Processo n.º 840/2010
(Recurso civil e laboral)
Data: 13/Outubro/2011
Recorrente: A
Recorridas: S. T. D. M.
S. J. M.
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
A, melhor identificado nos autos, patrocinada por advogado, veio interpor contra Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A.R.L., e contra a Sociedade Jogos de Macau, S.A., igualmente melhor identificadas nos autos, Sociedade Anónima de Responsabilidade Limitada, pedindo a condenação das Rés, a título de créditos laborais a pagar- lhe a quantia de MOP$726.621,75 acrescida dos respectivos juros.
Julgada a causa, foi decidido absolver as Rés do pedido.
Da decisão final vem recorrer o A., alegando, em síntese:
Ao contrário do que terá feito o douto Tribunal a quo, em caso algum se poderia ter olvidado que a quantia recebida e aceite pela Autora, aqui Recorrente, se tratava de um simples e mero "prémio de serviço", tal qual resulta, aliás, do único sentido literal possível;
Assim, a Autora, ora Recorrente, tão-só assinou a "declaração" e aceitou o
montante do "prémio de serviço" por estar convencido de que uma mera liberalidade ou compensação extra se tratava, tal qual lhe havia sido expressamente comunicado e informado pela DSTE;
Em concreto, da simples leitura do primeiro parágrafo da declaração
subscrita pela Autora, ora Recorrente, em 14 de Julho de 2003, fácil é de ver que a mesma faz referência a um «prémio de serviço» "referenteao pagamento de compensação extraordinária de eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença de maternidade e rescisão por acordo do contrato de trabalho decorrentes do vínculo laboral com a STDM";
Ao que acresce que,
Todo o conteúdo da referida declaração é manifestamente vago, ambíguo e
impreciso, porquanto se limita a falar em "compensações extraordinárias", "eventuais direitos" e "eventual licença", sem apresentar quaisquer factos ou circunstâncias que dissessem respeito à concreta relação laboral que a Autora manteve com a I." Ré (STDM), o que só por si torna impossível mesma de servir enquanto instrumento de renúncia, pois esta pressupõe a existência de um certo e determinado direito na esfera do seu titular;
Suscita estranheza que um "documento" assinado em 14 de Julho de2002faça referência à "rescisão por acordo do contrato de trabalho decorrente do vínculo laboral com a STDM", porquanto se encontra provado Jnos presentes autos que" a partir do dia 23 de Julho de 2002, a /vutora iniciou a jprestação de trabalho para a 2.a Ré (SIM)" (4.°);
Assim, a única consequência que se poderá retirar da "declaração" assinada pela Autora, ora Recorrente, em 14 de Julhode 2003, é a de que a mesma tão-só e apenas comprova o recebimento da quantia na mesma descriminada;
Confrontando-se o valor constante da declaração assinada pela Autora, ora Recorrente, e o valor total do pedido, é notório que o montante constante da declaração é manifestamente inferior àquele, o que deixa ver que, nos termos do disposto no art" 6° do Decreto-Lei n" 24/89/M, de 3 de Abril, interpretado a contrario, em caso algum poderão ser admitidos acordos ou convenções, estabelecidos entre os empregadores e trabalhadores, dos quais resultam condições de trabalho menos favoráveis para os trabalhadores do que as que resultariam da aplicação da Lei;
Ademais, resulta do pedido que os créditos reclamados pela Autora, ora Recorrente, e reivindicados nos presentes autos são créditos resultantes do incumprimento por parte da L" Ré (STDM) do mínimo das condições de trabalho imperativamente fixadas no Decreto-Lei n" 24/89/M, de 3Abril;
E, neste sentido, com facilidade se nota que o benefício que o "prémio de serviço" representa para a Autora, ora Recorrente, é claramente muito inferior ao que lhe é devido à luz do Regime Jurídico das Relações Laborais;
Ora, dada a natureza imperativa do art" 6° do Decreto-Lei n? 24/89/M, de 3 de Abril, em caso algum se poderá aceitar como lícito um acordo entre empregador e trabalhador que se mostre aquém do mínimo de protecção que a Lei das Relações de Trabalho quer dispensar aos trabalhadores da RAEM;
Ao contrário do que terá concluído o Tribunal a quo, o conteúdo da segunda parte da declaração assinada pela Autora, ora Recorrente, em 14 de Julhode 2003, é nulo e de nenhum efeito, desde logo porque frontalmente viola o disposto nos artigos 5.° e 6.° do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril, ao consagrar uma diminuição ou eliminação de condições de trabalho estabelecidas e observadas entre a I." Ré (STDM) e a Autora, ora Recorrente;
