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Proc. nº 979/2009
Recurso Cível e laboral
Relaror: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 27 de Outubro de 2011
Descritores: Base instrutória
Matéria de impugnação e de excepção
Fundamentação/motivação do julgamento da matéria de facto
Remessa dos autos à 1ª instância para motivação
SUMÁRIO:
I- Os factos invocados pelos RR na sua contestação só serão levados à base instrutória quando traduzirem matéria exceptiva, por serem impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado pelo A.
II- O juiz deve explanar o iter cognoscitivo determinante do julgamento da matéria de facto, não sendo a remissão genérica para os documentos dos autos e para os depoimentos das testemunhas a forma mais consentânea com os desígnios que presidiram ao dever contido no art. 556º, nº2, do CPC.
III- Não é possível nova reclamação sobre o despacho que decide a reclamação a que se refere o art. 556º, nº5 do CPC, mas pode a respectiva matéria de facto ser objecto de impugnação no recurso da sentença final, pois para isso serevem os arts. 599º e 629º, nº1, al.a), do CPC.
IV- O tribunal “aq quem” pode, a requerimento da parte, fazer baixar os autos à 1ª instância para que fundamente/motive o julgamento de algum facto que, na análise que previamente efectuar, considere essencial ao julgamento da causa.
Proc. nº 979/2009
(recurso cível /laboral)

Acordam no Tribunal de Segunda Instância

I- Relatório

A, que também usa A ou A ou A, viúvo, de nacionalidade chinesa, residente em Macau, na rua ......, nº …, ......, e outros devidamente identificados na petição inicial moveram acção de condenação com processo ordinário contra B ou B e outros, com os demais sinais de identificação trazidos no mesmo articulado, pedindo a procedência da acção e, em consequência,:
A) Se declare a inexistência jurídica ou, subsidiariamente, a nulidade da procuração supostamente outorgada por C, falecida em 14 de Janeiro de 1994, no Cartório da Notária Privada Ana Fonseca em 24 de Novembro de 2004;
B) Se declare a ineficácia, em relação aos Autores, ou subsidiariamente, a nulidade dos contratos de compra e venda que tiveram por objecto o prédio sito em Macau, outrora com o n.º 67 da Rua da ......, composto por um terreno, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXXX, a fls. XX, do livro B11, foreiro à Região Administrativa Especial de Macau, conforme inscrição n.º XXXXX, a fls. XXX, do livro F43K e omisso na matriz predial urbana dada a sua natureza e fins, celebrados pelos Réus através da:
- escritura pública lavrada em 14 de Janeiro de 2005, a fls. XX do livro 41 do Cartório da Notária Privada Ana Fonseca, através da qual o 1.º Réu, supostamente em representação da falecida C dec1arou vender ao 2.º Réu que, por sua vez declarou comprar o imóvel em apreço pelo preço de MOP$1.000.000,00; e
- escritura pública lavrada a fls. XX do livro 14 do Cartório da Notária Privada Elisa Costa, através da qual o 2.º Réu declarou vender ao 3.º Réu e à 4.a Ré que, por seu turno, declararam comprar, o dito imóvel pelo preço de HKD$2.300.000,00;
C) Se ordene, em consequência, o cancelamento na Conservatória do Registo Predial dos registos de aquisição fundados nas mencionadas compras e vendas e lavrados a favor dos Réus, ou seja o cancelamento das inscrições n.º XXXXXX e XXXXXX, ambas do livro G;
D) Se declare serem os Autores, para todos os efeitos legais nomeadamente de registo, como titulares do domínio útil do prédio sito em Macau, outrora com o n.º 67 da Rua da ......, composto por um terreno, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXXX, a fls. XX, do livro B11, foreiro a Região Administrativa Especial de Macau, conforme inscrição n.º XXXXX, a fls. XXX, do livro F43K e omisso na matriz predial urbana dada a sua natureza e fins, por o haverem adquirido por usucapião.
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Seguiu o processo os seus normais trâmites até que, a seu tempo, foi proferida sentença que declarou a inexistência jurídica de um procuração outorgada por C e a ineficácia (ou a nulidade) dos contratos de compra e venda tendo por objecto o terreno sito no nº 67 da Rua da ......, em Macau, além de ordenar o cancelamento do registo de aquisição do prédio e declarar os autores como titulares do domínio útil por o haverem adquirido por usucapião.
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É desta decisão que vem interposto o presente recurso pelos 3º e 4º réus, em cujas alegações formularam as seguintes conclusões:

1. Por via do presente recurso pretendem as ora Recorrentes impugnar a despacho de fls. 400 que veio a indeferir a reclamação ao despacho saneador oportunamente apresentada pelos ora Recorrentes.
2. Ademais, o Acórdão de fls 494 e seguintes que decide sobre a matéria de facto julgada como provada e não provada, padece do vício de falta de fundamentação, nomeadamente na resposta ao quesito 9º da Douta Base instrutória, bem assim como de contradição e deficiência mormente entre a resposta negativa aos quesitos 26º e 27º e a resposta ao quesito 9º.
3. Pretendem ainda os Recorrentes impugnar a decisão proferida sabre a matéria de facto, nomeadamente a matéria fáctica vertida no quesito 9º, porquanto da prova produzida em sede de julgamento nunca poderia o referido quesito merecer qualquer reposta positiva.
4. Entendem os ora Recorrentes que no plano do Direito aplicável ao caso concreto a decisão recorrida violou e aplicou incorrectamente as normas jurídicas que lhe servem de fundamento.
5. O presente recurso versa assim sobre matéria de facto e sobre matéria de direito.
6. Na óptica dos ora Recorrentes, a matéria constantes nos arts. 2º, 3º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 15º, 16º, 17º, 18º, 19º, 20º, 21º, 22º e 37º da contestação mostra-se essencial para a boa decisão da causa já que a prova de tais factos afastaria por inteiro a peregrina tese da má-fé dos ora Recorrentes e da aquisição do domínio útil do prédio por usucapião por parte dos Recorridos e conduziria necessariamente à improcedência da acção.
7. Tais factos são indiscutivelmente factos extintivos do efeito jurídico dos factos articulados pelos Recorridos, e nessa medida, constituem excepção aos mesmos, como foi aliás expressamente reconhecido pelos Autores ao motivar a competente impugnação em sede de Réplica.
8. Os factos supra referidos deveriam ter sido considerados pelo Douto Tribunal como factos essenciais na medida em que se mostram indispensáveis à procedência da excepção deduzida pelos Recorrentes, razão pela qual a reclamação deveria ter sido atendida pelo Douto Tribunal a quo, e em consequência serem tais factos transpostos para a Base Instrutória.
9. Porque neste ponto a selecção da matéria de facto integrada na Base Instrutória mostrou-se deficiente, deverá ser dado provimento à reclamação ao Despacho Saneador apresentada pelos ora Recorrentes, revogando-se o despacho de fls. 400 que veio indeferir essa mesma Reclamação, e em consequência deverão ser levados à Base Instrutória através da inclusão de novos quesitos os factos vertidos nos referidos arts. 2º, 3º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 15º, 16º, 17º, 18º, 19º, 20º, 21º, 22º, e 37º da contestação dos ora Recorrentes, tudo ao abrigo do disposto no art. 430º, nº 3 do CPCM.
10. Nem do Acórdão de fls. 494, nem da resposta ao quesito 9º, nem na resposta a qualquer outro quesito resulta qualquer fundamentação tal como é exigida nos termos do art. 556º, nº 2 do CPCM.
11. O art. 556º, nº 2 do CPCM impõe ao julgador o dever de esclarecer porque é que os meios de prova determinaram a sua convicção, não se contentando, segundo a doutrina, com a fundamentação dos factos positivos, exigindo, de igual modo, que os factos não provados sejam devida e criteriosamente fundamentados, através da apreciação crítica das provas propostas pelas partes, de molde a evidenciar a razão ou razões que levam a Tribunal a concluir não serem as mesmas suficientes para infirmarem conclusão diversa da de considerar tais factos como não provados.
12. O Douto Tribunal a quo ignorou esta regra porquanto apenas se limita a fazer uma breve remissão para os depoimentos das partes, para os documentos, e para os depoimentos das testemunhas em geral, em manifesto incumprimento do disposto no nº 2 do art. 556º do CPCM.
13. Não tendo o Mmo. Juiz a quo valorado e analisado criticamente todas as provas constantes dos autos, essa decisão violou o disposto no art. 556º do CPCM, omissão que determina a remessa dos autos à 1ª instância para este suprir tal deficiência, o que se requer.
