocado vício de erro de julgamento ao dar resposta negativa aos quesitos 13º, 14º e 15º da Douta Base Instrutória, devendo antes ser dado como provado que a lesão sofrida pelo Autor foi provocada por doença que padecia muito antes daquele evento, como seja a hipertensão, ou seja por males ou patologias de origem endógena, sem conexão com o trabalho desempenhado e em consequência julgue que a hemorragia cerebral súbita não resultou de acidente de trabalho, não havendo qualquer relação entre a lesão e a actividade desenvolvida pelo trabalhador, assim se afastando a aplicação do disposto no art. 8º do Decreto-Lei nº 40/95/M, e bem assim da presunção prevista no art. 10º do mesmo diploma legal.
XI. Ainda que improceda o recurso na parte respeitante à impugnação da decisão que dirimiu a matéria de facto, face à matéria de facto tal como provada pelo douto Tribunal não estamos perante um acidente de trabalho.
XII. O acidente de trabalho é constituído por uma cadeia de factos em que cada um dos respectivos elos tem de estar entre si sucessivamente interligados por um nexo causal: o evento naturalístico tem de estar relacionado com a relação do trabalho; a lesão, perturbação ou doença terão que resultar daquele evento; e finalmente a morte ou a incapacidade para trabalho deverão resultar da lesão, perturbação funcional ou doença. De tal forma que se esse elo causal se interromper em algum dos momentos do encadeado fáctico atrás descrito, não poderemos sequer falar - pelo menos em relação àquela morte ou àquela incapacidade em acidente de trabalho. (neste sentido conferir Vitor Ribeiro, Acidentes de trabalho, Reflexões e Notas Praticas, pag. 218)
XIII. Porém, no que se refere à prova do nexo causal entre as lesões e o acidente a lei estabelece, nos artigos 8º e 10º do Decreto-lei nº 40/951M presunções a favor do sinistrado e dos seus beneficiários legais.
XIV. Resulta dos presentes autos que no dia 28 de Agosto de 2008, o Autor desmaiou, tendo sido transportado para o Hospital XX sem que apresentasse ferimentos exteriores.
XV. Assim, apenas resultou que a vítima sofreu um desmaio no seu local e tempo de trabalho.
XVI. Não se vislumbra que tenha ocorrido um evento súbito, violento, inesperado de ordem exterior que tenha desencadeado ou que seja determinante no desencadeamento do referido desmaio nem tão pouco da hemorragia cerebral que veio a ser detectada.
XVII. Deste modo, somente através do funcionamento da presunção prevista no artigo 8º e 10º do Decreto-lei nº 40/95/M seria possível estabelecer o nexo de causalidade, elo essencial para se falar em acidente de trabalho.
XVIII. Ficou provado que o Autor antes do evento tinha tensão arterial alta (resposta ao quesito 11º), e que a hipertensão terá desencadeado a hemorragia cerebral súbita e desmaio súbito (resposta ao quesito 12º).
XIX. Como explicado em sede de julgamento, a hipertensão representa a causa principal das hemorragias cerebrais. Apenas em 20% dos casos as hemorragias cerebrais resultam de mudanças patológicas cerebrovasculares ou ferimentos exteriores, o que não sucedeu in casu.
XX. Mesmo dos factos provados resulta que o desmaio e a hemorragia não tiveram qualquer relação de conexão com o trabalho desempenhado pela vítima, mas sim com uma doença degenerativa - a hipertensão - que, tal como provado, sofria antes do evento - o desmaio.
XXI. Não tendo resultado que o desmaio sofrido pelo Autor no local de trabalho e a hemorragia cerebral súbita tenha sido desenvolvimento da actividade profissional do Autor.
XXII. A hemorragia cerebral surgiu unicamente na sequência da hipertensão de que sofria, e isso resultou claro dos depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento, porquanto não se fez qualquer conexão entre a hipertensão, causador da hemorragia, e o trabalho.
XXIII. O Autor não demonstrou a ocorrência, no local e no tempo de trabalho, de qualquer evento súbito, de natureza exógena, que tivesse sido determinante para o desencadeamento da hemorragia, não obstante a existência da hipertensão.
XXIV. O Autor não conseguiu demonstrar que o trabalho prestado, naquele dia e nos dias anteriores, ou que as condições em que era prestado esse trabalho, tivessem causado a hipertensão, ou que a hemorragia tivesse sido determinada pelo trabalho e pelas condições em que esse trabalho era prestado ao longo da vigência do seu contrato de trabalho.
