Processo n.º 171/2009
(Recurso civil e laboral)
Data: 15/Setembro/2011
Recorrente: A (XXX)
Recorrida: S.T.D.M.
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
A (XXX), patrocinada por advogado, melhor identificada nos autos, propôs contra a Ré, "Sociedade de Turismo e Diversões de Macau (STDM)", com sede na Avenida do Hotel Lisboa, 9° andar, Macau, acção para efectivação do direito ao pagamento da compensação pelo dias de descanso semanal anual e feriados obrigatórios, por si não gozados, pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia MOP$1.794.010,63 e ainda no pagamento de juros vencidos e vincendos.
Veio esta, a final, a ser condenada a pagar a quantia de MOP$11.093,82 bem como o montante de juros a contar da decisão.
Da decisão final vem recorrer a parte A., o trabalhador, alegando basicamente que as gorjetas devem integrar o salário do trabalhador e defendendo a aplicação de outras fórmulas de cálculo para as diferentes compensações dos descansos não gozados.
A STDM, Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A.R.L. defende a bondade do decidido.
Oportunamente, foram colhidos os vistos legais.
II - Factos
Vêm provados os factos seguintes:
“Da confissão e das provas documentais resultam provados os seguintes factos:
Após o debate e audiência de julgamento, foram aprovados pelo Tribunal os factos abaixo indicados (como os articulados apresentados pelas partes foram redigidos em português, a fim de evitar uma eventual diferença em tradução, cabe ao signatário citar a matéria de facto conforme os originais):
A A. iniciou a relação contratual com a R. desde 11 de Outubro de 1986. (A)
A A. cessou a relação contratual com a R. a 26 de Julho de 2002. (B)
O rendimento da A. era composto por duas partes, uma parte fixa, e outra parte variável. (C)
A parte variável da remuneração dependia do valor global do dinheiro recebido dos clientes de casinos vulgarmente designado por “gorjetas”. (D)
Esta parte variável do rendimento constituía a parte mais significativa do rendimento da A. (E)
As ditas “gorjetas” não se destinavam, em exclusivo, aos empregados que lidavam directamente com os clientes de casinos, mas também a outros, nomeadamente gerentes administrativos e pessoal da área de informática. (F)
Tal significa que parte do valor das ditas “gorjetas” se destinava não só a remunerar o trabalho prestado nas mesas de jogo pelos empregados da Ré, mas também a pagar os salários do pessoal afecto a outras áreas da empresa e necessário ao funcionamento da empresa. (G)
Desde a data em que a R. iniciou a actividade de exploração de jogos de fortuna e azar e até à data em que cessou a sua actividade - por motivo do termo de vigência da licença que a permitia exercer- que as gorjetas oferecidas a cada um dos seus colaboradores pelos seus clientes eram reunidas, contabilizadas e depois distribuídas, por uma comissão paritária com a seguinte composição: um membro do departamento de tesouraria da R., um "floor manager" (gerente do andar) e um ou mais trabalhadores da R., por todos os trabalhadores dos casinos que explorou, de acordo com a categoria profissional a que pertenciam. (H)
Os dias de descanso que, ao longo da vigência da relação contratual a A. gozou, não foram remunerados. (I)
A A. auferiu o rendimento fixo de MOP$4.10, desde o início da relação contratual até 30 de Junho de 1989, data em que passou a HKD$10.00 até 30 de Abril de 1995, e passando, a partir de 1 de Maio de 1995 até ao final da relação contratual, a HKD$15.00. (J)
Do casamento da A. celebrado em 19/10/1989 resultou um filho. (K) O filho do casal, XXX, nasceu em XX/XX/XXXX. (L)