14. Foi incorrectamente julgada a matéria de facto, nomeadamente quanta ao quesito 9º da Base Instrutória.
15. Os Recorridos não lograram provar qualquer ligação dos Recorrentes ao 1º e ao 2º Réu, nem tão pouco conseguiram provar que os Recorrentes tivessem qualquer conhecimento de que a primeira venda houvesse sido efectuada através de uma procuração falsa.
16. Considerando uma melhor análise dos depoimentos de parte prestados pelos Recorrentes em sede de audiência de julgamento, não poderia o Tribunal a quo deixar de dar uma resposta negativa ao quesito 9º, porquanto ambos foram peremptórios em explicar ao Tribunal quais as suas reais intenções na compra do imóvel em causa.
17. Os Recorrentes não conheciam sequer o vendedor do imóvel, apenas o conhecendo no dia da escritura, tendo confiado na legalidade do negócio que realizaram.
18. Não resulta dos depoimentos de parte prestados pelos Recorrentes nem de quaisquer outro depoimento testemunhal que os Recorrentes houvessem de algum modo suspeitado que a primeira venda havia tido por base uma procuração falsa.,
19. A Resposta ao quesito 9º foi incorrectamente julgada pelo Douto Tribunal a quo, e deverá ser alterada no sentido de ser dada uma reposta negativa porquanto resulta claro dos depoimentos de parte prestados pelos Recorrentes que não houve qualquer conhecimento, ainda que indirecto, ou qualquer suspeita da existência de uma procuração falsa ou qualquer conhecimento, ainda que indirecto, ou qualquer suspeita das circunstâncias que rodearam a primeira venda do imóvel em causa.
20. A inexistência de negócio é figura não prevista, em termos genéricos, no nosso direito civil, surgindo, apenas, expressamente referida em relação ao casamento, sendo certo também que a inexistência como categoria jurídica autónoma de invalidade é contestada e negada por parte da doutrina que a considera apenas uma forma rigorosa de nulidade.
21. A noção de inexistência jurídica defendida por alguns Autores e verificada “quando nem sequer aparentemente se verifica o corpus de certo negócio jurídico (a materialidade que corresponde à noção de tal negócio) ou, existindo embora na aparência, a realidade não corresponde a tal noção” não se ajusta ao negócio celebrado entre o pretenso procurador e a 1º Réu, já que, este não enferma de tão gravoso vício porque o negócio teve existência material e foi validamente celebrado, produzindo os seus efeitos próprios.
22. Não se pode falar em inexistência. O negócio estará, quanto muito, ferido de nulidade.
23. E ainda que vingasse a inexistência da compra e venda celebrada entre o 1º e 2º Réus, ela nunca seria estendida às vendas subsequentes, ou seja, ao negócio negócio celebrado entre o 2º e os 3º e 4º Réus.
24. Improcede assim a extensão da figura da inexistência do negócio celebrado entre o 1º e 2º Réus ao negócio celebrado entre o 2º Réu e os Recorrentes.
25. Não ficaram provados factos alegados pelos Recorridos que eram manifestamente relevantes para a procedência da acção relativamente aos ora Recorrentes, tais como o conhecimento por parte dos Recorrentes de que não havia sido a C quem outorgou a procuração em discussão nos autos, mas alguém que se fez passar por ela, tal como resulta da resposta ao quesito 9º.
26. A transmissão dos direitos reais produz-se por mero efeito do contrate conforme o princípio estabelecido nos arts. 1242º, al. a) e 402º do Código Civil.
27. A par deste princípio da consensualidade há que ter em atenção as regras do registo predial (Art. 5º, 7º e 10º do Código de Registo Predial).
28. Tendo os ora Recorrentes adquirido o imóvel em causa a titulo oneroso, através de escritura pública de compra e venda e procedido ao respectivo registo da sua aquisição, e com desconhecimento de eventual vício do primeiro negócio, beneficiam por um lado da presunção de que o direito existe e que lhe pertence (art. 7º do Código de Registo Predial), e por outro lado da regra da oponibilidade a terceiros prevista no art. 5º do Código de Registo Predial.
29. O princípio da inoponibilidade da nulidade a terceiro de boa fé encontra consagração no art. 284º do Código Civil. Trata-se de um desvio ao princípio geral do art. 282º do Código Civil, que se justifica pelo princípio da fé pública resultante do registo.
30. Tal regime tem ainda como pressuposto uma pendência de um ano sobre a conclusão do negócio inválido, durante a qual a acção de nulidade ou anulação produz os seus efeitos, nos termos do disposto no nº 2 do art. 284º do Código Civil, disposição esta aplic8vel as alienações sucessivas, e por conseguinte ao caso em apreço.
31. No caso em apreço verificam-sec1aramente preenchidos os pressupostos da excepção ao princípio fundamental da aquisição derivada.
32. Os Recorridos não lograram provar que os Recorrentes agiram de má fé na concretização do negócio com conhecimento do vido que esteve na base da primeira venda realizada com o 2º Réu.
33. Da resposta ao quesito 9º, ainda que a mesma padeça de obscuridade, não pode nunca resultar a conclusão de que os Recorrentes sabiam que a primeira venda havia sido realizada com base numa procuração falsa.
34. E da resposta negativa aos quesitos 26º e 27º da base instrutória não resulta que os Recorrentes tivessem conhecimento do vício que precedia o negócio.
35. Houve incumprimento do ónus da prova por banda da Recorridos já que atenta a regra geral de repartição do ónus da prova (artigo 335º, nº 1 do Código Civil), era aos Recorridos quem competia fazer prova daqueles factos e não aos Recorrentes que competia fazer prova da sua não verificação.
36. Verificam-se preenchidos in casu os pressupostos consagrados pelo princípio consagrado no art. 284º, nº 1 e 2 do Código Civil.
37. Pelo exposto, julgando-se nula a alegada compra e venda celebrada entre o 1º e o 2º Réu, tal nulidade será sempre inoponível aos ora Recorrentes, sub-adquirentes de boa fé.
38. Os Recorridos beneficiam da protecção legal a qual terá que conduzir obviamente à improcedência quer da declaração de ineficácia do negócio celebrado entre o 2º Réu e os Recorrentes, quer do pedido de cancelamento dos respectivos registos, quer da aquisição originária do prédio pelos Recorridos por usucapião.
39. A Decisão Recorrida violou nesta matéria os artigos 5º e 7º do Código de Registo predial e os artigos 284º e 335º do Código Civil.
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Os AA concluíram as suas contra-alegações do seguinte modo:
1. Por requerimento de fls. 579 vieram os Réus D e E interpor recurso da douta sentença que julgou a presente acção totalmente procedente por provada.
2. Além dos factos dados como assentes logo no despacho que seleccionou a matéria de facto com relevo par a decisão da causa e aqueles que resultaram provados das respostas aos artigos que integravam a base instrutória, também os factos que o Tribunal considerou assentes no âmbito dos Autos de Restituição Provisória de Posse apensos aos presentes terão de ser também levados em linha de conta na formulação da decisão de direito ou, caso assim não se entenda, serão sempre indícios a considerar pelo Tribunal no desfecho a dar ao presente processo.
3. Os referidos factos são, por força do disposto no n.º 2 do artigo 434.º do CPC, factos que o Tribunal teve conhecimento em virtude do exercício das suas funções e que, como tal, não carecem sequer de alegação.
4. Por outro lado, é de salientar que, à semelhança do sucedido nos presentes autos, também nos autos de providência cautelar a ele apensos, os aí Requeridos ora Recorrentes não impugnaram o julgamento da referida matéria de facto do que se pode inferir a sua inteira concordância com o mesmo, bem como o expresso reconhecimento de que em ambos os processos não constam quaisquer outros meios de prova que impusessem ao Tribunal a quo uma decisão diversa da proferida.
5. No capítulo III das suas alegações, os Recorrentes impugnam o despacho que decidiu as reclamações contra a selecção da matéria de facto considerada assente ou integrada na base instrutória e que não admitiu a transposição par a base instrutória dos artigos 2.º, 3.º, 5.º a 12.º, 15.º a 22.º e 37.º da sua contestação.
6. Começando pelos factos que, segundo os Recorrentes se destinariam a provar a sua suposta boa fé, é evidente a sua falta de razão na impugnação que fazem do despacho de fls. 400, não só porque efectivamente a base instrutória consagrou dois artigos que se reportam e se destinariam a provar essa pretensa boa fé, mas também porque os artigos da contestação que pretenderiam ver integrados na base Instrutória são totalmente irrelevantes para a apreciação da questão de direito em apreço nos autos, segundo as suas várias soluções plausíveis, o que face ao disposto no artigo 430.º do CPC impede a sua quesitação.