O facto de a declaração ter sido subscrita no momento ou após ter cessado
a relação de trabalho que unia a Autora, ora Recorrente, à I." Ré (STDM) em caso algum poderá ser invocado como argumento válido para afastar a Autora, aqui Recorrente, do âmbito da protecção mínima estabelecida no art.º 6° do Decreto-Lei n" 24/89/M, de 3Abril;
Desde logo, porque,
O salário, se é certo que se não confunde com o direito à vida, traduz-se numa das suas mais significativas exigências, podendo dizer-se que constitui lima necessidade vital do trabalhador e respectiva família" (cfr. Jorge Leite, Direito do Trabalho, VoI. lI, Coimbra, p. 161);
E, deste modo,
( ••• ) não se vê em que é que o facto de o crédito salarial se vencer o torna menos
merecedor de tutela do que o crédito salarial vincendo - a sua natureza alimentar não desaparece, por certo, após o vencimento ( ... )" (cfr. João Leal Amado, A Protecção do Salário, Coimbra, 1993, p. 215, nota n." 56);
Porquanto,
( ... ) a irrenunciabilidade é outrossim reclamada pela natureza do próprio direito ao salário, enquanto direito marcado por uma nota fortemente alimentar, sendo evidente que a função alimentar da retribuição não se altera com a cessação do contrato, pelo que não se vislumbram razões válidas para baixar a guarda ao direito ao salário após a extinção do vínculo laboral. Urge, pois, superar a perspectiva tradicional - unidimensional - sobre esta questão, substituindo-a por uma perspectiva bidimensional que funde a tendencial irrenunciabilidade dos créditos salariais, não apenas no carácter hierarquizado ou subordinado da relação de trabalho, mas também na função alimentar desempenhada por estes créditos, função que subsiste mesmo após a dissolução do contrato de trabalho" (Cfr. João Leal Amado, «A RETRIBUIÇÃO E A LEI DAS RELAÇÕES DE TRABALHO DE MACAU: HESITAÇÕES E CONVICÇÕES DE UM JURlSTA LUSITANO», «SEMINÁRIO SOBRE O NOVO REGIME DAS RELAÇÕES DE TRABALHO», organizado pelo Centro de Formação Jurídica e Judiciária, RAEM, 25 e 26 de Julho de 2009);
E, sendo assim,
Em caso algum o Tribunal a quo deveria ter concluído que os créditos laborais da Autora, ora Recorrente, eram indisponíveis somente durante a vigência do contrato e disponíveis após a sua cessação e mostrando-se o conteúdo da "declaração" assinada pela Autora em 14 de Julho de 2003, contrário ao conteúdo de uma norma imperativa, é a mesma ser nula, nos termos do disposto no art. o 2790 do Código Civil;
Sendo nula e de nenhum efeito a declaração assinada pela Autora em 14 de Julho de 2003 e não obstante ter ficado prejudicada a apreciação dos pedidos apresentados pela Autora, da prova produzida já resultam os elementos necessários à decisão por parte do Tribunal de Segunda Instância;
Com efeito,
Resultando provado que "O rendimento da Autora desdobrava-se em duas partes, uma fixa, e outra parte variável", sendo "a segunda determinada em função do montante das "gorjetas" oferecidas pelos clientes", deve a este respeito seguir-se o entendimento unânime do Tribunal de Segunda Instância e considerar que "o salário (dos trabalhadores da STDM, e in casu do Recorrente) corresponde a um rendimento global/total ( .. .) uma quantia fixa e as gorjetas", devendo ser este o montante a ter em conta na determinação dos montantes indemnizatórios devidos pelas Rés à Autora, ora Recorrente, em virtude do não gozo de dias de descanso semanal, anual e, bem assim, de feriados obrigatórios;
Ademais, a Autora, ora Recorrente, sempre entendeu que o seu salário era integrado exactamente pelas duas referidas quantias: uma fixa e outra variável composta pelas chamadas "gorjetas" e a isto acresce que, foi justamente a soma destas duas quantias que durante toda a relação laboral serviram para retribuir a sua prestação de trabalho; E,
Face à desproporção do montante variável pago a título de "gorjetas" em relação à retribuição fixa estabelecida no contrato, a Autora, aqui Recorrente, nunca teria aceite estabelecer qualquer relação de trabalho com a Ré caso a sua quota-parte no valor daquelas não fizesse parte do vencimento;
In casu, as gorjetas auferidas pelo Recorrente, na sua última raiio devem ainda ser vistas como 11 rendimentos do trabalho 11, sendo devidos em função, por causa e por ocasião da prestação de trabalho, ainda que não originariamente como correspectividade dessa mesma prestação de trabalho, mas que o passam a ser a partir do momento em que pela prática habitual, montantes e forma de distribuição, com eles o trabalhador passa a contar;