No dia 26 de Julho de 2003, a A. declarou voluntariamente ter recebido a quantia de MOP30.604,18 referente à compensação extraordinária de eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios e rescisão por acordo do contrato de trabalho, decorrentes do vínculo laboral com a STDM, aqui R. (Doc. n.º 1 junto com a contestação) (M)
Na mesma data declarou que, com o montante recebido, nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a R. subsistia e, por consequência, nenhuma quantia seria por ela (A.) exigível por qualquer forma, na medida em que nenhuma das partes deve à outra qualquer compensação relativa ao vínculo laboral. (Doc. n.° 1 junto com a contestação) (N)
Até 1998, a A. trabalhava em ciclos contínuos de três dias. No primeiro dia, a A. começava às 14:00 e interrompia às 18:00. Depois, recomeçava às 22:00 e acabava às 2:00. No segundo dia, a A. começava às 10:00 e interrompia às 14:00. Depois, recomeçava às 18:00 e acabava às 22:00. No terceiro dia, a Av. começava às 6:00 e interrompia às 10:00. Depois, recomeçava às 2:00 e acabava às 6:00. O ciclo renovava-se de três em três dias. (O)
A partir de 1998, a A. passou a trabalhar em ciclos contínuos de 9 dias. No primeiro, segundo e terceiro dias, a A. começava às 7:00 e acabava às 15:00. No quarto, quinto e sexto dias, a A. começava às 23:00 e acabava às 7:00. No sétimo, oitavo e nono dias, a A. começava às 15:00 e acabava às 23:00. O ciclo renovava-se de nove em nove dias . (P)
A A. recebeu e a R. pagou, após a assinatura da declaração mencionada na alínea M), a quantia de MOP$30,604.18. (Q)
Provado o que consta do teor das alíneas M) e Q) da matéria de facto assente. (1º)
A R. nunca deixou de considerar, quer a parte fixa quer a parte variável do rendimento da A., como contrapartida do serviço por esta prestado. (2°)
Os trabalhadores de categoria profissional superior e os próprios trabalhadores que trabalhavam nas salas de casinos, ou seja, aqueles que prestavam directamente serviços aos clientes, recebiam percentagens do valor das gorjetas diferentes. (3°)
A A., como era regra, não podia ficar com quaisquer "gorjetas", que lhe fossem entregues pelos clientes do casino. (4°)
As "gorjetas" recebidas pelos empregados eram obrigatoriamente colocadas, por ordem da R., numa caixa destinada exclusivamente para esse efeito, e eram contadas diariamente também por funcionários por ela incumbidos, sob vigilância da Direcção de Coordenação de Inspecção e Coordenação de Jogos, a fim de serem distribuídas de 10 em 10 dias aos diversos empregados consoante uma dada percentagem anteriormente fixada pela R. (5°)
A R. usou o dinheiro recebido dos seus clientes a título de gorjetas para efectuar o pagamento da parte variável do rendimento dos seus empregados. (6°)
Por outro lado, sempre na perspectiva da A., a sua quota-parte no valor das "gorjetas" que lhe era entregue pela R., fazia parte do seu rendimento, pois caso não tivesse direito a essa prestação pecuniária, não teria celebrado qualquer contrato de trabalho com a STDM. (7º)
A R. não ignora que, caso não incluísse a prestação paga a título de "gorjetas" na retribuição do A., lhe seria extremamente difícil ou mesmo impossível contratar um empregado de casino por HKD$10.00 por dia, i.e., HKD$300.00 por mês. (8°)
Desde o início da relação contratual até 26 de Julho de 2002, a A. recebeu da R. as quantias abaixo discriminadas, como contrapartida da sua actividade prestada: (9°)
Ano
Rendimento total (MOP)
1986
8,408.00
1987
42,006.00
1988
62,615.00
1989
102,605.00
1990
121,424.00
1991
89,854.00
1992
110,790.00
1993
156,473.00
1994
173,593.00
1995
187,957.00
1996
181,548.00
1997
193,925.00
1998
205,157.00
1999
159,660.00
2000
147,931.00
2001
144,692.00
A A. auferiu MOP$9,755.90 nos últimos três meses antes do termo do ano de 1986, rendimento médio diário de MOP$106.04. (10°)