7. A noção de boa fé que aqui releva é aquela que resulta do disposto no n.º 4 do artigo 284.º do Código Civil: é “considerada de boa fé o terceiro adquirente que no momento de aquisição desconhecia, sem culpa, o vício. do negócio nulo ou anulável”, pelo que para se apurar da suposta boa fé dos Réus Recorrentes interessaria apenas saber se, no momento em que adquiriram o PRÉDIO desconheciam, sem culpa, que o referido imóvel havia sido transmitido ao anterior adquirente - o 2.º Réu – através do uso de uma procuração falsa, falsidade essa que constitui o vício que esteve na base de todos estes negócios.
8. No artigo 91.º da sua contestação o 3.º e 4.ª Réus alegaram, com efeito, o referido desconhecimento, alegando também no artigo 113.º da citada peça que sempre agiram na convicção de que haviam adquirido o PRÉOIO ao legítimo alienante, pelo que tendo esta matéria sido transposta para os artigos 26.º e 27.º da base instrutória é descabida a alegação de que o Tribunal a quo não atendeu ou não considerou como essencial na selecção da matéria de facto relevante para a decisão da causa a discussão da alegada boa fé dos Recorrentes.
9. No despacho a que alude o artigo 430.º do CPC, impõem-se ao julgador que reduza o pleito precisamente aos pontos essenciais e relevantes, que foi o que sucedeu in casu ao incluir-se na base instrutória os artigos 91.º e 113.º da contestação dos Recorrentes, permitindo-se a discussão e a prova da sua boa fé o que, relembre-se, não lograram fazer.
10. É que, a matéria de facto alegada pelos Recorrentes nos artigos 2.º, 3.º, 5.º a 12.º e 37.º da sua contestação é verdadeiramente irrelevante para a apreciação do mérito da causa, pois ainda que os referidos factos tivessem sido integrados na base ar instrutória e tivessem sido considerados assentes pelo Tribunal Colectivo, dos mesmos não seria nunca possível inferir ou concluir pela boa fé dos Réus e, como tal, nenhuma consequência daí derivaria para a apreciação da nulidade que atinge a aquisição que fizeram do PRÉDIO.
11. Acresce que, “havendo facto principal”, como são aqueles que se referem aos artigos 26.º e 27.º da base instrutória, “não devem condensar-se os factos instrumentais”, como o seriam os artigos 2.º, 3.º, 5.º a 12.º e 37.º da contestação” pois o “critério de selecção dos factos vem no art. 430.º, n.º 1 do n.º 1 do Código de Processo Civil, que dispõe que deve ser seleccionada a “matéria de facto relevante, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito”. Este critério aponta para que sejam só seleccionados os factos essenciais e não também instrumentais. Esta conclusão sai reforçada da leitura dos arts. 553.º, n.º 2, al. f) e 5.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, ao mandar considerar na base instrutória apenas os factos instrumentais não alegados pelas partes, mas que resultem da discussão da causa”.
12. Por outro lado, o recurso dos Recorrentes sobre o despacho que seleccionou a matéria de facto assente e que não admitiu a inclusão na base instrutória da matéria de facto vertida nos citados artigos 2.º, 3.º, 5.º a 12.º e 37.º, é absolutamente inútil uma vez que, ainda que viesse a obter provimento, o mesmo teria apenas como consequência a repetição do julgamento a fim de ser produzida prova quanto à aludida matéria, não implicando a anulação das respostas proferidas pelo Tribunal Colectivo (e a realização de um novo julgamento) aos restantes artigos da base instrutória, uma vez que dos referidos artigos da contestação (assumindo que essa matéria viesse a ser considerada provada) não resulta qualquer contradição com os factos que o Tribuna1 Colectivo já deu como assentes não provados, mormente aqueles que resultam das respostas aos quesitos 9.º, 26.º e 27.º da base instrutória.
13. Quanto ao segundo de grupo de factos - vertidos nos artigos 15.º, 16.º, 18.º e 19.º da contestação dos Recorrentes - e que se referem a uma alegada posse que estes vinham exercendo sobre o PRÉDIO, não merece também qualquer censura a decisão proferida no despacho que decidiu as reclamações à selecção da matéria de facto relevante para a decisão da causa e que determinou a não inclusão da aludida matéria na base instrutória.
14. Tendo sido os Autores a deduzir um pedido de aquisição do PRÉDIO por usucapião, para averiguar da viabilidade deste pedido interessa apenas apurar se os Autores vêm mantendo sobre o referido imóvel uma posse com os caracteres e pelo tempo que lhes permita invocar aquela aquisição originária, como tal apenas os factos alegados pelos Autores e que pretendem demonstrar essa posse merecem ser quesitados, pois é sobre eles que recai o ónus da prova dos factos que constituem a causa de pedir do mencionado pedido.
15. “atenta a distribuição do ónus da prova, é aos autores que cabe provar os concretos vícios contratuais que alegaram e o facto aquisitivo do direito de propriedade que invocam, não sendo os réus que têm que provar que tais factos não ocorreram e/ou que ocorreram factos contrários. Assim, se o autor não lograr provar aqueles factos, os réus serão absolvidos, sem qualquer necessidade de o tribunal apreciar os factos em reclamação”.
16. Termos em que, deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelos Recorrentes ao despacho de fls. 400, que indeferiu a reclamação por eles apresentada a fls. 365 a 367, mantendo-se a base instrutória nos precisos termos que constam do despacho de fls. 358.
17. No capítulo IV das suas alegações os Recorrentes atacam a fundamentação constante do acórdão proferido sobre o Tribunal Colectivo sobre a matéria de facto uma vez que, segundo os mesmos, “não resulta qualquer fundamentação tal como é exigida processualmente, nem na resposta a qualquer outro quesito”.
18. Conforme foi decidido por este Venerando Tribunal no Acórdão proferido em 30/04/08 no âmbito dos Autos de Recurso Civil e Laboral n.º 413/2006, o conteúdo da “fundamentação mostra-se conforme aos ditames adoptados pelos nossos Tribunais, se daí se alcança quais as provas em que se baseou essa convicção, razão de ciência e a forma como as testemunhas depuseram”, circunstância que, in casu, não parece suscitar quaisquer dúvidas e que é demonstrada pelo facto de os Recorrentes, na reclamação que apresentaram ao referido acórdão, não terem arguido a sua alegada deficiente fundamentação, o que revela que alcançaram com plenitude as provas e os elementos em que o Tribunal Colectivo baseou e forjou a sua convicção na resposta que proferiu aos quesitos constantes da base instrutória.
19. Termos em que, também nesta parte deverá ser nagado provimento ao recurso interposto pelos Recorrentes, indeferindo-se o seu pedido de baixarem os autos novamente à primeira instância a fim de o Tribunal Colectivo oparar nova fundamentação do acórdão proferido sobre a matéria de facto.
20. No capítulo V das suas alegações os Recorrentes impugnam o julgamento da matéria de facto limitando impugnação à resposta dada pelo Tribunal Colectivo ao quesito 9º.
21. O único meio probatório concreto constante do processo indicado pelos Recorrentes como sendo aquele que imporia que o Tribunal Colectivo desse o quesito 9.º como não provado foi o depoimento prestado pelos próprios Recorrentes em sede de audiência de discussão e julgamento, requerido pelos Autores ao abrigo do disposto nos artigos 477.º e seguintes do Código de Processo Civil, para efeitos de confissão, e admitido por despacho de fls. 477.
22. Por outro lado, conforme se comprova pela acta relativa à audiência de discussão e julgamento realizada nos presentes autos, os Recorrentes não confessaram a matéria do referido quesito.
23. Nos termos dos artigos 345.º e seguintes do Código Civil e dos artigos 477.º e seguintes do CPC, o depoimento de parte é o meio técnico pelo qual se pretende conseguir que o depoente reconheça a realidade de um facto que lhe é desfavorável, resultando destas disposições legais a óbvia impossibilidade legal de o depoimento de parte servir, só por si, para não provar um facto desfavorável ao próprio depoente.
24. Assim, se tal depoimento, sob pena da mais crua violação dos artigos 477.º e seguintes do CPC e 345.º e seguintes do Código Civil, nunca poderia, por si só, servir de fundamento para o Tribunal Colectivo responder não provado à matéria do quesito 9.º, o mesmo não podará também servir para operar qualquer alteração da decisão de facto relativamente ao mencionado quesito, pois o depoimento de parte e meio probatório processualmente inidóneo para só por si fazer contraprova de um facto desfavorável ao depoente, pelo que se afigura não mais não restar a este Venerando Tribunal do que, de imediato ,rejeitar, nesta par te o recurso do 3.º e4.ª Réus.