Tendo ficado provado que desde o início da relação de trabalho entre a Autora e a L:" Ré (STDM) até ao seu termo, por imposição da L:" Ré (STDM), a Autora trabalhou todos os dias de descanso semanal, anual e feriados obrigatórios" (cfr. Quesito 10); "Nunca beneficiou ou gozou de qualquer dia de descanso semanal, anual e feriados obrigatórios" (cfr, Quesito 2.º) e que, iii) "( ... ) a Autora nunca beneficiou de qualquer acréscimo salarial pelo trabalho prestado nos dias de escanso semanal, anual e feriados obrigatórios ( ... )" (Quesito 3.º), devem as Rés ser condenadas a pagar à Autora, ora Recorrente, a quantia de MOP$578,096.00 (quinhentas e setenta e oito mil e noventa e seis patacas) a título de compensação pelo número de dias de descanso semanal que a Autora deixou de gozar, acrescido de MOP$95,310.00 (noventa e cinco mil e trezentas e dez patacas) a título de compensação pelo número de dias de descanso anual que a Autora deixou de gozar e de MOP$97,038.00 (noventa e sete mil e trinta e oito patacas) a título de compensação pelo número de dias de feriados obrigatórios remunerados que a Autora deixou de gozar, tudo tal qual alegado na Petição Inicial.
Nestes termos, conclui, deverá ser julgado procedente o presente recurso determinando-se a revogação da decisão recorrida, julgando-se conforme o pedido apresentado pela Autora.
A este Recurso responderam as Rés defendendo a bondade do decidido.
Foram colhidos os vistos legais.
II – FACTOS
Vêm provados os factos seguintes:
“Da confissão e das provas documentais resultam provados os seguintes factos:
Factos
Após realizado o debate e audiência de julgamento, são os factos abaixo indicados considerados provados pelo Tribunal (dado que os articulados apresentados pelas partes foram redigidos em português, a fim de evitar uma eventual diferença em tradução, cabe ao signatário citar os factos conforme os originais):
Desde Janeiro de 1962, a 1ª Ré (STDM) foi titular de um Contrato de Concessão para a Exploração, em regime de exclusividade, de jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casinos, para o Território de Macau, criado pela portaria n.º 18267, de 13 de Fevereiro de 1961. (A)
Por Despacho do Chefe do Executivo n.º 76/2002, de 27 de Março, foi adjudicada uma concessão de exploração do sector do jogo à 2ª Ré (SIM), que se encontra titulada pelo “Contrato de Concessão para a Exploração de Jogos de Fortuna ou Azar ou Outros Jogos em Casino na RAEM”, publicado no BO-RAEM n.º 14, II Série, Suplemento de 3 de Abril de 2002, pelo prazo de 18 (dezoito) anos. (B)
A autora manteve uma relação contratual com a Ré STDM no período temporal compreendido entre 14 de Junho de 1990 e 22 de Julho de 2002. (C)
Exercendo funções de “croupier”, “dealer”, e trabalhando sobre as ordens, direcção, instruções e fiscalização desta. (D)
O rendimento da Autora desdobrava-se em duas partes, uma parte fixa, e outra parte variável. (E)
A primeira calculada com base no valor da remuneração fixa diária. (F)
Sendo de HKD$ 10,00 desde o início da relação laboral até 30 de Abril de 1995; e desde 01 de Maio de 1995 até ao fim da relação laboral de HKD$ 15,00. (G)
E a segunda determinada em função do montante das “gorjetas” oferecidas pelos clientes. (H)
As “gorjetas” não se destinavam, em exclusivo, aos trabalhadores que lidavam directamente com os clientes de casinos. (I)
A Autora não podia ficar com quaisquer “gorjetas” que lhe fossem entregues pelos clientes do casino. (J)
As “gorjetas” recebidas pelos empregados eram colocadas, por ordem da Ré, numa caixa destinada exclusivamente para esse efeito, e eram contadas diariamente por funcionários da Ré, sob vigilância da Direcção de Coordenação de Inspecção e Coordenação de Jogos, a fim de serem distribuídas de 10 em 10 dias aos diversos empregados consoante uma dada percentagem anteriormente fixada pela Ré. (K)
Sobre os rendimentos incidiu imposto profissional nos termos que constou da certidão de rendimentos de fls. 76, de cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. (L)
A 14 de Julho de 2003 a Autora emitiu a declaração constante de fls. 250, de cujo teor se passa a transcrever:
Declaração
Eu, A,
titular do BIR n.º 7/36XXXX/5, recebi, voluntariamente, a título de prémio de serviço, a quantia de MOP$ 27.097,50 da Sociedade de Turismo e Diversões de Macau (doravante simplesmente designada por STDM), referente ao pagamento de compensação extraordinária de eventuais direitos relativos a todos os dias de licença (descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença de maternidade) e rescisão por acordo do contrato de trabalho, decorrentes do vínculo laboral com a STDM.