A A. auferiu MOP$10,938.00 nos últimos três meses antes do termo do ano de 1987, rendimento médio diário de MOP$118.89. (11°)
A A. auferiu MOP$19,424.65 nos últimos três meses antes do termo do ano de 1988, rendimento médio diário de MOP$211.14. (12°)
A A. auferiu MOP$28,262.90 nos últimos três meses antes do termo do ano de 1989, rendimento médio diário de MOP$307.21. (13°)
A A. auferiu MOP$27,807.00 nos últimos três meses antes do termo do ano de 1990, rendimento médio diário de MOP$302.25. (14°)
A A. auferiu MOP$13,881.30 nos últimos três meses antes do termo do ano de 1991, rendimento médio diário de MOP$150.88. (15°)
A A. auferiu MOP$33,324.70 nos últimos três meses antes do termo do ano de 1992, rendimento médio diário de MOP$362.23. (16°)
A A. auferiu MOP$38,536.70 nos últimos três meses antes do termo do ano de 1993, rendimento médio diário de MOP$418.88. (17°)
A A. auferiu MOP$47,433.40 nos últimos três meses antes do termo do ano de 1994, rendimento médio diário de MOP$515.58. (18°)
A A. auferiu MOP$38,146.70 nos últimos três meses antes do termo do ano de 1995, rendimento médio diário de MOP$414.63. (19°)
A A. auferiu MOP$44,874.80 nos últimos três meses antes do termo do ano de 1996, rendimento médio diário de MOP$487.77. (20°)
A A. auferiu MOP$34,295.10 nos últimos três meses antes do termo do ano de 1997, rendimento médio diário de MOP$372.77. (21°)
A A. auferiu MOP$44,369.10 nos últimos três meses antes do termo do ano de 1998, rendimento médio diário de MOP$482.27. (22°)
A A. auferiu MOP$39,244.70 nos últimos três meses antes do termo do ano de 1999, rendimento médio diário de MOP$426.57. (23°)
A A. auferiu MOP$40,462.40 nos últimos três meses antes do termo do ano de 2000, rendimento médio diário de MOP$439.81. (24°)
A A. auferiu MOP$31,555.20 nos últimos três meses antes do termo do ano de 2001, rendimento médio diário de MOP$342.99. (25°)
A A. auferiu MOP$22,623.10 nos últimos três meses antes do termo do ano de 2002, rendimento médio diário de MOP$245.90. (26°)
Desde o início da relação contratual com a R. até à sua cessação, a A.
nunca gozou dias de descanso semanal e anual, bem como feriados obrigatórios quer remunerados quer não remunerados. (27° a 43°)
A Ré não concedeu à A. licença de maternidade, sem perda de rendimento, por ocasião do nascimento do filho. (44°)
A A. foi informada pela R. que o rendimento correspondente a um dia de serviço era, para a sua categoria profissional, diminuta de MOP$4.10, mas que teria direito a participar no total das gorjetas entregues pelos clientes da R. a todos os trabalhadores. (57°)
Aquando da contratação dos trabalhadores da STDM estes (incluindo a A.) eram, desde logo, informados que ao gozo de dias de descanso não corresponderia qualquer rendimento. (58°)
Os trabalhadores eram livres de pedir o gozo de dias de descanso sempre que assim o entendessem, desde que tal gozo de dias não pusesse em causa o funcionamento da empresa da R. e que fosse autorizado pela mesma. (59°)
Aquando da contratação da A. pela R. (e, bem assim, de todos os trabalhadores até então contratados pela R. para a mesma categoria profissional da A), foram-lhe propostas, a respeito dos direitos a descanso anual, descanso semanal e feriados obrigatórios, as seguintes condições contratuais: (61°)
(i) O salário seria pago à razão diária de MOP$4.10/dia (até 30 Junho de 1989, em que passou a HKD$ 10.00/dia até Abril de 1995, passando, a partir de Maio de 1995 a HKD$15.00/dia até ao final da relação contratual), mas apenas pelos dias em que fosse efectivamente prestado trabalho;
(ii) Caso pretendesse gozar de descansos semanal, anual e feriados obrigatórios, tal não lhe era negado, simplesmente esses dias não seriam remunerados.