XXV. E assim, mesmo que se entenda que a hemorragia cerebral ocorreu no local e no tempo de trabalho e que por esta razão se deva presumir (presunção iuris tantum) que a mesma foi determinada por acidente de trabalho, terá necessariamente de concluir que a prova obtida através da referida presunção foi destruída pela prova produzida em sede de audiência de julgamento, mostrando-se, assim, ilidida tal presunção.
XXVI. A douta sentença recorrida violou o disposto nos artigos 8º e 10º do Decreto-lei nº 40/95/M, devendo por isso ser substituída por outra que considere que o enfarte do miocárdio sofrido pelo Trabalhador não resultou de acidente de trabalho, mas da aterosclerose coronária que padecia, com a consequente absolvição da Recorrente relativamente aos pedidos de compensação formulados.
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O autor, por seu turno, contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:
1- O Recorrente desvaloriza o parecer do perito médico legal e valoriza as declarações da sua testemunha o que é uma manifesta violação ao princípio de livre apreciação da prova;
2- No âmbito de acidente de trabalho, desde que a causa está relacionado com o trabalho, tem direito à reparação mesmo havendo predisposição patológica nos termos do art. 8º do DL no. 40/951M;
3- Aliás o conceito de acidente de trabalho incluiu aqueles que sejam causados indirectamente pelo trabalho;
4- A jurisprudência num caso análogo entendeu que “Assim, se um dado trabalhador tem um enfarte do miocárdio, enquanto está a desenvolver esforço físico de transporte de mercadorias, embora portador de uma predisposição para tal doença, não provando o empregador que o enfarte se ficou devendo, exclusivamente, a essa doença, tendo-se até comprovado que o esforço físico pode contribuir para a efusão da doença em causa, o acidente de trabalho não se mostra descaracterizado.”;
5- Mutatis mutandis, o referido é aplicável ao presente caso.
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Cumpre decidir.
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II- Os Factos
A sentença recorrida deu por provada a seguinte factualidade:
“ Em 19 de Novembro de 2009, na conferência para a tentativa de conciliação realizada no Ministério Público, todos os presentes concordaram e reconheceram que a proprietária das obras onde ocorreu o acidente era a Empresa de E, S.A., a respectiva empreiteira era a Companhia de F (Macau), Lda., entretanto, a proprietária das obras adjudicou parte das obras à Companhia de G, Lda. e esta contratou o autor.(A)
Contudo, na referida conferência para a tentativa de conciliação, a Companhia de Seguros da B (Macau), S.A., ora designada por Companhia de Seguros da B (Macau), S.A. não aceitou o presente caso como um acidente de trabalho, não reconhecendo a existência de nexo de causalidade entre o acidente e as lesões. (B)
Desde 1 de Agosto de 2008, o autor foi contratado pela Companhia de G Lda., exercendo funções de operário de vigas de ferro. (C)
De acordo com o n.º 4 do contrato de trabalho celebrado por ambas as partes, o salário mensal do autor era de MOP11.700,00. (D)
De acordo com o n.º 5 do contrato de trabalho celebrado por ambas as partes, a parte de empregador pode fornecer directamente à parte de empregado, alojamento ou pagar a ela, MOP500,00 por mês, a título de subsídio de residência para além do salário mensal. (E)
As duas prestações pecuniárias acima referidas constituem parte da retribuição base do autor, pelo que, o seu salário devia ser MOP12.200,00. (F)
No dia 28 de Agosto de 2008, o autor, segundo as indicações dadas pelo seu empregador Companhia de G Lda., deslocou-se a trabalhar nas obras do H. (G)
Após desmaiado, o autor foi conduzido ao Hospital XX e submetido a uma cirurgia no cérebro, tendo ficado internado no hospital até 30 de Dezembro de 2008. (H)
O autor nasceu em 12 de Março de 1957, tendo 51 anos de idade completados no dia de ocorrência de acidente. (I)
No dia de 28 de Agosto de 2008, por volta das 7H30 da tarde, o autor sofreu lesões e desmaiou no supracitado local de trabalho. (1º)
De acordo com o relatório médico feito em 16/1/2009 pelo Hospital XX, a taxa de deficiência do autor é de 50%. (2º)
Segundo consta do diagnóstico clínico de medicina legal relativo ao autor: a hemorragia cerebral no gânglio basal de direito, entrando nos ventrículos, com hidroencéfalo obstrutivo e após recuperação pode apresentar paralisia hemiplégica no lado esquerdo do corpo. (3º)