Mais declaro e entendo que, recebido o valor recebido, nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a STDM subsiste e, por consequência, nenhuma quantia é por mim exigível, por qualquer forma, à STDM, na medida em que nenhuma das partes deve à outra qualquer compensação relativa ao vínculo laboral.
(A Declarante): (ass.) A.
BIR n.º: 7/36XXXX/5
Data: 14-7-2003
Concordo e aceito tal declaração
(ass.) - (Vide o original).
2003.07.14
(carimbo) - STDM * Departamento do Pessoal. (N)
A Autora recebeu junto da então Direcção de Serviços de Trabalho e Emprego (DSTE), que deu origem ao processo n.º 1476/2002, a quantia de MOP$ 13.548,75. (O)
Em 28 de Setembro de 2001, durante a vigência da relação de trabalho, a Autora deu à luz no seu 1º parto uma filha de nome Sio Teng Neng (蕭婷佞). (Q)
Durante os trinta e cinco dias em que foi dispensada de prestar trabalho, a Autora não recebeu da 1ª Ré (STDM) qualquer salário ou outra compensação. (R)
Em Maio de 2006, a Autora, por sua vontade, extinguiu o contrato de trabalho com a 2ª Ré SJM. (S)
Desde o início da relação de trabalho entre o Autora e a 1ª Ré (STDM) até ao seu termo, por imposição da 1ª Ré (STDM), a Autora trabalhou todos os dias de descanso semanal, anual e feriados obrigatórios. (1º)
Nunca beneficiou ou gozou de qualquer dia de descanso semanal, anual e feriados obrigatórios. (2º)
Nem beneficiou de qualquer acréscimo salarial pelo trabalho prestado nesses dias, excepto as quantias referidas na al. n) e o) dos factos assentes. (3º e 22º)
A partir do dia 23 de Julho de 2002, a Autora iniciou a sua prestação de trabalho para a 2ª Ré (SJM). (4º)
A Autora gozou 7 dias de descanso no ano de 1993, 12 dias de descanso no ano de 1994, 32 dias do descanso no ano de 1995, 3 dias de descanso no ano de 1996, 10 dias de descanso no ano de 1997, 15 dias de descanso no ano de 1998, 10 dias de descanso no ano de 1999, 43 dias de descanso no ano de 2000, 140 dias de descanso no ano de 2001, 8 dias de descanso no ano de 2002. (16º)
Os trabalhadores da Ré até 2002, tal como na situação da Autora, podiam gozar um máximo de 40 dias seguidos ou corridos e um número ilimitado de dias interpolados de descanso não remunerado. (17º)
Para tal, bastava que preenchesse um formulário. (18º)
Os formulários eram remetidos à Secretaria da Ré. (19º)
As gorjetas eram reunidas diariamente, após o que eram contabilizadas e guardadas por uma comissão paritária com a seguinte composição: um funcionário do Departamento da Inspecção de Jogos de Fortuna ou Azar; um membro do Departamento da Tesouraria da Ré; um Gerente de Andar ou Floor Manager; um ou mais Trabalhadores/ Croupiers das mesas de Jogo. (20º)
Desde o início da relação laboral até 2002, o rendimento médio diário da Autora correspondia aos seguintes valores:
a) Ano de 1990 = MOP$ 179,30
b) Ano de 1991 = MOP$ 260,00
c) Ano de 1992 = MOP$ 341,00
d) Ano de 1993 = MOP$ 383,00
e) Ano de 1994 = MOP$ 428,00
f) Ano de 1995 = MOP$ 457,00
g) Ano de 1996 = MOP$ 531,00
h) Ano de 1997 = MOP$ 531,00
i) Ano de 1998 = MOP$ 513,00
j) Ano de 1999 = MOP$ 479,00
k) Ano de 2000 = MOP$ 434,00
l) Ano de 2001 = MOP$ 316,00
m) Ano de 2002 = MOP$ 517,00 (21º)
A duração do contrato entre a Autora e a 2ª Ré: 23 de Julho de 2002 a 9 de Maio de 2006. (23º)
O rendimento mensal da Autora pago pela Ré (2ª Ré SJM) era de MOP$ 5.000,00 por mês entre 23 de Julho de 2002 e 22 de Julho de 2004. (24º)”
III - FUNDAMENTOS
1. O objecto do presente recurso passa fundamentalmente por aprecia a validade e relevância em termos de eficácia jurídica da declaração assinada pela trabalhadora, nos termos da qual declarou ter recebido já as compensações devidas.