25. No entanto, sempre dirá que, face à prova produzida não merece qualquer censura a resposta dada pelo Tribunal Colectivo à matéria do artigo 9.º da base instrutória.
26. Desde logo, o próprio depoimento de parte dos Recorrentes que, embora não tendo resultado em confissão, revela indícios seguros da sua má consciência ou seja de que suspeitavam de que na génese destes negócios repousava uma ilicitude.
27. Em primeiro lugar, a preocupação do 3.º Réu D em, a todo custo, demonstrar que não conhecia o 2.º Réu F soa a falso e é desmentida pelos próprio factos que alegou na sua contestação, nomeadamente no artigo 9.º onde expressamente se alega que a negociação tendente á compra do PRÉDIO foi levada a cabo directamente entre ele e o 2.oRéu.
28. Por outro lado, a hesitação revelada e os subterfúgios usados pelo 3.º Réu par a fugir a uma questão de natureza simples colocada pelo mandatário dos Autores - se aquele sabia “quem lhe vendeu este terreno?” - e que alguém de boa fé se limitaria a responder de forma directa e objectiva fere de morte a tentativa de os Recorrentes demonstrarem que estão de boa fé.
29. Pelo depoimento que prestou ficou-se a saber que a 4.ª Ré, ao contrário do que alguém de boa fé faria, decidiu avançar para este investimento após uma visita nocturna ao PRÉDIO, onde reconheceu nunca ter entrado, mostrando, por outro lado, um absoluto desconhecimento das reais características deste imóvel, o que diz bem da consciência que os Recorrentes tinham da ilicitude que manchava todas estas transacções.
30. Acresce que, o pretenso desconhecimento que a 4.ª Ré alega ter do processo-crime que julgou a falsidade da procuração e onde esteve em análise um pedido de declaração de nulidade das compras e vendas em apreço é inaceitável e revela também a má fé dos Recorrentes.
31. Por último, do depoimento da 4.ª Ré resulte que o 3.º Réu faltou à verdade quando disse que não conhecia o 2.º Réu, pois a 4.ª Ré afirmou precisamente o contrário.
32. Com efeito, resultou provado da prova testemunhal que os Réus, antes da celebração das escrituras públicas de compra e venda do PRÉDIO, não efectuaram quaisquer diligências no sentido de procurar saber a sua real situação ou tão pouco se deslocaram a este imóvel; jamais procuraram contactar com a suposta mandante e titular registada do PRÉDIO ou os Autores de forma a obterem a confirmação dos poderes do suposto procurador e a indagar sobre a verdadeira situação do imóvel; e também jamais tomaram posse ou obtiveram a tradição deste imóvel.
33. Toda a prova documental junta aos presentes autos pelos Autores afina pelo mesmo diapasão: a mesma constitui um suporte sólido para se concluir que não merece qualquer censura a resposta que o Tribunal Colectivo deu ao artigo 9.º da base instrutória.
34. Nomeadamente dos ofícios juntos a fls. 454 e o ofício da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes que os Réus, nomeadamente os Recorrentes, não levaram a cabo qualquer indagação junto dos serviços públicos competentes, mormente do referido organismo e do Instituto Cultural de Macau, de modo a apurar da possibilidade de aproveitamento urbanístico deste imóvel.
35. A confirmar a má fé dos Réus esta de igual modo a sua total ausência do processo-crime que julgou a falsidade da procuração a que se vem fazendo referência e que se encontra provada documentalmente e pôde ser verificada pelo Tribunal (vide despacho de fls. 447).
36. O mesmo se diga do facto de os Recorrentes até hoje nada terem feito quanto à proibição de alienação e transacção que continua a impender sobre o PRÉDIO, traduzida na apreensão decretada no âmbito dos Autos de Processo Comum Colectivo n.º CR1-05-0250-PCC e cujo registo, lavrado por averbamento à inscrição de aquisição do PRÉDIO a favor do 3.º Réu e da 4.º Ré, se traduz num gravoso ónus que faz presumir ter aquela aquisição sido processada com má fé.
37. É também preciso não esquecer que a convicção do julgador sobre a resposta a um quesito, pode ser formada com base nas respostas a outros quesitos, ora as repostas aos quesito 10.º a 24.º que demonstram por um lado a posse que os Autores vêm exercendo sobre o PRÉDIO e o absoluto e total controlo que sobre ele mantêm mesmo depois dos negócios celebrados pelos Réus e, por outro, que os Recorrentes e o 2.º Réu jamais obtiveram a tradição do imóvel em apreço, praticaram em relação ao mesmo quaisquer actos materiais correspondentes ao direito de propriedade ou actuaram com a convicção de serem titulares do PRÉDIO revelam quão ajustada foi a decisão do Tribunal Colectivo quanto ao quesito 9.º, pois alguém que adquire um imóvel de boa fé não deixará nunca de, ao menos, procurar obstar à posse que outrem que nem sequer foi o transmitente do direito.
38. Termos em que deverá o recurso interposto pelos Recorrentes sobre o acórdão proferido sobre a matéria de facto, no que se refere a resposta dada ao quesito 9.º ser julgado improcedente mantendo-se a referida resposta nos precisos termos que constam do acórdão de fls. 494 e seguintes.
39. No capítulo V das suas alegações, que intitulam de Da nulidade das compras e vendas, os Recorrentes põem em causa as decisões que declararam a procuração referida nos artigos 4.º e 5.º da base instrutória e a ineficácia, em relação aos Autores, das compras e vendas celebradas pelos Réus.
40. Ora, ao contrário do afirmado pelos Recorrentes, a corrente maioritária da doutrina e a totalidade da jurisprudência sempre consagraram a inexistência como uma invalidade autónoma.
41. Veja-se, entre outras, a douta sentença proferida por este mesmo Tribunal no âmbito dos Autos de Acção Ordinária n.º 222/96, que correram termos pelo então 6.º Juízo - em que esteve também em análise a existência de uma procuração contendo poderes para a disposição de um prédio falsa e que, por esse facto, foi considerada inexistente pelo Tribunal - que decidiu que se verifica “a inexistência do negócio jurídico quando este não tem sequer a aparência típica de um negócio jurídico, quando falta declaração e vontade de uma das partes, de tal modo que a realidade de facto não apresenta nem os caracteres necessários para se aplicarem as normas que ferem de nulidade absoluta ou relativa, os contratos e os negócios jurídicos.”.
42. Assim, tendo ficado assente que a procuração que esteve na génese da transmissão do PRÉDIO a favor dos Réus é produto de uma falsificação e em que, como tal, falta a declaração e a vontade do alegado autor do acto, a falecida C, outra consequência não poderá haver senão considerar-se que tal instrumento é juridicamente inexistente.
43. Por outro lado, a consequência que a inexistência do referido instrumento acarreta em relação às compras e vendas do PRÉDIO celebradas pelos Réus é que as mesmas são também inexistentes e, por isso, ineficazes e incapazes de produzir quaisquer efeitos em relação aos Recorridos.
44. A situação em apreço nos autos é não só subsumível, como refere e bem a douta sentença recorrida, na figura da falta de vontade prevista no artigo 239.º do Código Civil, como na figura da representação sem poderes prevista no artigo 261.º do mesmo diploma.
45. Não tendo havido declaração de vontade na outorga da falsa procuração – sendo que a mesma seria impossível sequer de se verificar uma vez que a declarante, à data da pretensa e falsa declaração, já não era viva - nunca a mesma poderia vincular juridicamente a falecida C e, obviamente, os Autores.
46. Efectivamente, ao nunca ter querido a verificação de quaisquer dos efeitos negociais que foram gerados pela falsa procuração, a declaração nela contida é inexistente e, portanto inapta e incapaz de produzir quaisquer efeitos laterais legais de natureza negocial, como as compras e vendas celebradas pelos Réus e que, na sua génese, tiveram a referida procuração.
47. Pelo que, ao contrário do que parecem aventar os Recorrentes, “a falta de declaração de vontade num negócio não conduz à respectiva nulidade mas, pura e simplesmente, à. Inexistência” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29/11/95, disponível em www.dgsi.pt).
48. O disposto no artigo 261.º do Código Civil (relativa à representação sem poderes) e que no seu n.º 1 considera que o “negócio que uma pessoa sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado”, permite chegar a idêntica conclusão.
49. Acresce que, no presente caso estar-se-ia perante uma ineficácia absoluta já que, pelo fado de a suposta mandante C ter falecido em 1994, o acto realizado pelo 1.º Réu jamais poderia ser ratificado. Como não houve, nem podaria ter havido ratificação, relativamente aos Autores tudo se passa como se as compra e vendas celebradas pelos Réus não houvessem sido celebradas, continuando o PRÉDIO a pertencer-lhes.
