ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
I – Relatório
O Tribunal de Segunda Instância (TSI), por Acórdão de 19 de Julho de 2012, concedeu parcial provimento ao recurso interposto pelo demandante civil A da decisão do Tribunal Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), tendo condenado a B a pagar àquele a quantia de MOP$1.351.780,30 (um milhão trezentas e cinquenta e uma mil, setecentas e oitenta patacas e trinta avos), bem como juros legais.
Não conformada, interpõe B recurso para este Tribunal de Última Instância (TUI), formulando as seguintes conclusões úteis:
Os Mmos. Juízes do Tribunal de Segunda Instância, ao atribuírem culpa exclusiva ao arguido na ocorrência do acidente em causa, violaram o disposto no art. 564º do CC.
Isto porque foi dado como provado que o acidente ocorreu quando o ofendido tentou atravessar a estrada junto ao poste de iluminação pública nº XXXXXX na Estrada da Baía da Nossa Senhora da Esperança.
É do conhecimento geral que em 2007 e junto àquele poste de iluminação não existia qualquer passadeira - estamos pois na presença de um facto notório.
E de acordo com o artigo 434º, nº 1 do CPC - aplicável ex vi do art. 4º do CPP - não carecem de alegação nem de prova os factos notórios.
É também do conhecimento geral que na zona em que o ofendido tentou atravessar a estrada existia um espaço ajardinado que constitui o separador de trânsito, com pelo menos 45cm e densamente arborizado que impedia uma visão clara dos peões que o atravessavam.
Ficou também provado que quando o arguido conduzia o veículo identificado supra, apareceu um peão (o ofendido A) a atravessar a estrada naquele local.
"Aparecer" significa "tornar-se visível; mostrar-se de repente" pelo que o douto colectivo do Tribunal Judicial de Base concluiu que o ofendido ao atravessar a estrada não tomou a devida atenção.
O douto colectivo do Tribunal Judicial de Base atendeu para concluir pela culpa do ofendido, ao disposto nos artigos 2º , no 2, 8º, nos 1 e 2 e 10º do CE, preceitos que foram desrespeitados pelo ofendido e que foram determinantes para a atribuição de uma percentagem de culpa de 50% ao mesmo.
O condutor não é obrigado a prever ou contar com a falta de prudência dos restantes utentes da via antes devendo razoavelmente partir do princípio de que todos cumprem os princípios regulamentares do trânsito e observam os deveres de cuidado que lhes subjazem.
Da matéria dada como provada resulta que, quer por banda do arguido, quer por parte do ofendido, houve omissão das regras estradais, das quais não se poderá extrair, como fez a Segunda Instância, que o acidente tivesse ocorrido por culpa exclusiva de algum deles.
Isto é, apesar da velocidade que se considerou excessiva para as circunstâncias de tempo, lugar e modo em que se desenrolou o evento, a verdade é que igual contributo teve o peão sinistrado para o evento, cuja culpa é evidente, pela sua invasão inopinada e por sítio não habilitado da via. O ofendido com a sua travessia inesperada e súbita da via, em ponto totalmente irrecomendável, tornou impossível ao condutor do veículo evitar o sinistro.
Da análise da jurisprudência da RAEM, se conclui que os valores fixados pela primeira instância (MOP$550.368,00 e MOP$400.000,00 respectivamente) são valores justos e mais próximos daquilo que tem sido decidido pelos tribunais superiores da RAEM, do que aqueles outros fixados em Segunda Instância.
II – Os factos
As instâncias consideraram provados os seguintes factos:
Foram provados os seguintes factos constantes da acusação:
No dia 13 de Fevereiro de 2007, cerca das 20h08, o arguido C conduzia o veículo automóvel ligeiro (de matrícula MF-XX-XX), na Estrada da Baía de Nossa Senhora da Esperança na Taipa, no sentido da Rotunda da Piscina Olímpica para a Rotunda da Estrada do Istmo.
Aquando do acidente, o estado do tempo era bom, o pavimento estava seco, a iluminação da rua era suficiente e a densidade do trânsito era normal.