A A. foi informada pela R. das condições previstas na resposta dada ao quesito 61°. (62°)
No dia 1 de Abril de 2002 todos os trabalhadores da STDM passaram a trabalhar para com a Sociedade da Jogos de Macau (SJM) para que esta pudesse iniciar a exploração na data prevista no contrato de concessão. (63°-A)
Quatro meses depois, i.e., em Julho de 2002 a SJM avisou os seus trabalhadores de que deveriam comparecer na secção de pessoal para formalizarem o seu ingresso mediante a assinatura de um contrato de trabalho. (63°-B)
À data, só a SJM tinha condições para operar os casinos, dado que as restantes concessionária e sub-concessionária tinham requerido prazo ao Governo da RAEM para poderem construir os seus casinos e outras infra-estruturas complementares, desconhecendo-se, portanto, se e quando é que os outros operadores conseguiriam iniciar a exploração. (63-C)
Em Julho de 2003, no Centro de Formação da SJM, foi entregue à A. para que, querendo, assinasse um documento intitulado "declaração" (聲明書). (63°-D)
Foi-lhe dito que caso assinasse, receberia o dinheiro referido na dita declaração. (63°-E)
Na perspectiva dos empregados da R. que depois passaram a trabalhar na SJM, não existe, na prática, qualquer distinção entre STDM e SJM. (63°-F)
Em Março de 2003, foram afixados dois avisos no staff restroom respeitando a cerca de doze trabalhadores da SJM que tinham sido despedidos por terem colocado acções contra a sociedade mãe da SJM, ou seja, a R., o que, segundo a SJM, destruía a harmonia laboral. (63.º - G)
A A. assinou a declaração a que se refere o documento n.º 1 junto com a Contestação porque tinha medo de perder o emprego. (64.º)
A A. assinou a declaração a que se refere o documento n.º 1 da contestação. (65.º)
A A. não teria subscrito o acordo se tivesse conhecimento de que tinha direito a uma importância muitíssimo superior àquela de que o Departamento da Inspecção de Trabalho a informou. (66.º)
A A. tinha perfeito conhecimento do conteúdo da declaração a que se refere o documento n.º 1 da contestação. (68.º)”
III FUNDAMENTOS
1. O objecto do presente recurso passa pela análise das seguintes questões:
- Da natureza jurídica do acordo celebrado entre as partes;
- Do salário justo; determinação da retribuição; as gorjetas auferidas pelos trabalhadores de casino integram ou não o seu salário?
- Do não gozo de dias de descanso semanal, descanso anual e feriados obrigatórios;
. prova dos factos; prova do impedimento do gozo;
. liberdade contratual; da admissibilidade de renúncia voluntária ao gozo de dias de descanso semanal, anual, feriados obrigatórios;
- Integração da natureza do salário; mensal ou diário;
- Determinação dos montantes compensatórios dos dias de trabalho prestado em dias descanso e festividades.
- Dos juros.
As diferentes questões foram abordadas em vários e abundantes arestos dos Tribunais de Macau, referindo-se que em praticamente todos eles se conseguiu uma unanimidade de entendimento, tanto na 1ª Instância, como neste Tribunal de Segunda instância.1
Depois disso, sobrevieram algumas decisões do TUI2, que decidiu contrariamente à posição que granjeara unanimidade total numa questão fundamental, qual seja a de saber se as gorjetas dos trabalhadores dos casinos da STDM integravam o salário.
Perante tais decisões daquele Alto Tribunal, essa questão, bem como as outras que se colocavam, foram já tratadas devidamente numa série de acórdãos deste Tribunal de Segunda Instância e nesta secção em particular, aí se explicando, com o devido respeito, as razões do não acatamento da interpretação do TUI, cientes de que a responsabilidade pela uniformização da Jurisprudência não pode depender unicamente do critério de cada julgador, devendo ser implementada pelo legislador.3
Por essa razão, nessa, bem como nas restantes questões, remetemo-nos para a Jurisprudência deste Tribunal de Segunda Instância.