50. Por outro lado, ao contrário do que defendem os Recorrentes, a circunstância de na segunda das compras e vendas do PRÉDIO não ter sido utilizada a procuração falsa não isenta este negócio do vício da ineficácia uma vez que, a inexistência e, consequentemente, a ineficácia do primeiro negócio estende-se e atinge naturalmente os actos subsequentes, tudo se passando em relação aos Autores como se nenhum daqueles negócios tivesse ocorrido.
51. Esta segunda venda do PRÉDIO, efectuada pelo 2.º Réu a favor dos Recorrentes, configura mesmo uma venda a non domino ou seja uma venda de bem alheio, pois aquele, como se viu, carecia em absoluto de legitimidade para a realizar, o que significa que o aludido negócio está sujeito ao regime previsto no artigo 882.º do Código. Civil que prevê como nulas quaisquer vendas de bens alheios.
52. No entanto e sem embargo do supra exposto ,esta segunda transmissão, é em relação aos Autores não só nula mas igualmente ineficaz.
53. Acresce que, ao contrário do que pensam os Recorrentes, o registo predial adoptado em Macau é meramente declarativo e não constitutivo de direitos, pelo que a presunção de que o direito registado existe e pertence à pessoa em cujo nome esteja inscrito é tantum juris, podendo ser ilidida por prova em contrário, como sucedeu no caso dos autos, pois a circunstância de o 2.º Réu ter adquirido o imóvel com base numa falsa procuração impede que essa aquisição produza quaisquer efeitos em relação à anterior proprietária e aos Autores, seus legítimos sucessores.
54. Carecendo, como tal, o 2.º Réu de legitimidade para vender o PRÉDIO aos Recorrentes esta venda é nula por se tratar da venda de um bem alheio. Tal nulidade, como acima se referiu, não se estabelece, porém, em relação ao verdadeiro dono da coisa, pois aplica-se apenas na relação entre o 2.º Réu e os Recorrentes. Perante os verdadeiros titulares do PRÉDIO, o contrato de compra e venda celebrado entre o 2.º Réu e os Recorrentes não tem também qualquer valor, operando-se a ineficácia ipso jure por que não lhe é aplicável o artigo 284.º do Código Civil.
55. Doutro passo, na situação em apreço na presente acção, o regime estipulado no artigo 284.º do Código Civil, que estabelece, uma vez preenchidos os pressupostos aí elencados, a inoponibilidade a terceiro de boa fé (que não é o caso dos Réus e Recorrentes) da declaração de nulidade do negócio jurídico, é pura e simplesmente inaplicável.
56. Mas o certo é que, os Recorridos lograram provar a má fé de todos os Réus no momento da celebração destes negócio o que, desde logo, afasta qualquer pretensão de beneficiarem da inoponibilidade prevista no artigo 284.º do Código Civi1.
57. Não houve, como tal, qualquer incumprimento o ónus da prova por banda dos Recorridos, uma vez que estes lograram provar que os Recorrentes e também os restantes Réus, não estavam convictos da licitude dos actos que praticaram e que pelo contrário, não ignoravam que o PRÉDIO havia sido transmitido ao 2,º Réu através de um acto ilícito.
58. Deste modo, a invocação pelos Recorrentes do disposto nos artigos 1242.º, alínea a) e 402.º do Código Civil, bem como dos artigos 5.º,7.º e 10.º do Código do Registo Predial não tem qualquer sentido pois como é óbvio os contratos produzem efeitos apenas quando são validos, o que não é o caso dos que foram celebrados pelos Réus. Por outro lado, não sendo o registo predial constitutivo do direito de propriedade, o facto de o PRÉDIO ter sido registado em nome do 2.º Réu não significa que este era o seu legítimo titular e que, portanto, o poderia transmitir aos Recorrentes.
59. Porém, ainda que os Recorrentes se encontrassem de boa fé, o que não sucedeu, in casu sempre se teria de considerar que o referido requisito previsto n.º 2 do citado artigo 284.º - acção de nulidade proposta e registada dentro do ano posterior à conclusão do negócio - foi satisfeito, pelo facto de a presente acção ter dado entrada em Tribunal e sido registada antes de decorrido um ano sobre o fim do processo-crime a que se vem fazendo alusão e onde esteve em julgamento um pedido cível que visava precisamente essa declaração de nulidade.
60. Sendo que, o registo da mencionada apreensão (apenas dois meses após a realização da primeira das compras e vendas fraudulentas que tiveram por objecto o PRÉDIO), através da qual se decretou a proibição de poder ser feita qualquer alienação ou transacção em relação ao PRÉDIO, tem a mesma natureza e efeito que o registo da acção a que alude o artigo 284.º do Código Civil, que é o de impedir que o direito de propriedade que, pretensamente, o 2.º e 3.º Réus e a 4.a Ré adquiriram, se pudesse consolidar.
61. Não houve da parte da decisão recorrida qualquer violação dos artigos 5.º e 7.º do Código do Registo Predial, nem tão pouco dos artigos 284.º e 335.º do Código Civil, pelo são também de improceder todos os argumentos de que os Réus lançam mão no capítulo VII das suas alegações.
62. Recorde-se ainda que, o Tribunal declarou para todos os efeitos legais nomeadamente de registo, os ora Recorridos como os titulares do domínio útil do referido imóvel por o haverem adquirido por usucapião.
63. Sucede que, os Recorrentes nada disseram em contrário desta decisão. Efectivamente, das suas alegações não consta qualquer impugnação sobre o julgamento efectuado pelo Tribunal a quo do pedido de usucapião formulado pelos Autores, contido a fls. 561 verso e seguintes da sentença recorrida, nem tão pouco os Recorrentes impugnaram o julgamento da matéria de facto aos citados quesitos 10.º a24.º,
64. Ora, a não impugnação da decisão proferida sobre o pedido formulado pelos Recorridos de aquisição do domínio útil do PRÉDIO por usucapião, significa que os Recorrentes se conformaram com a mesma e tem como consequência o respectivo trânsito em julgado. Tal consequência é, com efeito, ditada pelo facto de os Recorrentes nada terem dito quanto a uma eventual discordância sobre a decisão do pedido em apreço, nem no corpo das suas alegações de recurso, nem tão pouco nas respectivas conclusões.
65. A circunstância de a referida decisão se ter tornado definitiva impede – independentemente da apreciação de quaisquer das questões relativas à invalidade e efeitos dos negócios efectuados pelos Réus – que os direitos (designadamente a titularidade) que os Recorrentes reclamam em relação PRÉDIO possam vir a ser reconhecidos.
66. É que, uma vez que a aquisição por usucapião produz efeitos desde a data do início da posse, provocando a extinção de quaisquer direitos incompatíveis, também por este motivo as compras e vendas efectuadas pelos Réus em relação ao PRÉDIO teriam sempre de ser tratadas e encaradas como venda de um bem alheio e, portanto, nulas e totalmente ineficazes em relação aos Autores.
67. Finalmente, sendo a usucapião uma modalidade de aquisição originária, a mesma não cede nunca perante registo anterior, como aqueles que foram lavrados a favor dos Réus, urna vez que a usucapião em nada é prejudicada pelas vicissitudes registrais. Com efeito, a alínea a) do n.o 2 do artigo 5.º do Código do Registo Predial estipula que a aquisição por usucapião constitui uma excepção à regra da eficácia contra terceiros dos factos sujeitos a registo , nomeadamente do direito de propriedade.
Termos em que, deverá o recurso interposto pelo 3.º Réu e pela 4.ª Ré, (i) do douto despacho de fls. 400, na parte em que indeferiu a reclamação apresentada pelos Recorrentes ao despacho que procedeu à selecção da matéria de facto assente e aquela que integra a base instrutória; (ii) do acórdão sobre a matéria de facto de fls. 494, quanto à resposta dada pelo Tribunal Colectivo ao quesito 9.º; e (iii) da douta sentença de fls. 527 e seguintes, ser totalmente indeferido mantendo-se as referidas decisões judiciais nos precisos termos em que foram proferidas, com o que V. Exas. farão a habitual JUSTIÇA!
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Cumpre decidir.
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II- Os Factos
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
- Pela inscrição nº XXXXX, a fls. XX, verso, do livro G27, com apresentação de 30/12/1964, está inscrita na Conservatória do Registo Predial de Macau a aquisição por compra, a favor de C, do prédio urbano sito em Macau, na frequesia de S. Lourenço, outrora com o nº 67 da Rua da ......, composto por um terreno, descrito na Conservatório Predial de Macau sob o nº XXXX, a fls. XX, do livro B11, e omisso na matriz predial respectiva (alínea A) da Especificação).