Quando o arguido conduzia o referido veículo automóvel ligeiro até à via próxima do posto de iluminação n.º XXXXXX, um peão (A) estava a atravessar a referida via (no sentido do estaleiro do Venetian Hotel Resort para Casas - Museu da Taipa).
Dado que a velocidade do veículo era excessiva, o arguido, apesar de ter visto o peão a atravessar a via, não conseguiu parar atempadamente o veículo.
Em consequência, o veículo automóvel ligeiro conduzido pelo arguido embateu no peão A.
A aludida conduta do arguido causou directa e necessariamente a A hemorragia subaracnoideia à volta do tronco intracerebral, com diplopia no olho esquerdo, fractura da diáfise do fémur esquerdo, fractura do planalto tibial esquerdo, fractura da extremidade distal da tíbia e do perónio do lado esquerdo e fractura da extremidade proximal da tíbia e do perónio do lado.
Conforme a perícia de clínica médico-legal a fls. 45 dos autos, a conduta do arguido causou a A ofensa grave à integridade física, doença prolongada e pondo em risco a sua vida.
Ao conduzir o veículo, o arguido não controlou adequadamente a velocidade nem manteve a precaução que devia ter, provocou assim o acidente de viação e causou lesões físicas a outrem.
O arguido praticou de forma voluntária e consciente a aludida conduta, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.
*
Foram provados os seguintes factos constantes do pedido cível e das contestações:
O ofendido nasceu em 21 de Dezembro de 1956 e completou 50 anos de idade à data do acidente.
Na altura, o ofendido não padecia de qualquer doença, trabalhando como pintor para a D, sendo designado para trabalhar no estaleiro de obras do Venetian Hotel Resort.
O ofendido auferia um salário base médio mensal de MOP$16.380,00, recebendo por cada hora extraordinária MOP$157,50, sendo o seu salário médio mensal total de MOP$20.000,00.
Após o acidente de viação, o ofendido ficou internado no Centro Hospitalar Conde de S. Januário entre 13 de Fevereiro de 2007 e 22 de Junho do mesmo ano, durante o qual, o ofendido foi submetido a intervenção cirúrgica em ambas as pernas em 15 de Fevereiro de 2007.
Para curar as lesões resultantes do acidente de viação, as despesas com o internamento hospitalar, despesas médicas e medicamentosas do ofendido durante o seu internamento no Centro Hospitalar Conde de S. Januário custaram um total de MOP$41.222,00.
Na sequência do acidente de viação, o ofendido sofreu fractura de 4 dentes cujo tratamento custou MOP$6.400,00.
Depois da alta, o ofendido ainda necessitou de receber tratamentos médicos em várias especialidades.
Depois da alta, o ofendido pagou uma quantia total de MOP$23.978,25, a título de despesas médicas e medicamentosas.
As despesas com o internamento hospitalar e despesas médicas e medicamentosas acima referidas totalizam MOP$71.600,25.
Devido às lesões decorrentes do acidente de viação, o ofendido ficou incapacitado para o trabalho e perdeu assim o salário base, no valor total de MOP$180.180,00.
Conforme a tabela de incapacidades de trabalho, o ofendido sofre uma incapacidade de 20%.
Segundo os ferimentos sofridos pelo ofendido e a natureza do seu trabalho, a perda de rendimento futuro do ofendido é de 20%.
Após o período de doença, o ofendido completou 51 anos de idade, podendo ainda o ofendido trabalhar por mais de 14 anos até aos 65 anos de idade, pelo que, o ofendido já perdeu e perderá um rendimento total de MOP$550.368,00, calculado com base na perda de 20% do seu salário base mensal de MOP$16.380,00.
O ofendido sofreu dores e sentiu aflição durante o sofrimento dos ferimentos e os tratamentos médicos.
A responsabilidade civil relativa ao veículo automóvel de matrícula MF-XX-XX foi transferida para a B através da apólice n.º XXX/XXX/XXXX/XXXXXX, sendo o valor limite de indemnização de MOP$2.000.000,00 por acidente.