O que se desdobra na análise das seguintes questões:
- Da observância da forma legal
- Da aplicação do Código Civil em detrimento do DL 87/89/M de 3/Abril
- Da natureza, validade e alcance da declaração e da disponibilidade ou indisponibilidade dos direitos
- Do princípio do favor laboratoris
- Da validade da declaração
A Mma juiz considerou que a dita declaração consubstanciada no documento de fls 250 era válido consubstanciando uma espécie de quitação, donde ter absolvido as rés dos pedidos contra elas formulados na acção.
2. Importa então ver da natureza dessa declaração de forma a indagar se se observam ou não a invalidade que lhe é assacada pela recorrente.
Insurge-se a recorrente contra quem fora pedido o pagamento das compensações devidas pelo pretenso não gozo de determinados descansos (semanal, anual e feriados), durante os anos em que trabalhou para a Ré STDM, pela aplicação na sentença recorrida do artigo 776º do CC, enquadrando-se como quitação da dívida a declaração acima referida, e segundo a qual o trabalhador, aquando da cessação da relação laboral assinou uma declaração dizendo receber as quantias a que considerava com direito, mais dizendo que considerava não subsistir qualquer outro direito decorrente da relação laboral que então findava.
E por considerar que a situação está prevista no RJRL (DL24/89/M, de 3/4), não seria aplicável o regime geral que, no fundo, permite a disponibilidade dos créditos do trabalhador, donde entender que essa declaração é nula e de nenhum efeito.
3. Antes de esmiuçar esta questão, importa caracterizar a natureza e alcance da declaração que a trabalhadora assinou, para assim se ver se ela está ou não regulada no RJRL. Só se se concluir que se trata de uma renúncia de direitos indisponíveis abrangida por aquele regime se poderá afirmar a inaplicabilidade do regime geral consagrado na lei civil.
Analisando a transcrita declaração, os seus termos, em chinês e em português, são claros e o sentido que um declaratário normal - e, tal como se assinala na douta sentença recorrida, face ao disposto no artigo 228º do CC, é esse o sentido que há que relevar - dali retira é que o trabalhador, face à rescisão do contrato de trabalho, no que respeita à relação laboral subsistente até então, recebeu uma certa quantia, referente a compensações de eventuais direitos, nomeadamente relativos aos descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, aceitando que nenhuma outra quantia fosse devida.
Em linguagem simples, deu quitação da dívida.
4. Mas vem agora o trabalhador demandar outros montantes, quantitativamente muito maiores, numa desconformidade que desde logo impressiona, em relação àqueles que aceitou receber. E impressiona, porque em face de tais montantes, se não se considerava pago, face ao prejuízo que se afigurava, não devia ter assinado essa declaração.
Dir-se-á que não tinha consciência do montante dos créditos ou que foi induzido em erro; mas essa é uma outra questão que devia ter sido alegada e comprovada, não se deixando de adiantar que tal como agora ocorreu não havia razões para se aconselhar sobre o alcance dos créditos a que efectivamente teria direito.
Essa, contudo, é questão que não importa agora apreciar.
5. Nem se diga que se tratou de uma renúncia de direitos indisponíveis.
Não releva a natureza indisponível dos direitos concedidos ao trabalhador, a natureza proteccionista daquele diploma em relação a tais direitos, a necessidade de protecção da parte mais fraca, a posição dominante da concessionária empregadora, a menor margem de liberdade do trabalhador.
A protecção que deve ser dispensada ao trabalhador não pode ser absoluta nem fazer dele um incapaz sem autonomia e liberdade, ainda que aceitando os condicionamentos específicos decorrentes de uma relação laboral.
É verdade que, desde logo, o RJRL ,no seu art. 1°, pugnando pela "observância dos condicionalismos mínimos" nele estabelecidos, prevê que “O presente diploma define os condicionalismos mínimos que devem ser observados na contratação entre empregadores directos e trabalhadores residentes, para além de outros que se encontrem ou venham a ser estabelecidos em diplomas avulsos.”
E no art. 33º do R.J.R.T. ”O trabalhador não pode ceder, nem a qualquer outro título alienar, a título gratuito ou oneroso, os seus créditos ao salário, salvo a favor de fundo de segurança social, desde que os subsídios por este atribuídos sejam de montante igual ou superior ao dos créditos.”