Ressalva-se a inflexão nessa Jurisprudência, a partir de 31/3/2011, v.g. com o processo n.º 780/2007, de 31/3/2011, deste TSI, apenas para os cálculos de algumas compensações relativamente aos descansos não gozados.
2. Posto, isto, passa-se de imediato à abordagem das questões que vêm colocadas no recurso, o que se fará, pelas razões acima aduzidas, em termos sintéticos.
A primeira questão que se deve apreciar é a da caracterização da relação jurídica existente entre a recorrente e a recorrida, o que se reconduz, no fundo, a saber se estamos ou não perante um contrato de trabalho entre ambos celebrado.
Em face do artigo 1079.º do Código Civil, artigos 25º e 27º do anterior RJRL - cfr. artigos 1º, 4), 9º, 2), 57º da actual LRT, Lei 7/2008, de 12 de Agosto, em princípio não aplicável aos contratos findos, face à redacção do disposto no art. 93º -, art. 23°, n.º 3 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, art. 7º do Pacto sobre Direitos Económicos Sociais e Culturais e pela Convenção da OIT n.º 131, direitos que por essa via não deixam de ser tutelados pela própria Lei Básica no seu artigo 40º, decorre, face à factualidade apurada, que parece não restarem quaisquer dúvidas de que nos encontramos perante um verdadeiro e puro contrato de trabalho entre a parte autora e a ré, em que aquela, mediante uma retribuição, sob autoridade, orientações e instruções desta, começou a trabalhar na área de actividade ligada à exploração de jogos de fortuna ou azar.
Temos assim por certo que o contrato celebrado entre um particular e a Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A., para aquele trabalhar naquela área dos casinos, sob direcção efectiva, fiscalização e retribuição por parte desta, deve ser qualificado juridicamente como sendo um genuíno contrato de trabalho remunerado por conta alheia, contrato esse que deve ser remunerado com uma retribuição justa.
3. Fundamentalmente, o que está em causa é saber se as gorjetas integram o salário do trabalhador. Anote-se que o que interessa é a consideração do que seja o salário para efeitos das compensações a contemplar, face ao que reclamado vem nos autos.
O cerne da questão residirá em saber se, face à matéria de facto, melhor apreendida pelas Instâncias, filtrada e burilada através de tantos e tantos outros processos, se ela não predispõe num outro sentido compreensivo mais abrangente da realidade com que deparamos nos casos da STDM e neste em particular.
A questão não pode ser desenquadrada do seu todo, do rendimento efectivo expectável, da prática adoptada e reiterada anos e anos a fio, da natureza específica da exploração e actividade de um casino, da realidade diversa da de outros ordenamentos em termos de Direito comparado.
O carácter de liberalidade e eventualidade das gorjetas é contrariado pelo facto de as mesmas, no caso dos casinos da STDM, serem por esta reunidos, contabilizados e distribuídos e não se diga que o sistema de contabilização e distribuição pela empresa representa o sistema mais justo e que mais beneficia o trabalhador não é argumento decisivo, pois que sempre se pode entender que essa prática se insere no próprio processo contratual entre as partes e que por isso mesmo o trabalhador espera com uma forte probabilidade vir a auferir uma massa de rendimentos, só por via dela anuindo à celebração daquele contrato de trabalho.
É verdade que quanto à perspectiva tributária incidente sobre as gorjetas esse argumento não se mostra decisivo.
Na perspectiva tributária de direito público, o imposto profissional é um imposto parcelar, estruturado cedularmente, mediante o qual se submete a regime específico de incidência, determinação da matéria colectável e taxa os rendimentos decorrentes do trabalho, por conta de outrem ou por conta própria. Englobam-se nesse tipo de rendimento as gratificações ou gorjetas espontânea e livremente entregues, na sequência de uma reiterada prática social, pelos beneficiários de um determinado serviço ou trabalho, e por causa deste, aos que executaram esses serviço ou trabalho.4
Não obstante o princípio da autonomia privada, há que ter em conta, principalmente no que respeita à liberdade de estipulação do conteúdo, determinadas normas que não podem ser afastadas pela vontade das partes, as quais limitam a liberdade contratual, impondo, pelo menos, um conteúdo mínimo imperativo.