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Mais foram provados os seguintes factos:
No CRC, nada consta em desabono do arguido.
O arguido é taxista, auferindo mensalmente cerca de MOP$8.000,00, tendo a seu cargo a mulher, um filho e duas filhas, tendo como habilitações académicas o ensino primário.
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Factos não provados:
Factos constantes da acusação: Nada a assinalar.
Os restantes factos relevantes constantes do pedido de indemnização cível e das contestações que não estejam em conformidade com factualidade acima assente, nomeadamente:
Devido ao acidente de viação, o ofendido não podia pagar o empréstimo bancário da aquisição da fracção autónoma, pelo que, foi-lhe exigido pelo banco o pagamento do referido empréstimo.
III - O Direito
1. As questões a resolver
São duas as questões a resolver. A primeira, a de saber se devem ser repartidas as culpas pela produção do acidente de viação dos autos entre o condutor e peão/vítima, em partes iguais, como pretende a seguradora do condutor (e não na totalidade pelo condutor, como decidiu o Acórdão recorrido).
A segunda, se devem ser alterados os valores fixados pelo acórdão recorrido para a perda de rendimentos por causa da incapacidade permanente parcial da vítima e para os danos não patrimoniais da mesma, respectivamente, de MOP$600.000,00 e MOP$500.000,00, para MOP$550.368,00 e MOP$400.000,00, como decidiu o Tribunal de 1.ª instância.
2. A responsabilidade pela produção do acidente.
O acidente de viação dos autos consistiu no atropelamento da vítima, que se deslocava a pé e atravessava uma via pública, por um veículo ligeiro de passageiros, conduzido pelo arguido no presente processo-crime, e ocorreu a 13 de Fevereiro de 2007, pelas 20.08 horas.
O veículo seguia na Estrada da Baía de Nossa Senhora da Esperança na Taipa, no sentido da Rotunda da Piscina Olímpica para a Rotunda da Estrada do Istmo.
O texto dos factos provados da sentença do Tribunal de 1.ª Instância, no que concerne ao atropelamento é o seguinte:
“Quando o arguido conduzia o referido veículo automóvel ligeiro até à via próxima do posto de iluminação n.º XXXXXX, um peão (A) estava a atravessar a referida via (no sentido do estaleiro do Venetian Hotel Resort para Casas - Museu da Taipa).
Dado que a velocidade do veículo era excessiva, o arguido, apesar de ter visto o peão a atravessar a via, não conseguiu parar atempadamente o veículo.
Em consequência, o veículo automóvel ligeiro conduzido pelo arguido embateu no peão A.
Ao conduzir o veículo, o arguido não controlou adequadamente a velocidade nem manteve a precaução que devia ter, provocou assim o acidente de viação e causou lesões físicas a outrem”.
Na parte da fundamentação jurídica, a sentença é do seguinte teor:
“No caso sub judice, conforme os factos provados, o arguido violou os dispostos legais do Código da Estrada, não controlando adequadamente a velocidade conforme as situações concretas da via durante a condução, provocando directa e necessariamente o acidente de viação, pelo que, o arguido tem responsabilidade pela ocorrência do acidente de viação, e por outra banda, o ofendido não utilizou a passagem para peões ao atravessar a rua nem prestou atenção às condições da via ao fazê-lo, violando o dever de atenção, pelo que, tem culpa na produção do acidente de viação.
Comparadas as condutas praticadas pelos intervenientes do acidente de viação, este Tribunal Colectivo entende que na produção do acidente de viação em causa, C tem 50% de culpa enquanto o ofendido A tem 50% de culpa”.
Vejamos.
A matéria de facto imputa o atropelamento ao condutor do veículo, enquanto que a fundamentação jurídica imputa o atropelamento tanto ao condutor do veículo, como à vítima, com a particularidade de dizer que o peão não utilizou a passadeira para peões nem prestou atenção às condições da via.
Ora, esta última parte respeitante à vítima trata-se de matéria de facto que não foi dada como provada, pelo que tem de ser desconsiderada.