Segundo o parecer da diagnose clínica de medicina legal feito com base no último relatório médico, a taxa de deficiência do autor corresponde a “50% da incapacidade permanente parcial”, e a duração da sua incapacidade temporária absoluta é de 124 dias. (4º)
De acordo com a citação do parecer médico-legal: “... a hemorragia cerebral súbita no gânglio basal foi causada pela ruptura de vasos sanguíneos. (…) com efeito, a hemorragia cerebral no gânglio basal tem varias causas de raiz e a mais comum são alterações patológica cerebrovasculares, (…) é certo que a amplitude de mudança da tensão arterial e a tensão dos vasos sanguíneos vão aumentar quando estar a trabalhar, e provocará a deterioração e o agravamento de doença antiga. Embora o estado de trabalho seja uma causa indutiva, distinta substancialmente das causas de raiz”. (5º)
  Quanto à indemnização pela incapacidade temporária absoluta com duração de 124 dias indicada no art.º 4º, nos termos do art.º 47º, n.º1, al. a) do D.L n.º40/95/M, o respectivo montante é de MOP33.617,78, o autor só recebeu MOP30.700,00, ficando ainda MOP2.917,78 por receber. (6º)
E não recebeu ainda as despesas médicas por causa das lesões no valor total de 2.254,00. (7º)
O autor não recebeu ainda a indemnização pela incapacidade permanente parcial de 50%. (8º)
Quanto às obras em questão, a entidade patronal, Empresa de E, S.A., já adquiriu, junto da Companhia de Seguros da B (Macau), S.A., o seguro de acidente de trabalho, tendo esta, através da apólice n.º CIM/ECC/2006/001269, já transferido para a ré, a respectiva responsabilidade de indemnização pelo presente acidente. (9º)
Em 28 de Agosto de 2008, quando foi internado no Hospital XX, o autor não apresentava nenhum ferimento exterior. (10º)
Antes deste evento, o autor teve a tensão arterial alta. (11º)
A hipertensão terá, assim, desencadeado a hemorragia cerebral súbita e o desmaio súbito. (12º)
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III- O Direito
1- Introdução
A, autor da acção, no local e durante o horário de trabalho, desmaiou ao ter sido vítima de um acidente vascular cerebral, sofrendo uma hemorragia no gânglio basal direito, com infiltração nos ventrículos e com hidroencéfalo obstrutivo. Em consequência disso, foi submetido a uma cirurgia que o obrigou a permanecer no hospital durante cerca de quatro meses e de que, como sequelas, ficou a sofrer de uma deficiência e incapacidade permanente parcial de 50%.
Atendendo a este conjunto de factos isoladamente, a priori não seria difícil classificar o acidente como de trabalho1, portanto, gerador de indemnização.
Só que este trabalhador, que era operário de vigas de ferro, tinha “tensão alta” (facto 11º). Ou seja, era hipertenso. E segundo a matéria provada do facto 12º da base instrutória, a “hipertensão terá, assim, desencadeado a hemorragia cerebral súbita e o desmaio súbito”.
São estes dois factos que podem trazer alguma perturbação à perfeita subsunção do descrito acidente aos pressupostos legais de um acidente de trabalho ou às causas da reparação. Por isso é de perguntar se in casu algum factor ocorrerá a descaracterizar o evento danoso de modo a fazer perder o direito à reparação.
2- Da prova da matéria de facto
Para alguma conclusão atingirmos, importa, porém, que nos detenhamos na prova dos arts. 13º a 15º da base instrutória, que a recorrente Seguradora verbera errada.
Perguntava-se neles:
13º- Se a lesão do autor foi provocada por males ou patologias de origem endógena;
14º- Se tal lesão não tinha conexão com o trabalho desempenhado, mas sim com a doença de que o trabalhador padecia muito antes do evento, como seja a hipertensão;
15º- Se tal patologia foi a única causa da lesão.
Estes factos visavam demonstrar que o acidente não se deveu ao trabalho em si mesmo, mas sim e unicamente a uma causa de saúde intrínseca à própria vítima: a hipertensão.
A recorrente traz às alegações do recurso passagens de declarações testemunhais de onde pretende extrair argumentos em favor da sua tese. Vejamos.
A primeira passagem transcrita das declarações do perito médico Dr. I, revela que, na opinião desta testemunha, embora o trabalhador sofresse de “pressão alta”, e que essa terá sido a “base” do acidente, não deixou de acrescentar que o trabalho que desempenhava no momento teria contribuído para o aumento da pressão arterial e para a ruptura do vaso sanguíneo. Trata-se, portanto, de um testemunho, que parece querer colocar-nos perante uma predisposição para o acidente vascular, mas que não a aponta como causa do evento.