Daqui decorre que nenhum desses artigos contempla ex professo a situação em apreço. Antes respeitam a situações diferentes, nomeadamente o artigo 33º o que prevê é a impossibilidade de renúncia a um salário e não já às compensações devidas por trabalho indevido.
Tais preceitos dispõem sobre a regulação do exercício de uma relação laboral ainda em aberto, compreendendo-se que por essa via, ao trabalhador sejam garantidos aqueles mínimos que o legislador reputa como as condições mínimas de exercício humano, digno e justo do trabalho a favor de outrem.
Tais cautelas já não são válidas quando finda essa relação, como aconteceu no caso presente.
E também não são válidas quando já não está em causa o exercício dos direitos, mas apenas uma compensação que mais não é do que a indemnização pelo não gozo de determinados direitos.
Não deixaria de ser abusivo e contrário à autonomia da vontade e liberdade pessoal, próprias do direito privado, que alguém, incluindo o trabalhador, não pudesse ser livre quanto ao destino a dar ao dinheiro recebido, ainda que a título de compensações recebidas por créditos laborais.
A não se entender desta forma, pese embora a aberração do argumento, ter-se-ia de obrigar o trabalhador a aceitar o dinheiro e, mais, importaria seguir o destino que ele lhe daria.
6. Diferentes são as coisas quando o trabalhador está em exercício de funções e a sociedade exige que as condições de trabalho sejam humanas e dignificantes, não se permitindo salários ou condições concretas de exercício vexatórias e achincalhantes, materializando a garantia da sua subsistência e do seu agregado familiar. Essa tem de ser a inspiração do intérprete relativamente ao princípio favor laboratoris, mas que não pode ir ao ponto de converter o trabalhador num incapaz de querer, entender e de se poder e dever determinar.
Nem aquele princípio, consagrado no artigo 5º do mesmo supra citado Regime nos seguintes termos “1. O disposto no presente diploma não prejudica as condições de trabalho mais favoráveis que sejam já observadas e praticadas entre qualquer empregador e os trabalhadores ao seu serviço, seja qual for a fonte dessas condições mais favoráveis. 2. O presente diploma nunca poderá ser entendido ou interpretado no sentido de implicar a redução ou eliminação de condições de trabalho estabelecidas ou observadas entre os empregadores e os trabalhadores, com origem em normas convencionais, em regulamentos de empresa ou em usos e costumes, desde que essas condições de trabalho sejam mais favoráveis do que as consagradas no presente diploma.” , poderá ter o alcance que se pretende, de limitar a capacidade negocial do trabalhador de forma tão extensa.
O princípio do tratamento mais favorável "...assume fundamentalmente o sentido de que as normas jurídico-laborais, mesmo as que não denunciem expressamente o carácter de preceitos limitativos, devem ser em princípio consideradas como tais. O favor laboratoris desempenha pois a função de um prius relativamente ao esforço interpretativo, não se integra nele. É este o sentido em que, segundo supomos, pode apelar-se para a atitude geral de favorecimento do legislador - e não o de todas as normas do direito laboral serem realmente concretizações desse favor e como tais deverem ser aplicadas"1
Noutra perspectiva2, considera-se que tratamento mais favorável ao trabalhador deve ser entendido em termos actualistas, como o conjunto dos valores que o Direito do Trabalho, de modo adaptado, particularmente defende e entre os quais, naturalmente, avulta a protecção necessária ao trabalhador subordinado. Quando haja um conflito hierárquico entre fontes do Direito do Trabalho, aplicam-se as normas que estabelecem tratamento mais favorável para o trabalhador, sejam elas quais forem; tal não se verificará quando a norma superior tenha uma pretensão de aplicação efectiva, afastando a inferior.
Donde decorre que o princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador não é erigido para sufragar toda e qualquer interpretação que permita o alargamento de uma tutela proteccionista injustificada, tendo antes na sua génese a exclusão de um regime, entre dois ou mais aplicáveis, que lhe seja menos favorável.
7. Nesta conformidade falece ainda eventual invocação do artigo 6º do RJRL ”São, em princípio, admitidos todos os acordos ou convenções estabelecidos entre os empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos ainda que disponham de modo diferente do estabelecido na presente lei, desde que da sua aplicação não resultem condições de trabalho menos favoráveis para os trabalhadores do que as que resultariam da aplicação da lei”,
tendo-se como condições de trabalho, nos termos do art. 2º, al. d) todo e qualquer direito, dever ou circunstância, relacionados com a conduta e actuação dos empregadores e dos trabalhadores, nas respectivas relações de trabalho, ou nos locais onde o trabalho é prestado.