As gorjetas dos trabalhadores da STDM, na sua última ratio devem ainda ser vistas como "rendimentos do trabalho", sendo devidos em função, por causa e por ocasião da prestação de trabalho, ainda que não originariamente como correspectividade dessa mesma prestação de trabalho, mas que o passam a ser a partir do momento em que pela prática habitual, montantes e forma de distribuição, com eles o trabalhador passa a contar, estando nós seguros de que sem essa componente o trabalhador não se sujeitaria a trabalhar com um salário que na sua base é um salário de miséria.
Não se deixam de encontrar no Direito Comparado situações em que a gorjeta integra o valor da remuneração, assim acontecendo no Brasil, compreendendo-se na remuneração do empregado, para todos os efeitos legais, além do salário devido e pago directamente pelo empregador, como contraprestação do serviço, as gorjetas que receber e considerando-se gorjeta não só a importância espontaneamente dada pelo cliente ao empregado, como também aquela que for cobrada pela empresa ao cliente, como adicional nas contas, a qualquer título, e destinada à distribuição aos empregados.
Salvaguardando a diferença de sistemas, assim acontece igualmente nos EUA.
Assim acontece em Hong Kong, onde o Court of Final Appeal decidiu ratificar o entendimento do Court of Appeal no sentido de que as gorjetas deviam integrar o salário com argumentos próximos dos acima expendidos.5
Por outro lado, em Portugal, não minimizando a douta doutrina citada pelo TUI, não se deixa de assinalar, como acima se referiu, que a realidade fáctica diverge em ambos os ordenamentos e num ponto que se nos afigura essencial, qual seja o de em Portugal o rendimento mínimo estar garantido por lei.
4. Do não gozo de dias de descanso semanal, descanso anual e feriados obrigatórios;
. prova dos factos
. liberdade contratual; da admissibilidade de renúncia voluntária ao gozo de dias de descanso semanal, anual e feriados obrigatórios.
Provou-se que o trabalhador em questão trabalhou nos dias de descanso semanal, anual e também feriados obrigatórios e não recebeu qualquer acréscimo.
Para que haja erro manifesto na apreciação da prova tem de resultar da alegação da parte recorrente e dos elementos dos autos a probabilidade de existência de erro de julgamento, o que decorre da indicação não só dos pontos considerados incorrectamente julgados, como da indicação dos concretos meios probatórios que impunham uma decisão diversa (cfr. artigo 599º, n.º 1, a) e b) e 629º do CPC).
No que ao ónus da prova respeita só importaria apreciar a questão em caso de falta de prova dos factos alegados pela parte a quem cabia o ónus de provar os factos integrantes do seu direito(cfr. o n.º 1 do art. 335° do CC), de forma a daí retirar as devidas consequências.
5. Da liberdade contratual.
Ao interpretar e aplicar qualquer legislação juslaboralística em sede do processo de realização do Direito, temos que atender necessariamente ao “princípio do favor laboratoris”, princípio que para além de “orientar” o legislador na feitura das normas juslaborais (sendo exemplo paradigmático disto o próprio disposto no art.º 5.º, n.º 1, e no art.º 6.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril), deve ser tido pelo menos também como farol de interpretação da lei laboral, sob o qual o intérprete-aplicador do direito deve escolher, na dúvida, o sentido ou a solução que mais favorável se mostre aos trabalhadores no caso considerado, em virtude do objectivo de protecção do trabalhador que o Direito do Trabalho visa prosseguir.
Do que acima fica exposto decorre que se A. e Ré podiam acordar nos montantes da retribuição (e o problema que se põe nessa sede não é já o do primado da liberdade contratual mas sim o da determinação da vontade das partes quanto à integração dessa retribuição) já o mesmo não acontece quanto ao gozo dos dias de descanso, férias e feriados e sua remuneração.