- A aquisição, por compra, do prédio referido em A) mostra-se registada a favor do 2º Réu por apresentação de 18/01/2005 (alínea B) da Especificação).
- A aquisição, por compra, do prédio referido em A) mostra-se registada a favor dos 3º e 4º Réus por apresentação de 23/02/2005 (alínea C) da Especificação).
- A presente acção mostra-se registada por apresentação de 24/0112008 (alínea D) da Especificação).
- A petição inicial da presente acção deu entrada na secretaria judicial do tribunal no dia 24/0112008 (alínea E) da Especificação).
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Da Base Instrutória
- C, referida na al. A) dos F actos Assentes, faleceu em 30 de Janeiro de 1994 (resposta ao quesito 1º).
- Faleceu no estado de casada com o 1 º Autor (resposta ao quesito 2º).
- E é mãe dos restantes Autores (resposta ao quesito 3º).
- Em 24 de Novembro de 2004, alguém cuja identidade não foi possível apurar, fazendo-se passar pela C, outorgou, no Cartório da Notária Privada Ana Maria Faria da Fonseca, uma procuração através da qual, declarou constituir procurador o 1º Réu (resposta ao quesito 4º).
- E declarou conferir-lhe os mais amplos poderes em relação ao prédio referido em A), nomeadamente o poder de proceder à sua venda (resposta ao quesito 5º).
- O 1º Réu, com o intuito de obter para si um enriquecimento a que sabia não ter direito, utilizou a referida procuração para outorgar uma escritura pública de compra e venda do prédio referido em A) (resposta ao quesito 6º).
- E por escritura pública lavrada em 14 de Janeiro de 2005, a fls. XX do livro 40 do Catório da Notária Privada Ana Fonseca, o 1º Réu arvorando-se, com base na referida procuração, da qualidade de procurador de C, a titular registada do prédio referido em A), declarou vender em representação daquela ao 2º Réu que, por sua vez, declarou comprar o dito imóvel, pelo preço de MOP$1,000,000.00 (um milhão de patacas) (resposta ao quesito 7º).
- Mais tarde e decorrido que estava menos de um mês após aquela venda, uma vez mais à revelia dos Autores, o 2º Réu celebrou uma nova escritura, desta feita exarada a fls. XX do livro 14 do Cartório da Notária Privada Elisa Costa, através da qual declarou vender o mesmo prédio, pelo preço de HKD$2,300,000.00 ao 3º Réu à 4ª Ré que, por sua vez o dec1araram comprar (resposta ao quesito 8º).
- O 1º Réu, quando outorgou as escrituras referidas, sabia que não havia sido C, mas alguém que se fez passar por ela, que outorgou a procuração referida em 4º; provado ainda que os demais Réus (2º, 3º e 4º), apesar de terem suspeitado que o prédio não havia sido adquirido pelo 1º Réu de modo lícito, conformaram-se com esta possibilidade, outorgando a respectiva escritura de compra e venda (resposta ao quesito 9º).
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- Desde Novembro de 1964 ate Janeiro de 1994 que C é reconhecida como proprietária do prédio em litígio pela generalidade das pessoas (resposta ao quesito 10º).
- E, tendo a convicção de ser proprietária de tal prédio (resposta ao quesito 11º).
- Usou como armazém a construção que o compunha (resposta ao quesito 12º).
- ininterruptamente (resposta ao quesito 13º).
- À vista de toda a gente (resposta ao quesito 14º).
- Sem oposição de ninguém (resposta ao quesito 15º).
- E na convicção de não 1esar direito alheio (resposta ao quesito 16º).
- Após o falecimento de C, os Autores, na convicção de serem proprietários do mesmo prédio por o terem adquirido por sucessão motris causa, e como tal sendo reconhecidos pela generalidade das pessoas, vêm-no limpando e vedando (resposta ao quesito 17º).
- E deslocando-se ao mesmo para tais efeitos (resposta ao quesito 18º).
- E mandando lá outras pessoas (resposta ao quesito 19º).
- E vêm pagando os impostos relativos ao imóvel (resposta ao quesito 20º).
- Tudo sem a posição de ninguém (resposta ao quesito 21º).
- De forma ininterrupta (resposta ao quesito 22º).
- E com consciência não lesar direito alheio (resposta ao quesito 23º).
- Os Autores autorizaram, após a aquisição por parte dos 3º e 4º Réus, que de discute nestes autos, o instituto Cultural de Macau a utilizar o prédio em litígio para apoio às obras de reparação de casa do mandarim (resposta ao quesito 24º).
- A apresentação em juízo e o registo da presente acção tiveram lugar antes de decorrido um ano sobre o fim do processo-crime iniciado em 2005 no qual esteve em julgamento um pedido cível que visava a declaração de nulidade dos contratos de compra e venda celebrados pelos Réus (resposta ao quesito 25º).
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III- O Direito
1- O quadro de facto descrito na sentença revela-nos o seguinte:
O 1º réu, mancomunado com outros, e com objectivo de se fazerem passar por representantes de proprietários de imóveis, falsificaram procurações em nome destes, para depois os venderem a terceiros. Nessa senda – que os levou à barra do tribunal criminal, onde foram julgados e condenados – o 1º réu da acção B ou B, conseguiu que, em 24 de Novembro de 2004 e no cartório de uma notária privada em Macau, Drª Ana Maria Fonseca, alguém representasse o papel de C (falecida porém em 30/01/1994), e emitisse a seu favor uma procuração que lhe conferia poderes para vender o prédio identificado na alínea A) da especificação.
Munido dessa procuração, o 1º réu, logo em 14 de Janeiro de 2005, vendeu o imóvel ao 2º réu pelo preço de um milhão de patacas (resposta ao quesito 7º), o qual, por seu turno, em menos de um mês, o revendeu aos 3º e 4º réus pelo preço de HKD$2.300.000,00.
Os AA, que são viúvo e filhos da falecida, em nome de quem o prédio estava registado, têm um intuito muito óbvio com a acção: o de declarar a inexistência ou nulidade da procuração e, com isso, a ineficácia ou, subsidiariamente, a nulidade dos negócios celebrados à sombra da referida falsa procuração e, por fim, obter o reconhecimento judicial de que são os únicos titulares do domínio útil do terreno.
A sentença da 1ª instância acolheu a pretensão e julgou a acção procedente.
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2- Os últimos adquirentes (3º e 4º réus) acometem a sentença, porque com ela inconformados.
No mesmo recurso, porém, ao abrigo do art. 430º, nº3, do CPC, impugnam o despacho proferido a fls. 400 dos autos sobre a reclamação quanto à selecção da matéria de facto feita no despacho saneador. É por aí que começaremos.
Realmente, na peça de fls. 365 a 367, os ora recorrentes haviam reclamado da base instrutória, pretendendo que a ela fossem levados os factos contidos nos arts. 2º, 3º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 15º, 16º, 17º, 18º, 19º, 20º, 21º, 22º, 23º e 37º da sua contestação, o que foi indeferido pelo mencionado despacho.
Em sua opinião, aquele conjunto de factos teria em vista a contraprova da matéria invocada pelos AA, afastando a tese da má fé dos ora recorrentes e rechaçaria a possibilidade da aquisição por parte dos AA do domínio útil do prédio por usucapião.
Mas não têm razão.
Na verdade, àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado (art. 335º, nº1, do C.C.). Isto significa que os AA, invocando a usucapião, têm que alegar e demonstrar os factos que traduzam a aquisição do respectivo direito. Da mesma maneira, tendo eles interesse em demonstrar que todos os RR agiram de má fé na sucessão dos negócios relatados, sobre eles recairia o respectivo ónus probatório. E se, finalmente, querem os AA ver destruída a eficácia dos contratos celebrados com base numa falsa procuração forjada pelo 1º réu, sobre eles haveria de impender o respectivo encargo comprovativo. São factos que preenchem a causa de pedir da acção e sobre isso não se deve ter alguma dúvida.
O art. 335º, nº2, do mesmo Código só inverte este ónus sempre que aqueles contra quem a invocação é feita queiram provar factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado. Mas, aí, já estamos perante uma defesa por excepção, tal como no-lo revela o art. 407º, nº2, al. b), do CPC.
Não se pode, pois, quesitar a matéria de facto de acordo com as versões contraditórias apresentadas por cada uma das partes da demanda; isso seria desvirtuar as regras do ónus probatório e levaria a uma dupla e inútil tarefa interrogativa, com todos os riscos inerentes a eventuais respostas antinómicas. Ou os AA provam tudo aquilo que referimos, ou não são capazes de o fazer e, então, a posição dos RR fica a salvo de uma decisão final de procedência da acção.