Isto porque, como se disse, já não se trata de conduta e actuação no local de trabalho e exercício de funções.
Tal é a situação dos autos, em que se mostrou cessada a relação laboral e assim se tem entendido em termos de Jurisprudência comparada.3
8. Quanto à natureza e validade da declaração.
Afastando-se, como se viu, a aplicabilidade do RJRL em relação à proibição de tal estipulação, importa atentar na natureza que assume a declaração emitida pelo trabalhador aquando da cessação da relação laboral.
Em termos gerais, a remissão de dívida traduz-se na renúncia do credor ao direito de exigir a prestação, feita com o acordo do devedor.
A primeira questão que se coloca é a de saber se o documento em causa constitui realmente um contrato de remissão. Pode-se entender que a referida declaração não configura um contrato de remissão, pois que tal implicaria uma identificação e reconhecimento de créditos de que prescindiria.
Mas, o certo é que tal documento contém, pelo menos, uma declaração de quitação que, dada a sua amplitude, abrange todos os créditos resultantes da relação laboral em causa, incluindo os que eventualmente pudessem resultar da sua cessação.
A remissão é uma das causas de extinção das obrigações e traduz-se na renúncia do credor ao direito de exigir a prestação que lhe é devida, feita com a aquiescência da contraparte4, revestindo, por isso, a forma de contrato, como claramente se diz no art.º 854º, n.º 1, do C.C.: "O credor pode remitir a dívida por contrato com o devedor."
9. O que verdadeiramente caracteriza o contrato de remissão é a renúncia do credor ao poder de exigir a prestação que lhe é devida pelo devedor. Ao contrário do que acontece com o cumprimento (em que a obrigação se extingue pela realização da prestação devida) e ao contrário do que acontece na consignação, na compensação e na novação (em que o interesse do credor é satisfeito, não através da realização da prestação devida, mas por um meio diferente), na remissão, tal como na confusão e na prescrição, o direito de crédito não chega a funcionar. O interesse do credor a que a obrigação se encontra adstrita não chega a ser satisfeito, nem sequer indirecta ou potencialmente e, todavia, a obrigação extingue-se.5
O direito romano admitia a acceptilatio (remissão de uma obrigação verbal, mediante reconhecimento de se ter recebido a prestação, remissão que extinguia o crédito ipso jure), o pactum de non petendo (convenção pela qual o credor prometia ao devedor que não faria valer o crédito, definitiva ou temporariamente, contra todos - pactum in rem - ou contra determinada pessoa - pactum in provissem, produzindo o pacto o efeito de atribuir uma exceptio contra o crédito) e o contrarius consensus (convenção pela qual se extinguia toda uma relação obrigacional, derivada de um contrato consensual, o que só era possível se nenhuma das partes tinha ainda cumprido6
Pode-se dizer, num certo sentido que, hoje, na remisão, - artigo 854ºdo Código Civil - extinguindo-se a obrigação, o interesse do credor não se satisfaz, nem sequer indirecta ou potencialmente.
10. Mas mesmo que, ainda porventura por algum excesso de rigor formal, se considerasse que o documento em causa não pudesse ser qualificado de remissão, por se entender ser necessário que a declaração nele contida tivesse carácter remissivo, isto é, que a parte tivesse declarado que renunciava ao direito de exigir esta ou aquela concretizada prestação, não se deixará de estar sempre perante uma declaração de quitação em que se consideravam extintos, por recíproco pagamento, ajustado e efectuado nessa data, toda qualquer compensação emergente da relação laboral, o que vale por dizer que todas as obrigações decorrentes do contrato de trabalho tinham sido cumpridas.
Como diz Leal Amado7., uma quitação com aquela amplitude é, sem dúvida, uma quitação sui generis, uma vez que os credores não se limitaram a atestar que receberam esta ou aquela prestação determinada. Ao declarar que recebia as compensações a determinado título e que mais nenhum direito subsistia, por qualquer forma, nada devendo reciprocamente, atestaram que receberam todas as prestações que lhe eram devidas. E essa forma de quitação, por saldo de toda a conta, não deixa de ser admitida em direito.
Perante isto, em vez de se perguntar se o autor renunciou ao direito às prestações que eventualmente lhe seriam devidas em consequência da cessação da relação laboral, perguntar-se-á se essas prestações já se mostram realizadas ou se se mostram extintas, sendo que a resposta a esta última questão, tida como relevante, é seguramente afirmativa, perante a clareza daquela afirmação.