O segundo depoimento transcrito, prestado pelo Dr. Vitalino Carvalho, embora seja mais categórico em direcção diferente, isto é, no sentido de que o “trabalho com cansaço não causa hemorragia cerebral”, acabou por dizer que só se o corpo for bom é que suporta o stress, o mesmo é dizer que se o corpo não for bom, o stress pode matar: “mata se tivermos uma doença connosco” (sic). Verdadeiramente, acabou por dizer que o stress laboral pode contribuir para um estado de doença perigoso a ponto de conduzir à morte. Mas não foi imperativo ao ponto de dizer que neste caso o acidente se deveu ao stress laboral.
Finalmente, a terceira testemunha D, segundo a transcrição feita, nenhuma luz sobre o assunto trouxe. Nada sabe sobre a causa do desmaio, senão apenas que o trabalhador estava dentro do horário e no local de trabalho, sem excesso de horas de serviço e sem trabalho por turnos.
Sendo assim, e vistos os depoimentos transcritos, parece claro inferir-se que este trabalhador sofria de hipertensão e que essa doença pode (abstractamente) desencadear fenómenos de trombose e de ruptura de vasos sanguíneos. Ora, o tribunal “a quo” não deu por provado que essa fosse a causa do acidente vascular, face às respostas negativas aos quesitos 13º a 15º. E com tais respostas, avançou para uma decisão condenatória sustentada na matéria dos art. 11º e 12º e no teor do parecer médico-legal incluído no art. 5º da base instrutória.
Todavia, até estas respostas nos merecem reservas. Expliquemo-nos.
Em primeiro lugar, o parecer em causa não passa disso mesmo: de um parecer, isto é, uma opinião técnica que nem precisava de ser quesitada, podendo ser levada perfeitamente à matéria assente. Se a declaração médica resultante desse parecer fosse levado ao conjunto dos factos confirmados (assentes) isso traduzir-se-ia no reconhecimento de que o médico em causa “disse” aquilo que pensava, embora essa opinião pudesse ser contraditada em julgamento por outros meios de prova. Porquê? Porque o parecer prova apenas a existência da declaração, mas não prova que seja verdadeiro o conteúdo da declaração. E não se trata sequer de um parecer vinculativo, como se sabe.
Por outro lado, se não está provado que a lesão foi provocada por males de origem endógena do trabalhador (quesito 13º), provado também não está o seu contrário. Da mesma maneira, mesmo que não se tenha provado (quesito 15º) que a patologia de que o trabalhador sofria foi a causa única da lesão (exclusividade de causa pessoal), também nenhum facto está demonstrado que, sem dúvida, esclareça que o acidente se deveu também (concorrência de causas) ou somente ao trabalho prestado (exclusividade de causa laboral).
Quer isto dizer que a matéria de facto até agora analisada não nos permite uma conclusão indúbia.
Traído pela complexidade da matéria e, porventura, pelo jogo da presunção e do ónus probatório envolvidos no caso, o tribunal “a quo”, acabou por não reparar no alcance da resposta ao quesito 12º2. Ao dar por provada esta factualidade, deixou no ar a dúvida que precisamente se deveria dissipar. Talvez a intenção da contestante ao invocá-la (ver art. 16º da contestação) fosse a de querer atribuir à hipertensão a causa directa e única do acidente vascular ocorrido. Mas para o tribunal não podem restar dúvidas. Daí que deveria o quesito ter sido formulado em tom assertivo do género “A hipertensão desencadeou a hemorragia cerebral e o desmaio súbitos?”. Mas, em vez disso, perguntou-se se a hipertensão “terá desencadeado” a hemorragia e o desmaio súbitos, deixando no ar um halo de possibilidade, mas não de certeza. E, assim, tudo muda.
Evidentemente que na resposta a esse quesito, o tribunal podia (se tivesse elementos para tal) responder de um jeito afirmativo e peremptório tal como acima aventámos. Mas não foi dada tal resposta. A ser assim, não podemos deixar de dizer que o tribunal a quo não afirma que a hipertensão desencadeou a hemorragia e o desmaio, mas sim que estas terão sido desencadeados, isto é, podem ter sido (porventura, talvez) consequência da hipertensão (mera possibilidade, nem sequer probabilidade).