Nem se diga, como faz a seguradora – apenas no recurso para o TUI, e não na contestação ao pedido cível, como se imporia - que é facto notório que junto ao poste de iluminação n.º XXXXXX na Estrada da Baía da Nossa da Esperança não existia qualquer passadeira.
Duvida-se que algum residente em Macau saiba onde fica o poste de iluminação n.º XXXXXX na Estrada da Baía da Nossa da Esperança, quanto mais que junto a tal poste não existia qualquer passadeira.
O mesmo se diga da afirmação da mesma seguradora que é facto notório, por ser do conhecimento geral, que na zona em que ofendido atravessou a via havia um espaço ajardinado que constitui separador de trânsito, com 45 cm de altura, que impedia uma visão dos peões que o atravessavam.
Não são factos notórios. Se a seguradora queria provar os factos devia tê-los alegado na contestação ao pedido cível e provado em julgamento.
Voltemos aos factos, agora na parte respeitante às acções do condutor do veículo.
Deu-se como provado que “Dado que a velocidade do veículo era excessiva, o arguido, apesar de ter visto o peão a atravessar a via, não conseguiu parar atempadamente o veículo.
Em consequência, o veículo automóvel ligeiro conduzido pelo arguido embateu no peão A.
Ao conduzir o veículo, o arguido não controlou adequadamente a velocidade nem manteve a precaução que devia ter, provocou assim o acidente de viação e causou lesões físicas a outrem”.
A velocidade excessiva é um conceito típico de direito.
Os factos deram-se em 13 de Fevereiro de 2007. Vigorava, então, o Código da Estrada.
Dispunha o artigo 22.º do Código da Estrada:
Artigo 22.º
(Velocidade)
“1. O condutor não deve circular com velocidade excessiva, devendo regular a velocidade de modo que, atendendo às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições atmosféricas, à intensidade do tráfego e a quaisquer outras circunstâncias especiais, possa fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente e evitar qualquer obstáculo que lhe surja em condições normalmente previsíveis.
2. Sem prejuízo da fixação, através de sinais adequados, de limites máximos ou mínimos de velocidade nas vias em que as condições de trânsito o aconselhem, os veículos estão sujeitos aos limites máximos genéricos previstos em regulamento.
3. Considera-se excessiva a velocidade sempre que o condutor infrinja o disposto no n.º 1 ou ultrapasse os limites máximos de velocidade referidos no número anterior.
4. …
5. …”.
Para se demonstrar velocidade excessiva ou se provava que o veículo circulava com velocidade superior ao estabelecido genericamente no Regulamento do Código da Estrada ou ao fixado por sinais de trânsito ou se provava, com factos, que o condutor não regulou a velocidade de modo que, atendendo às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições atmosféricas, à intensidade do tráfego e a quaisquer outras circunstâncias especiais, pudesse fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente e evitar qualquer obstáculo que lhe surgisse em condições normalmente previsíveis.
No caso, o que a acusação ou o autor do pedido cível teriam de alegar era a que velocidade seguia o veículo, a que distância é que o peão era visível para o condutor, se o peão atravessou a via a passo, lento ou apressado, ou a correr, se quando o peão atravessou a via, vindo do separador central, havia alguma circunstância a impedir que o peão fosse visto pelos que seguiam no sentido do veículo, etc.
Em vez disto, opta-se por expressões conclusivas que impedem a defesa e o julgamento de direito e, portanto, o recurso em matéria de direito.
Assim, considera-se não escrito o facto que “a velocidade do veículo era excessiva”, nos termos do artigo 549.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente.
Também se deu como provado que “o arguido, apesar de ter visto o peão a atravessar a via, não conseguiu parar atempadamente o veículo”.
Atempadamente é um facto tipicamente conclusivo. O que tinha de se provar eram os factos que conduzissem a tal conclusão. Claro que para isso requer-se investigação e prova. É necessário provar-se factos que mostrem que o condutor foi negligente, ou actuou com imperícia, ou com falta de destreza, ou com falta de cuidado.