6. Da errada interpretação e aplicação do n.° 4, do art. 26° do RJRT - da violação do n.° 2 do art. 564º do CPC
E ainda da configuração do salário como mensal.
As características e natureza do trabalho, tal como vem provado, harmonizam-se mais com o considerar que se tratava de um salário mensal, estando a remuneração não já dependente do resultado de trabalho efectivamente produzido, nem, tão-pouco, do período de trabalho efectivamente prestado.
Da redacção do n.º 4 do artigo 26º decorre uma consequência importantíssima na interpretação das normas que atribuem as compensações pelo trabalho prestado nesses dias. É que o n.º 1 do art.º 26.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, atentos os termos empregues na redacção da sua parte final, - os trabalhadores que auferem um salário mensal...não podendo sofrer qualquer dedução pelo facto de não prestação de trabalho nesses períodos (períodos de descanso semanal e anual e feriados obrigatórios) - visa tão-só proteger o trabalhador contra eventual redução do seu salário mensal por parte do seu empregador sob pretexto de não prestação de trabalho nesses períodos e, por isso, já não se destina a determinar o desconto do valor da remuneração normal na compensação/indemnização pecuniária a pagar ao trabalhador no caso de prestação de trabalho em algum desses dias.
Essa posição, no respeitante ao tipo do salário da parte A., releva para aplicação do n.º 6 do art.º 17.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril, na actual redacção dada pelo artigo único do Decreto-Lei n.º 32/90/M, de 9 de Julho, já que na hipótese de pagamento do trabalho prestado em dia de descanso semanal, por força do n.º 6, é ao disposto na sua alínea a) que se atende e já não ao determinado na sua alínea b).
7. Da lei aplicável.
Ainda aqui nos remetemos para o desenvolvimento feito nos acórdãos já citados.
Posto isto, assim se entra na análise da correcção da sentença recorrida quanto ao apuramento das compensações devidas pela entidade patronal, por violação dos diferentes tipos de descanso do trabalhador e assim do invocado erro de direito em relação às pertinentes normas reguladoras daquelas compensações.
Neste caso particular acompanhamos as fórmulas adoptadas na Jurisprudência quase unânime deste Tribunal, unanimidade que sofreu até ao momento apenas a excepção da compensação do trabalho prestado em dias de feriados obrigatórios e a inflexão a partir de 31/3/2011, com o processo n.º 780/2007, de 31/3/2011, deste TSI .6
Donde resultam as seguintes fórmulas:
No âmbito do
Descansos semanais
Descansos anuais
Feriados Obrigatórios
DL101/84/M
X17
X1
X18
DL24/89/M
X2
X19
X3
8. Os rendimentos deste processo constam da matéria acima dada como provada.
Ano
Salário Médio Diário
1
1993
418.88
2
1994
515.58
3
1995
414.63
4
1996
487.77
5
1997
372.77
6
1998
482.27
7
1999
426.57
8
2000
439.81
9
2001
342.99
10
2002
245.90
9. Trabalho prestado em dia de descanso semanal
Em sede do DESCANSO SEMANAL importa alterar os montantes, face aos valores do salário relevante apurado, alterando-se a fórmula encontrada por vir recurso interposto quanto a essa questão.
Assim, configura-se o seguinte quadro para o DESCANSO SEMANAL:
Ano
número de dias
vencidos e não gozados
(A)
remuneração
diária média
em MOP
(B)
Quantia indemnizatória
(A x B x 2)
1993
52
418.88
43,563.52
1994
52
515.58
53,620.32
1995
52
414.63
43,121.52
1996
52
487.77
50,728.08
1997
52
372.77
38,768.08
1998
52
482.27
50,156.08
1999
52
426.57
44,363.28
2000
52
439.81
45,740.24
2001
52
342.99
35,670.96
2002
25
245.90
12,295.00
Total das quantias
→
418,027.08
Vs o total na sentença:
7.003,89
10. Descanso anual
Em sede de DESCANSO ANUAL, importa igualmente recalcular os montantes apurados,mantendo-se a fórmula x 2, por não impugnada.
