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Processo nº 847/2009
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 15 de Setembro de 2011

ASSUNTO:
- Aquisição por usucapião
- Composse

SUMÁRIO:
- A quota ideal dum prédio é susceptível de aquisição por usucapião.

O Relator,

Ho Wai Neng

Processo nº 847/2009
(Recurso civil e laboral)

Data: 15 de Setembro de 2011
Recorrente: A
Recorridos: Herdeiros desconhecidos de B e de C, bem como os interessados incertos

ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:

I – Relatório
Por sentença proferida nos presentes autos, decidiu-se julgar improcedente o pedido interposto pelo Autor A, pelo qual pede que seja declarado como proprietário de 2/3 do prédio nº XX do Beco da Roma, em Macau, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 2520 e inscrito na matriz sob a referência 11096-00, por usucapião.
Dessa decisão vem recorrer o Autor, alegando, em sede conclusiva:
1. Está provado que o Autor vem exercendo desde 1983 posse pública, pacífica, contínua, de boa fé e nunca tendo tido oposição de ninguém;
2. A lei admite que duas ou mais pessoas possam ser simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa (compropriedade);
3. Do mesmo modo existe composse quando mais do que uma pessoa tem posse sobre a mesma coisa nos termos de um direito da mesma natureza;
4. Podendo a composse incidir sobre qualquer direito real susceptível de posse, sendo a situação mais vulgar a da composse do direito de propriedade;
5. A composse prevista no art. 1211º do CCM refere-se à contitularidade no mesmo direito;
6. Na composse a posse de cada um não exclui a do outro;
7. Na composse a cada um dos compossuidores exerce poderes de facto sobre a totalidade do prédio;
8. A lei prevê a usucapião por compossuidor;
9. A quota parte ou quota ideal de um prédio é usucapível;
10. A invocação da usucapião apenas é vedada por obstáculos legais expressos, o que não é o caso da aquisição de uma quota parte ou parte ideal;
11. O pedido do A, para que fosse declarado proprietário de 2/3 do prédio em causa não conflitua com o direito de propriedade de 1/3 do imóvel titulado pelo seu filho;
12. A posse não precisa de ser titulada para poder ser considerada boa para a usucapião;
13. Não existe qualquer obstáculo a que o A. adquira os 2/3 do prédio por usucapião, pelo que, ao decidir em contrário e nos termos em que o fez, a sentença recorrida viola o artº 571º, n° 1, al. d) do CPC e os artº 1212° e 1221° do CCM.
   Pedindo no final a declaração da nulidade da sentença recorrida por falta de fundamentação, ou, caso assim não se entenda, a revogação da mesma e substituída por outra que julgue procedente o seu pedido.
*
Foram colhidos os vistos legais.

II – Factos
Vêm provados os factos seguintes:
1. Por escritura de 26/06/1959 lavrada a fls. 80/verso do Livro-165 do Notário Alberto Jorge, SAM SENG SONG, B e C, todas solteiras e maiores, e todas residentes na Rua da Praia Grande, 83, em Macau, adquiriram por compra a E, em partes iguais, o prédio n° XX do Beco da Romã, pelo preço de MOP$5,000.00 (doc. nº 1) (facto do artigo 1º).
2. O prédio nº XX do Beco da Romã, hoje demolido, e á descrito na CRP sob o n° 2520 a fls. 5v do Livro Bl3 (doc. 2) (facto do artigo 2º).
3. E inscrito na Matriz sob a referência 11096-00 (doc. 3), com o valor matricial de MOP$69,000.00 (facto do artigo 3º).
4. Em 02 de Março de 2004, foi outorgada a escritura pública de compra e venda entre a SAM SENG SONG e o F, a qual foi exarada a fls. 57 e verso do Livro 106-F do 1° Cartório Notarial de Macau (doc. 4) (facto do artigo 14º).
5. A SAM SENG SONG veio a falecer em 13/07/2007 (fls. 20) (facto do artigo 16º).
6. Em nome de F se encontra registada 1/3 da propriedade do imóvel em causa (doc. 4) (facto do artigo 17º).
7. Em Agosto desse mesmo ano, porque a casa nº XX do Beco da Romã ameaçava ruína, a DSSOPT procedeu à sua demolição, pela qual foi liquidada a quantia de MOP$10,614.00 (docs. 6 e 7) (facto do artigo 18º).
8. Desde o ano de 1983 que o Autor vem exercendo sobre o prédio XX de Beco da Romã uma posse pública, pacífica, contínua e de boa fé (facto do artigo 19º).
9. Sem oposição de ninguém (facto do artigo 20º).
10. É o Autor que, desde essa data, vem pagando as contibuções devidas (docs. 8 a 21) (facto do artigo 21º).
11. Foi também o Autor quem, na medida das suas escassas possibilidades, foi realizando e contratando pequenas obras de manutenção do imóvel até à sua demolição (facto do artigo 22º).
12. Desde 1983 que o Autor vem tratando a casa nº XX do Beco da Romã como coisa sua, com verdadeiro animus possidendi (facto do artigo 23º).