Dizer que o condutor não viu o peão é escasso. Seria necessário provar-se que o condutor do veículo podia ter visto o peão. Para tal era fundamental dizer-se a que distância é que o peão era visível para o condutor. É que se o peão aparece a correr, a atravessar a via a 10 metros de distância do veículo, o condutor vê-o, mas não tempo para reagir, ainda que circule a velocidade reduzida. Já se o fizer a 50 metros do condutor, as coisas são diferentes.
Como se sabe, o julgamento de facto em que considerem provadas conclusões de facto segue o regime do julgamento em que se considerem provados conceitos de direito1. Logo, considera-se não escrito o facto que “o arguido … não conseguiu parar atempadamente o veículo”, nos termos do artigo 549.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente.
Por fim, diz-se na sentença:
“Ao conduzir o veículo, o arguido não controlou adequadamente a velocidade nem manteve a precaução que devia ter, provocou assim o acidente de viação”.
Tudo matéria conclusiva. O que é não controlar adequadamente a velocidade? O que é não manter a precaução que devia ter?
O que se devia ter alegado e provado é quais foram as precauções que o condutor do veículo não teve. O dever ter ou ser é matéria jurídica e conclusiva.
Também esta matéria se considera não escrita.
Em suma, não foram provados factos que apontem para a conduta ilícita e culposa do condutor do veículo.
Também não foram provados factos que apontem para a conduta ilícita ou culposa do peão.
Não se provou que o peão não olhou previamente para a via e para os veículos em circulação, antes de atravessar a via. Nem que só atravessou a via quando viu que nenhum veículo circulava a distância próxima.
Por outro lado, não se provou que o peão apareceu repentinamente a atravessar a via.
E também nem sequer se deu como provado que o peão atravessou a via fora de passadeira própria para peões. Mesmo que o facto tivesse sido considerado provado, não se provou que existia passadeira para peões a distância inferior a 50 metros, o que constitui transgressão, nos termos do n.º 5 do artigo 10.º e do n.º 3 do artigo 72.º do Código da Estrada (a seguradora citou o artigo 10.º como se só tivesse os n. os 1 e 2, esquecendo o n.º 5 onde se dispõe: “Os peões só podem atravessar fora das passagens que lhes estão destinadas se não existir nenhuma devidamente sinalizada a uma distância inferior a 50 metros, devendo, nesse caso, fazê-lo pelo trajecto mais curto, perpendicularmente ao eixo da via, o mais rapidamente possível e desde que não perturbem o trânsito de veículos”).
Em conclusão, não é possível imputar a nenhum dos intervenientes, lesante ou lesado, qualquer facto ilícito ou culposo, pelo que está fora de causa a imputação ao condutor do veículo de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito.
3. Responsabilidade objectiva ou pelo risco
Resta apurar se é possível a imputação de responsabilidade objectiva ou pelo risco.
O demandante civil baseou, também, o pedido na responsabilidade objectiva ou pelo risco do proprietário de veículo. De resto, ainda que assim não fosse, é praticamente pacífico que cabe dentro dos poderes oficiosos do tribunal a indagação de tal responsabilidade, desde que a causa de pedir se funde em responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito. Aderimos a tal entendimento, que, no caso, nem se mostra necessário, como se disse.
Está provado documentalmente que o proprietário do veículo era E, que subscreveu o seguro de responsabilidade civil, como lhe competia.
Estatui o artigo 496.º do Código Civil que:
“Artigo 496.º
(Acidentes causados por veículos)
1. Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.
2. As pessoas não imputáveis respondem nos termos do artigo 482.º
3. Aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, excepto quando, estando aquele no exercício das suas funções, o veículo não se encontre em circulação”.