Ora, os factos em causa não são mais do que a ilustração com cariz impugnativo de uma versão diferente da dos impetrantes e por essa razão bem andou o juiz da 1ª instância em não os incluir na base instrutória. E se por alguns deles pretendiam os reclamantes mostrar a sua boa fé de adquirentes, basta olhar para os quesitos 26º e 27º para imediatamente se aquilatar que a sua posição acabou por ser considerada na base instrutória, no sentido de lhes ser dada a oportunidade de a provarem.
Improcede, pois, o recurso nesta parte.
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3- Os recorrentes aproveitam ainda o recurso da sentença para requerer a baixa dos autos à 1ª instância para a motivação da resposta (o que podem fazer ao abrigo do art. 629º, nº 5 do CPC) dada pelo colectivo (fls. 494-496) aos quesitos 9º, 26º e 27º da base instrutória.
No que ao primeiro (9º) concerne, perguntava-se: “Os réus, quando, respectivamente, outorgaram as escrituras referidas, sabiam que não havia sido C, mas alguém, que se fez passar por ela, que outorgou a procuração referida em 4º?”.
O Tribunal Colectivo respondeu: “Provado que o 1º Réu, quando outorgou as escrituras referidas sabia que não havia sido C, mas alguém que se fez passar por ela, que outorgou a procuração referida em 4º; provado ainda que os demais réus (2º, 3º e 4º) apesar de terem suspeitado que o prédio não havia sido adquirido pelo 1º réu de modo lícito, conformaram-se com esta possibilidade, outorgando a respectiva escritura de compra e venda”.
Os recorrentes não sabem de onde o tribunal a quo retirou a resposta a tal quesito, por a fundamentação explanada não ser esclarecedora, já que “a simples remissão para os depoimentos das partes, para os documentos e para os depoimentos das testemunhas em geral não cumpre os requisitos do nº2 do art. 556º do CPCM”.
Efectivamente, a motivação genérica que ali se pode ler relativamente a todas as respostas é a seguinte:
“A convicção do Tribunal baseou-se no depoimento das partes e nos documentos juntos aos autos, nomeadamente os de fls. 19 a 35, 138 a 150, 207 a 212, 240 a 246, 254 a 261, 2XX a 347, 412 a 446, 454 a 457, 487 a 490 dos autos do Processo Principal e fls. 9 a 10, 46 a 47 dos autos da Restituição Provisória de Posse (Apenso), no depoimento das testemunhas ouvidas em audiência, que depuseram com isenção e imparcialidade sobre os quesitos constantes da acta, cujo teor aqui se dá por reproduzido aqui para todos os efeitos legais e que tinham conhecimento pessoal, o que permitiu formar uma síntese quanto á veracidade dos apontados factos” (fls. 496 verso).
Pois bem. Verdade que o art. 556º, nº5 do CPC permite que se reclame contra a deficiente, obscura ou contraditória decisão da matéria de facto ou contra a falta da sua fundamentação (1ª parte).
E sobre o assunto, louvamo-nos num acórdão do STJ, de que, com a devida vénia, transcrevemos um excerto:
“Embora a motivação – quer quanto aos factos provados, quer quanto aos factos não provados – não deva consistir num mero enunciado da prova produzida, basta-se com uma explicação sucinta do “iter” dedutivo que levou à conclusão encontrada. Os exactos “como” e “porquê” da conclusão final, tanta vezes condicionados por intima convicção do julgador, sua formação sócio-cultural, inserção no meio, conhecimento da realidade, em concreto, onde julga, verosimilhança lógica de certas provas, são intraduzíveis na explicação imposta pelo legislador.
O que se impõe é ir para além da mera remissão para depoimentos ou documentos sem que se expliquem as razões de ciência ou se refira a força probatória da prova documental (cf. v.g., o Acórdão do STJ de 2 de Fevereiro de 1993 – CJ/STJ I, I, 123). Como explica o Prof. A. Varela (in “Manual de Processo Civil”, 1984, 635), “além do mínimo traduzido na menção especificada (relativamente a cada facto…) dos meios concretos de prova geradores da convicção do julgador, deve este ainda para plena consecução do fim almejado pela lei referir, na medida do possível, as razões de credibilidade ou da força decisiva reconhecida a esses meios de prova”. Mas alerta mais adiante para o risco de se “ignorar ou subestimar o papel da intuição na formação da convicção do julgador” (…) é pretender “reduzir a termos puramente racionais as componentes psicológicas do juízo global por ele formulado.” (cf., sobre o tema, e v.g, “A Fundamentação das Respostas aos Quesitos”, in “Justiça Portuguesa”, 29.º, 49-50; Dr. Francisco José Veloso, “Fundamentação das Respostas do Colectivo”, in “Scientia Iuridica”, n.º 58; Dr. Manuel J. Gonçalves Seabra, “Motivação”, BMJ 121).
Do exposto terá de resultar que, se por um lado as respostas têm de ser motivadas, não podem esquecer-se os limites dessa motivação e que têm como princípio primeiro e basilar o da liberdade de apreciação das provas (a coberto do qual, e ao contrário do pretendido pelos recorrentes, foram valorados os documentos) e da decisão dos juízes “segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto” (cf. o n.º 1 do artigo 655.º do Código de Processo Civil, assim comentado pelo Conselheiro Rodrigues Bastos: “este artigo, por um lado não considera o juiz como um autómato que se limita a aplicar critérios legais apriorísticos da valoração (…)”, “ (…) mas também lhe não permite julgar só pela impressão que as provas oferecidas pelos litigantes produziram no seu espírito, antes lhe exige que julgue conforme a convicção que aquela prova determinada e cujo carácter racional exprimirá na correspondente motivação”. (apud “Notas ao Código de Processo Civil”, III, 3.ª ed, 175)). Assim, na fase de “ponderação” (que, logicamente antecede a de “decisão” e à qual se segue a de “redacção” – cf. Prof. Castro Mendes – “Direito Processual Civil”, II, 1969, 269) o julgador tem perante si a prova na sua componente objectiva cotejada com a produzida em sede de contraditório e afere da sua credibilidade (ou fiabilidade) num processo lógico-racional a que o conduz à sua convicção sensata e prudente. E na redacção motivada refere as bases (aqui provas produzidas) que o levaram ao resultado final, expondo-as objectivamente e não tendo (ou, sequer, devendo) que explicar o processo insondável íntimo causador da convicção – impressão expressa” (Ac. STJ, de 10/07/2008, Proc. nº 08ª2179).
Desta síntese resulta, de acordo, aliás, com os mais exaltantes princípios da transparência e da verdade material - que impõem ao julgador a explanação do iter cognoscitivo determinante para o julgamento efectuado - que a prática do tribunal na remissão genérica para documentos e depoimentos testemunhais pode não ser a mais consentânea com os desígnios que presidiram à inclusão do dever contido no art. 556º, nº2 do CPC, que é o de apreciação crítica das provas (e não dos meios) e da especificação dos fundamentos decisivos para a convicção do julgador.
Mas também é sabido que, se a parte não concordar com a deficiência, obscuridade e contradição das respostas ou mesmo com a falta de fundamentação destas no sentido acima indicado, lhe resta o incidente de reclamação a que alude o art. 556º, nº5 do CPC, que obriga a nova reunião do colectivo para se pronunciar sobre ela (cit. aresto). E decidida a reclamação dessa forma, nenhuma outra é mais possível (“…não sendo admitidas novas reclamações contra a decisão que proferir”).
Trata-se de um incidente que tem que ser resolvido definitivamente na instância onde foi gerado, não sendo possível a impugnação da decisão que sobre ele tiver recaído em recurso autónomo. O que não impede, mesmo assim, duas coisas:
a) Que a matéria de facto 1respectiva não possa ser objecto de impugnação em recurso da sentença, pois para isso servem os arts. 599º e 629º, nº1, al. a), do CPC; ou
b) Que o tribunal de segunda instância não possa, a requerimento da parte, mandar sanar a deficiência da motivação e determinar que o tribunal da primeira fundamente a decisão sobre algum facto essencial que não esteja “devidamente fundamentada”, tendo em conta os depoimentos gravados ou escritos ou repetindo a produção da prova, quando necessário2.
No caso em apreço, os ora recorrentes requereram expressamente a remessa dos autos à 1ª instância para o efeito (ver fls. 596 vº).