III – Fundamentos
O objecto do presente recurso passa pela análise de duas questões:
- Se existe nulidade da sentença por falta de fundamentação; e
- Se é susceptível de usucapião duma quota parte ideal de um prédio.
Quanto à primeira questão, cumpre dizer que o recorrente não tem razão, já que o tribunal a quo julgou a acção improcedente por entender que não era susceptível de usucapião duma quota parte ideal de um prédio.
Não se deve confundir a falta de fundamentação com a falta de fundamentos.
A primeira traduz-se num vício formal, na medida em que a sentença recorrida não especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a sua decisão, que não é o caso.
A segunda consiste num vício substancial, em que os fundamentos que serviram de base à decisão não estão conforme com o direito aplicável.
Passamos agora para a questão de fundo: É passível de usucapião duma quota ideal de um prédio?
A resposta, para nós, não deixa de ser afirmativa, já que é o próprio legislador que permite usucapião por compossuidor (cfr. artº 1216º do CCM), nos termos do qual a usucapião por um compossuidor relativamente ao objecto da posse comum aproveita igualmente aos demais compossuidores.
Por outro lado, coexistindo no nosso sistema jurídico as figuras de compropriedade e composse, não é razoável e lógica excluir a possibilidade de usucapião duma quota ideal de um prédio.
Sobre a mesma questão, o TUI já teve oportunidade de se pronunciar pelo mesmo sentido (Ac. do TUI de 16/01/2008, Proc. nº 41/2007).
Ao nível do Direito Comparado, o STJ de Portugal também se pronunciou no sentido da possibilidade da usucapião da quota ideal de um prédio (Ac. do STJ, de 01/10/1998, Proc. nº 98B569).
Vamos agora analisar se estão reunidos todos os requisitos da usucapião.
Dispõe o artº 1221º do CCM que “Não havendo registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de 15 anos, se a posse de boa-fé, e de 20 anos, se for de má-fé, independentemente do carácter titulado ou não da posse.”
Ficaram provados que:
 - Desde o ano de 1983 que o Autor vem exercendo sobre o prédio XX de Beco da Romã uma posse pública, pacífica, contínua e de boa fé (facto do artigo 19º).
 - Sem oposição de ninguém (facto do artigo 20º).
 - É o Autor que, desde essa data, vem pagando as contibuções devidas (docs. 8 a 21) (facto do artigo 21º).
 - Foi também o Autor quem, na medida das suas escassas possibilidades, foi realizando e contratando pequenas obras de manutenção do imóvel até à sua demolição (facto do artigo 22º).
 - Desde 1983 que o Autor vem tratando a casa nº XX do Beco da Romã como coisa sua, com verdadeiro animus possidendi (facto do artigo 23º).
Pelo exposto, não resta qualquer margem de dúvida de que ficaram preenchidos todos os requisitos legais da usucapião, apesar ter constatado indevidamente expressões conclusivas e de direito, pelo que deve julgar procedente o presente recurso.

IV – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam, em conferência, em conceder provimento ao recurso interposto, revogando a sentença recorrida e declarando o Autor A proprietário de 2/3 do prédio nº XX do Beco da Roma, em Macau, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 2520 e inscrito na matriz sob a referência 11096-00, por usucapião.

Sem custas em ambas as instâncias.

RAEM, aos 15 de Setembro de 2011.

Ho Wai Neng (Relator)
José Cândido de Pinho
Lai Kin Hong (com declaração de voto)




Processo nº 847/2009
Declaração de voto

Subscrevo o Acórdão antecedente com a seguinte reserva:

* As expressões de direito “posse pública, pacífica, contínua e de boa fé, animus possidendi” constantes da matéria de facto deveriam ter sido consideradas não escritas; e

* E assim, sendo amputadas essas expressões de direito da matéria de facto assento, tenho série dúvida quanto à suficiência da matéria de facto para sustentar a decisão de julgar procedente o pedido de usucapião.

RAEM, 15SET2011


O juiz adjunto

Lai Kin Hong


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