Eis, pois: é seguro que o trabalhador tinha hipertensão, mas já não é certo que esta doença desencadeou o derrame cerebral. Permanece, pois, a dúvida sobre o nexo causal.
Em suma, os elementos de prova transcritos não permitem colher a impressão sobre a causa do acidente no sentido defendido pela recorrente e, assim, a alegação sobre o erro na apreciação da prova só pode improceder.
3- Do acidente de trabalho
No que concerne ao disposto no art. 8º3 do DL nº 40/95/M, de 14/08, sistematicamente inserido no diploma antes do regime da presunção, tudo inculcaria que, devido à falta de prova de que a lesão se devera à hipertensão, o autor/recorrido não perderia direito à reparação. Sucede que este dispositivo deve ser lido como pressupondo a verificação de um acidente de trabalho no sentido estrito do termo, alguma ocorrência exógena ao trabalhador que provocou o acidente mas cujos efeitos certas causas endógenas potenciaram ou ampliaram.
Ele prevê casos em que o acidente de trabalho funciona, nesta situação, como agente ou causa próxima desencadeadora da doença ou lesão4. São aqueles em que há uma anormalidade no organismo humano que torna o indivíduo propenso para certas doenças ou agravamento de outras sob a influência de uma causa ocasional, ou em que há lesão ou doença anteriores que o acidente agravou ou que agravaram elas próprias a lesão consecutiva ao acidente 5. Ou seja, “ apenas pode dar-se relevância à predisposição patológica para os efeitos da LAT quando se verifique um acidente de trabalho, o que vale por dizer, quando exista uma causa próxima desencadeadora da lesão e o sinistrado sofre sequelas desta que não sofreria se não fosse a causa patente ou oculta em que se consubstancia a predisposição patológica” 6.
Ora, os autos não expõem um quadro de facto que revele qualquer influência externa de índole laboral (uma queda, uma pancada, um movimento brusco, um esforço incomum, etc), que possa ser considerado acidente e que possa ter despoletado a ocorrência da trombose. E assim sendo, não deve haver lugar à reparação, por inaplicabilidade do preceito.
4- A presunção de acidente laboral
Falta ainda olhar para o artigo 10º do mesmo diploma. Este preceito faz presumir, até prova em contrário, como acidente de trabalho aquela lesão ou doença que tiver sido contraída pelo trabalhador no local e no tempo do trabalho.
Claro está que se trata de uma presunção iuris tantum, ilidível, portanto, por prova em contrário. E uma vez presumido, pareceria que a consequência reparadora haveria de ser lógica. Mas não é sempre assim.
Como a jurisprudência tem entendido7, a ligação entre acidente e lesão obtém-se a partir do simples mecanismo presuntivo previsto na norma. Mas o nexo causal entre a lesão e a incapacidade já escapa à presunção e obedece às regras gerais sobre a prova, que no caso ao sinistrado incumbia fazer8. Ora, o trabalhador não foi capaz de demonstrar a causalidade entre acidente e incapacidade, justamente por não ter provado, como lhe competia, a existência de acidente de trabalho. Acidente de trabalho, claro, encarado como elemento naturalístico, inesperado, de ordem exterior ao trabalhador.
Realmente, nada aconteceu de anormal na prestação de serviço que preencha a noção de um acidente de trabalho propriamente dito do qual possa extrair-se a presunção de que a doença ou a incapacidade se consideram consequência dele (art. 10º, nº1, al.a), cit.). Apenas se sabe que a hemorragia ocorreu no local e no tempo de trabalho, mas que para ela não terá concorrido - tanto quanto se sabe - nenhuma circunstância laboral fortuita propriamente dita. E sem isso, cai por terra a presunção a que se refere o citado dispositivo legal. Neste sentido, o ac. do TSI de 23/07/2009, produzido no âmbito do Processo nº 348/2009 (citado pelo recorrido nas suas contra-alegações) não lhe presta nenhum socorro, uma vez que a situação de facto é nesse caso diferente: o trabalhador teve além um enfarte do miocárdio no momento em que desenvolvia um esforço físico de transporte de mercadorias. No nosso caso, porém, nada se sabe sobre o modo concreto como as coisas se passaram. Apenas sabemos, repetimos, que tudo se passou no local e no tempo de trabalho. É caso para perguntar: estava a trabalhar? Encontrava-se em momento de pausa? Desenvolvia algum esforço físico inusitado? Estava, portanto, a fazer o quê e em que circunstâncias, concretamente? Nada sabemos a respeito disso. Logo, não podemos afirmar com segurança qual a causa para a incapacidade.