Nesta conformidade, no âmbito do
Decreto-Lei n.º
24/89/M
Ano
número de dias
vencidos e não gozados
(A)
remuneração
diária média
em MOP
(B)
Quantia indemnizatória
(A x B x 2)
1993
6
418.88
5,026.56
1994
6
515.58
6,186.96
1995
6
414.63
4,975.56
1996
6
487.77
5,853.24
1997
6
372.77
4,473.24
1998
6
482.27
5,787.24
1999
6
426.57
5,118.84
2000
6
439.81
5,277.72
2001
6
342.99
4,115.88
2002
3
245.90
1,475.40
Total das quantias
→
48,290.64
Vs o total na sentença:
2.429,21
11. Feriados obrigatórios
Importa recalcular os montantes, face ao valor do salário diário, mantendo a fórmula x2, por não impugnada.
Ano
número de dias
vencidos e não gozados
(A)
remuneração
diária média
em MOP
(B)
Quantia indemnizatória
(A x B x 2)
1993
6
418.88
5,026.56
1994
6
515.58
6,186.96
1995
6
414.63
4,975.56
1996
6
487.77
5,853.24
1997
6
372.77
4,473.24
1998
6
482.27
5,787.24
1999
6
426.57
5,118.84
2000
6
439.81
5,277.72
2001
6
342.99
4,115.88
2002
5
245.90
2,459.00
Total das quantias
→
49,274.24
Vs o total na sentença:
1.660,72
12. Concluindo,
Os valores encontrados para a compensação dos descansos semanais , anuais e feriados obrigatórios alteram-se em conformidade com os valores constantes dos mapas supra;
Conclui-se assim pela existência dos apontados vícios de interpretação dos factos e de direito.
Tudo visto e ponderado, resta decidir,
IV - DECISÃO
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam os Juízes que compõem o Colectivo deste Tribunal, em conferência, em:
- procedente o recurso da decisão final interposto pela trabalhadora, alterando a sentença proferida e condenando a Ré a pagar à A. os montantes em conformidade com os valores calculados nos mapas supra;
- em condenar no pagamento dos juros de mora, a contar a partir do momento desta decisão, vista a alteração verificada em relação à liquidação feita em 1ª Instância (cfr. Ac. TUI69/2010, de 2/3/11).
Custas do recurso pela Ré.
Macau, 15 de Setembro de 2011,
João A. G. Gil de Oliveira (vencido apenas quanto às fórmulas na parte divergente da Jurisprudência dominante deste Tribunal até 31/3/11, de acordo, designadamente, com os Acs n.ºs 330/05, de 11/5/06; 76/06, de 22/6/06 e 295/06, de 5/10/06)
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
1 - Processos 241/2005, 297/05, 304/05, 234/05, 320/05, 255/05, 296/05, respectivamente de 23/5/06, 23/2/06, 23/2/06, 2/3/06, 2/3/06, 26/1/06, 23/2/06, 330/2005 , 3/2006, 76 /2006.
2 - Processos 28/2007, 29/2007, 58/2007, de 21/7/07, 22/11/07 e 27/2708, respectivamente
3 - Cfr. processos, deste TSI, de 19/2/09, 314/2007, 346/2007, 347/2007, 360/2007, 370/2007
4 - Parecer da PGR n.º P001221988, de 18/11/88
5 - Proc. 55/2008, de 19/1/09, betweeen Lam Pik Shan and HK Wing On Travel Service Limited, in http://www.hklii.org/hk
6 - Vd. douto voto vencido nos Acórdãos 234/2005 e 257/2007, de 2/3/06 e 9/3/06, respectivamente
7 - Na Jurisprudência uniforme deste TSI até 31/3/11 não havia compensação no âmbito do DL101/84/M, de 25 de Agosto
8 - Na Jurisprudência uniforme deste TSI até 31/3/11 não havia compensação no âmbito do DL101/84/M, de 25 de Agosto
9 - Na Jurisprudência uniforme deste TSI até 31/3/11 a fórmula era x2
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171/2009 25/25