Pergunta-se: Será este pedido suficiente? Terá ele, na economia do preceito que o prevê (citado nº5, do art. 629º do CPC), uma natureza automática que não contemple a possibilidade de análise pelo tribunal ad quem a propósito da sua necessidade?
Em nossa opinião, a resposta está na letra do referido dispositivo legal. O simples pedido só despoleta o necessário envio do processo à 1ª instância, se a segunda instância, na apreciação prévia que fizer do caso, concluir que a fundamentação omitida ou insuficiente recai sobre “algum facto essencial” (nº5, cit.). Ora, sendo assim, e a fim de se evitar perdas inúteis de tempo, cumpre ao tribunal de recurso analisar se o facto em causa é essencial para a decisão da causa3.
E nessa tarefa, permitimo-nos ir avançando a ideia de que aquele facto é, realmente, essencial à decisão final.
Senão, repare-se: o quesito 9º tinha um propósito totalmente oposto ao dos 26º e 27º: visava demonstrar a tese dos AA de que os RR (todos eles) sabiam que a procuração foi emitida por alguém que não era o real proprietário e que a procuração não era verdadeira! Isto é, patenteava o facto de que os RR estavam de má fé quando adquiriram o imóvel. O tribunal deu por provada essa má fé, respondendo que também os 3º e 4º réus, apesar de terem suspeitado que o prédio não havia sido adquirido pelo 1º réu de modo lícito, conformaram-se com esta possibilidade, outorgando a respectiva escritura de compra e venda.
Ora, o facto que ilustre a boa ou má fé torna-se absolutamente essencial ao desfecho da causa!
Na verdade, os factos devem ser tidos em consideração de acordo com as “várias soluções plausíveis de direito” (art. 430º, nº1, do CPC).
Assim sendo, é caso para pensar que, tanto a solução da inexistência, e da ineficácia, como a da nulidade dos negócios, sejam defensáveis no âmbito do presente processo. E se assim pensamos, temos que admitir que o enquadramento plausível para o sancionamento desta sucessão de negócios fundada num facto originário ilícito seja o da nulidade. E porque assim o concedemos, não se pode descartar a possibilidade da salvaguarda dos direitos advindos da aquisição por terceiros de boa fé de que trata o art. 284º do Código Civil. Hipótese, portanto, em que a nulidade lhes seria inoponível.
E terá a circunstância de a sentença ter enveredado pelo caminho da ineficácia dos negócios constituído algum obstáculo à hipótese que colocámos? Não, por duas razões:
Em primeiro lugar, a sentença não definiu a solução, não a precisou, não foi peremptória, afirmativa e imperativa na forma como pretendeu fixar os efeitos dos negócios em relação aos AA. Na verdade, o julgado sob censura limitou-se a declarar “…a ineficácia em relação aos Autores (ou a nulidade)” (negrito nosso). Ora, o tribunal deveria ter concluído a parte dispositiva da sentença com uma afirmação categórica a respeito da solução jurídica que o caso merecesse. E não o fez. Deixou em aberto que o caso seria de ineficácia ou de nulidade. Portanto, até a sentença admitiu que a sanção para a ilegalidade detectada pudesse ser de nulidade.
Em segundo lugar, aquela decisão não é a decisão final do processo. Quando a lei fala em “várias soluções plausíveis de direito”, tal como acima referimos, está a pensar na solução final de cada caso em litígio. Mas essa decisão final só se obtém com o trânsito em julgado da sentença, circunstância que obriga a equacionar a possibilidade de recurso jurisdicional. É o caso presente. E isto significa que o tribunal de recurso sempre poderia acolher solução jurídica que se encaminhasse no sentido seguro da nulidade e não de ineficácia!
Vistas as coisas por este prisma, portanto, isto é, se é preciso colocar a hipótese de a sanção para as aquisições derivadas acima referidas ser a nulidade, então não se pode menosprezar o alcance do citado art. 284º do Código Civil.
*
Mas, pergunta-se, ainda assim: a circunstância de os recorrentes terem invocado erro no julgamento e, consequentemente, dirigido também a sua pretensão jurisdicional no sentido da modificabilidade da matéria de facto (arts. 599º e 629º do CPC), não terá efeito prejudicial ao requerimento que fizeram no recurso acerca da remessa dos autos à primeira instância, nos termos do art. 629º, nº5 do CPC?
Expliquemo-nos. Os recorrentes querem que o tribunal da 1ª instância motive a resposta ao quesito 9º (também as respostas negativas aos quesitos 26º e 27º). Todavia, pedem ainda no mesmo recurso a alteração da matéria de facto e trazem para o efeito a transcrição dos seus próprios depoimentos. Daí a questão que se renova: Não bastará analisar estes depoimentos para o tribunal de recurso chegar à conclusão de que a 1ª instância errou nas respostas? A resposta é, a nosso ver, não.
Na verdade, a transcrição dos seus depoimentos de parte evidentemente não chega. Deles, aparentemente, pode colher-se, efectivamente, que os recorrentes não mostraram saber da falsidade da procuração e da ilicitude do 1º negócio. Ou seja, a partir deles talvez não fosse possível ao tribunal dar a resposta negativa aos quesitos 26º e 27º.
Por outro lado, os documentos que o tribunal colectivo citou para fundamentar (para motivar) as suas respostas (fls. 496 vº), lidos um a um, também não são de modo nenhum reveladores das respostas dadas. Na verdade, em nada se relacionam com a subjectividade contida nas perguntas 9ª, 26ª e 27ª.
Mas, enfim, pode acontecer que a fonte das respostas esteja noutro lado: nalguma prova testemunhal. Ora, os recorrentes não transcreveram mais depoimento algum para além do seu próprio! E bem pode acontecer que alguma das testemunhas inquiridas tenha convencido o tribunal que os negócios foram efectuados com a suspeita por parte de todos os réus acerca da ilicitude subjacente.
Ora, isso não o podem os recorrentes adivinhar e, por essa razão, também não podiam transcrever mais nenhuma das palavras ditas em audiência por quem quer que fosse. Entendamo-nos: Se os recorrentes acham que nenhuma testemunha disse alguma coisa sobre o assunto, como podiam eles transcrever o conteúdo do depoimento dela?! Só se transcrevessem o depoimento de todas as testemunhas, deixando ao tribunal de recurso o “novo” julgamento daquela matéria de facto!
Assim, com esta explicação, já faz sentido a pretensão dos recorrentes. Isto é, já se percebe qual a sua intenção em requerer que o processo baixe à 1ª instância para que motive tais respostas. E se o tribunal o fizer, isto é, se explicitar que a resposta aos quesitos 9, 26 e 27 se deve ao depoimento gravado da testemunha X ou Y, então já os recorrentes podem fazer a devida sindicância à decisão do tribunal recorrido quanto à matéria de facto dada por provada no quesito 9º e não provada nos quesitos 26º e 27º e, do mesmo modo, também o tribunal “ad quem”, em sede de recurso jurisdicional, com segurança já pode fazer a devida reapreciação da prova.
Eis, pois, a razão pela qual se torna imperioso que os autos voltem à primeira instância, para os pretendidos efeitos, conforme requerido, ficando prejudicada a apreciação da parte restante do recurso.
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IV- Decidindo
Nos termos expostos, acordam em:
1- Negar provimento ao recurso na parte relativa à impugnação feita à decisão sobre a reclamação da matéria de facto levada à Base Instrutória;
2- E, conforme requerido, ao abrigo do art. 629º, nº5, do CPC, determinar que o processo seja remetido à 1ª instância, a fim de que:
a) Os mesmos juízes que compuseram o colectivo que lavrou o acórdão de fls. 494 a 496 especifiquem os fundamentos (motivos) - com indicação da(s) testemunha(s), devidamente identificadas, ou dos documentos concretos - que foram decisivos e essenciais para a resposta aos quesitos 9º, 26º e 27º da Base Instrutória,
b) Se não for possível obter a fundamentação com os mesmos juízes, seja repetida a produção da prova.
3- Julgar prejudicado o conhecimento da parte restante do recurso.
Custas:
a) Pelo recorrente, quanto ao decidido em IV-1, com taxa de justiça mínima;
b) Pela parte vencida a final, quanto à parte restante.
TSI, 27 / 10 / 2011

(Relator) José Cândido de Pinho

(Primeiro Juiz-Adjunto) Lai Kin Hong

(Segundo Juiz-Adjunto) Choi Mou Pan

1 Viriato Lima, Manual de Direito Processual Civil, pag. 508.
2 Ac. STJ de 9/05/2007, Proc. nº 07S363.
3 Neste sentido, ver também, o Ac. da RL, de 4/12/2006, Proc. nº 9443/2006.
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