Na verdade, como inequivocamente decorre do teor do documento, os direitos abrangidos pela declaração emitida são os emergentes da relação contratual de natureza profissional que entre A. e Ré se manteve até àquela data.
11. Poder-se-á ainda dizer que a extinção da relação laboral acordada, tornou impossível o cumprimento da obrigação de pagamento à autora, do que ela solicita. Daí que ele passasse a ser titular de um outro direito; tal como já se assinalou, o crédito peticionado é o crédito à indemnização devida pelo incumprimento das obrigações que decorreram para a entidade patronal de lhe garantir os aludidos repousos enquanto para ele trabalhou.
Esta perspectiva afigura-se particularmente relevante.
É que não se trata da disponibilidade de direitos, mas sim da compensação pela sua não satisfação.
Pelo contrato havido e comprovado, no âmbito do qual foi emitida aquela declaração, as partes acordaram sobre o montante de indemnização ou "compensação" devida à Autora e, com o recebimento dessa quantia, a correspondente obrigação da Ré, surgida em substituição da obrigação inicial, extinguiu-se pelo pagamento de que a A. deu total quitação, sendo legítima a transacção extrajudicial sobre o conteúdo ou extensão de obrigação da Ré nos termos do artigo 1172º do CC, não abrangida já por qualquer indisponibilidade.
12. Anota-se ainda que no aludido documento, para além de que não se deixaram de concretizar a que título ocorreu o acerto final, quais as compensações a que se procedia, deu-se até quitação de todas e eventuais prestações não abrangidas por aquele recebimento.
Tem-se até noutros casos invocado o argumento de o trabalhador se encontrar em notória situação de inferioridade e dependência ao assinar o recibo, pelo que, não manifestando qualquer vontade negocial, não terá tomado uma opção livre e consciente, uma escolha livre no tocante à assinatura da referida declaração, estaríamos perante uma situação de erro vício previsto no artigo 240º do CC, face à indução da conduta pela entidade pública tutelar e viciação da vontade, por temor, vista a continuação numa sociedade subsidiária da primeira empregadora.
Trata-se, no entanto, de questão que não é colocada.
13. Não se deixa de referir que esta interpretação, não obstante algumas divergências, não tem deixado de ser acolhida nos Tribunais de Macau, conforme parte da Jurisprudência do TSI e a Jurisprudência do TUI.8
Assim se conclui pela não existência dos apontados vícios, não sendo de manter a douta decisão proferida, o que prejudica necessariamente o recurso final.
14. Estamos, pois, em condições de concluir que o referido documento assume uma natureza de quitação e de remissão abdicativa pela qual ficou claro que o trabalhador renunciava a quaisquer direitos emergentes da relação laboral que então cessava.
Não se deixará ainda de referir que não só não se vê razão para considerar estarmos perante uma transacção como pretende a Mmma Juiz, enquadrável no art. 1174º do CC, como ainda, a considerar esse entendimento, não se vê razão para que o mesmo houvesse de ser celebrado por escritura pública já que a produção de efeitos dali decorrente não obriga a que se exija escritura pública, contentando-se essa declaração negocial com a forma escrita, tal como ocorreu e sendo que nem sequer o contrato principal ( o contrato de trabalho) tem de revestir tal forma.
15. Assim, concluindo, relevando-se o documento de fls 250, como se releva, procedente deve ser julgada a referida excepção peremptória, vista a renúncia expressa e relevante de quaisquer créditos sobre a Ré por parte da A.
IV - DECISÃO
Pelas apontadas razões, nos termos e fundamentos expostos, acordam em negar provimento ao recurso interposto, mantendo a decisão proferida.
Custas do recurso pela recorrente.
Macau, 13 de Outubro de 2011,
João A. G. Gil de Oliveira (Relator)
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
1 - Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, Almedina, 11.ª edição, pág. 118.
2 - Menezes Cordeiro, Direito do Trabalho, pág. 219.
3 - Acs. STJ de 20/11/03, proc. 01S4270, de 12/12/01, proc. 01S2271, de 9/10/02, proc. 3661/02
4 - A. Varela, Das obrigações em geral, Coimbra Editora, 2.ª ed., vol. II, pag. 203
5 - A. Varela - Ob. cit., pág. 204
6 - Professor Vaz Serra, BMJ 43, 57.
7 - A Protecção do Salário, pag. 225, eparata do volume XXXIX do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
8 - Acs do TUI46/07, de 27/2/08; 14/08, de 11/6/08; 17/08, de 11/6/08; TSI, proc. 294/07, de 19/7, entre muitos outros
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