Nada do que acabamos de dizer teria importância se tivéssemos dados que apontassem para uma concorrência de causas: acidente presumido de trabalho e predisposição patológica. Nesse caso, a reparação ocorreria ao abrigo do art. 8º (porque estaria presumido que o acidente era de trabalho ao abrigo do art. 10º). Mas, como vimos, não temos elementos de facto apurados com nitidez e segurança que nos permitam concluir que a hipertensão também concorreu para o acidente, face à resposta não conclusiva, não afirmativa, nem peremptória dada ao 12º.
Para concluir, em suma, que nem ao abrigo do art. 10º citado pode o trabalhador obter reparação, uma vez que não temos apurada a real conexão entre acidente e incapacidade.
Neste sentido, procede o recurso.
***
IV- Decidindo
Nos termos expostos, acordam em conceder provimento ao recurso interposto pela ré, revogando a sentença e, em consequência, julgando improcedente a acção e absolvendo a ré “Companhia de Seguros da B (Macau), S.A.”do pedido.
Sem custas em ambas as instâncias (cfr art. 2º, nº1, al. g), RCT).

TSI, 29 / 09 / 2011.


_________________________
José Cândido de Pinho
(Relator)

_________________________
Lai Kin Hong
(Primeiro Juiz-Adjunto)

_________________________
Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
(com declaração de voto que se segue)











Recurso nº 373/2011


Declaração de Voto

Não se pode concordar com a decisão de maioria que, tendo apreciado directamente do mérito de causa, julgou improcedentes os pedidos, com a alteração substancial da decisão recorrida, enquanto, tendo admitido a insuficiência da matéria de facto pela qual não se permita uma decisão judiciosa, não se encontra garantido o segundo grau de julgamento de matéria de facto nos termos do artigo 629º do CPC e o princípio do contraditório no julgamento do mesmo, uma vez que na primeira instância só fosse levada em consideração a causa de pedir a título de presunção de acidente do trabalho. Devia, em vez da decisão directa do mérito de causa, reenviar para novo julgamento da matéria de facto viciada.


29/09/2011
Choi Mou Pan

1 Considera-se acidente de trabalho aquele “…que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza, directa ou indirectamente, lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte a morte ou incapacidade temporária ou permanente de trabalho ou de ganho” (art. 3º, al.a), DL nº 40/95/M, de 14/08).
2 Perguntava-se se a hipertensão de que o trabalhador sofria, terá desencadeado a hemorragia cerebral e o desmaio súbitos.
3 “A predisposição patológica da vítima de um acidente de trabalho não exclui o direito à reparação integral, salvo quando tiver sido causa única da lesão ou doença ou tiver sido dolosamente ocultada” (sic).
4 Apud Carlos Alegre, in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Regime Jurídico Anotado, 2ª edição, p. 69.
5 Apud, Cruz de Carvalho, in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais", 2ª edição, p. 26.
6 Ac. do STJ, de 28/01/2004, Proc. nº 03S3405.
7 Referimo-nos à jurisprudência portuguesa produzida sobre casos semelhantes e a partir de preceitos em tudo idênticos aos que na legislação da RAEM influenciam a decisão.
8 Neste sentido, o Ac. do STJ de 19/11/2008, Proc. nº 08S2466: “V – A presunção constante do n.º 1, do artigo 7.º, do RLAT – de acordo com a qual a lesão constatada no local e no tempo de trabalho se presume, até prova em contrário, consequência de acidente de trabalho –, assenta a sua razão de ser na constatação imediata ou temporalmente próxima, de manifestações ou sinais aparentes entre o acidente e a lesão (perturbação ou doença), que justificam, na visão da lei e por razões de índole prática, baseadas na normalidade das coisas e da experiência da vida, o benefício atribuído ao sinistrado (ou aos seus beneficiários), a nível de prova, dispensando-os da demonstração directa do efectivo nexo causal entre o acidente e a lesão ou mesmo do concreto acidente gerador da lesão.
VI – As referidas presunções não abrangem o nexo de causalidade entre as lesões corporais, perturbações funcionais ou doenças contraídas no acidente e a redução da capacidade de trabalho ou de ganho, ou a morte da vítima, sendo a sua demonstração um ónus do sinistrado ou seus beneficiários”.
Ver ainda Ac. do STJ de 25/06/2008, Proc. nº 08S0236.
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