Como é sabido, presume-se que o proprietário do veículo tem a sua direcção efectiva e o utiliza no seu próprio interesse. Como explicam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA2 “Tem correntemente a direcção efectiva do veículo, o proprietário, o usufrutuário, o adquirente com reserva de propriedade, o comodatário, o locatário, o que furtou, o condutor abusivo e, de um modo geral, qualquer possuidor em nome próprio…
[…]
Embora a responsabilidade recaia, assim, normalmente sobre o proprietário, este não é responsável se, pelo acto de aquisição de propriedade, não tomou a direcção efectiva do veículo ou se perdeu, por qualquer circunstância, essa direcção, como no caso de furto ou de entrega ao promitente-comprador, ao locatário ou, em certas circunstâncias, ao comodatário…
[…]
O segundo requisito - utilização no seu próprio interesse – visa afastar a responsabilidade objectiva daqueles que, como o comissário, utilizam o veículo, não no seu próprio interesse, mas em proveito ou às ordens de outrem”.
Responde, pois, pelo risco, nos termos do n.º 1, o proprietário do veículo. O mesmo se diga do condutor do veículo em circulação, que responde pelo risco, nos termos do n.º 3.
Estando a responsabilidade civil transferida para a seguradora, a esta incumbe o pagamento dentro dos limites do seguro.
Face à ausência de culpa do responsável, o limite máximo de responsabilidade tem como máximo o montante correspondente ao valor mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel previsto na lei para a categoria do veículo causador do acidente (n.º 1 do artigo 501.º do Código Civil). Que era de MOP$1.000.000,00.
4. Danos por perda de rendimentos por causa da incapacidade permanente parcial da vítima
Pretende a seguradora a alteração dos valores fixados pelo acórdão recorrido para a perda de rendimentos por causa da incapacidade permanente parcial da vítima e para os danos não patrimoniais da mesma, respectivamente, de MOP$600.000,00 e MOP$500.000,00, em vez de MOP$550.368,00 e MOP$400.000,00, como decidiu o Tribunal de 1.ª instância.
Relativamente à primeira questão provou-se:
Após o período de doença, o ofendido completou 51 anos de idade, podendo ainda o ofendido trabalhar por mais de 14 anos até aos 65 anos de idade, pelo que, o ofendido já perdeu e perderá um rendimento total de MOP$550.368,00, calculado com base na perda de 20% do seu salário base mensal de MOP$16.380,00.
E o Tribunal de 1.ª instância fixou tal quantia em MOP$550.368,00.
Por razões que não é possível perceber, o acórdão recorrido, invocando o princípio da equidade, alterou tal valor para MOP$600.000,00.
Ora, se havia fundamento era para reduzir tal valor e não para o aumentar, já que uma coisa é o valor que alguém vai recebendo parceladamente, ao longo de 14 anos. Outra coisa é receber o mesmo montante total de uma só vez. Como mencionámos no Acórdão de 7 de Novembro de 2012, no Processo n.º 62/2012, “ARMANDO BRAGA3pondera que quando está em causa o recebimento de um capital, de uma só vez, para compensar aquilo que só se deveria receber ao longo do tempo, fraccionadamente, há que deduzir o desconto necessário, pois a não ser assim, os beneficiários da indemnização enriqueceriam sem causa”.
Porém, a seguradora apenas pretende se mantenha o valor fixado em 1.ª instância. E assim será, atento o princípio, em matéria de recursos, da proibição de se obter mais do que aquilo que se pede.
5. Danos não patrimoniais
Quanto aos danos não patrimoniais os factos pertinentes são os seguintes:
O atropelamento causou directa e necessariamente a A hemorragia subaracnoideia à volta do tronco intracerebral, com diplopia no olho esquerdo, fractura da diáfise do fémur esquerdo, fractura do planalto tibial esquerdo, fractura da extremidade distal da tíbia e do perónio do lado esquerdo e fractura da extremidade proximal da tíbia e do perónio do lado.
Na altura, o ofendido não padecia de qualquer doença.
Após o acidente de viação, o ofendido ficou internado no Centro Hospitalar Conde de S. Januário entre 13 de Fevereiro de 2007 e 22 de Junho do mesmo ano, durante o qual, o ofendido foi submetido a intervenção cirúrgica em ambas as pernas em 15 de Fevereiro de 2007.
Na sequência do acidente de viação, o ofendido sofreu fractura de 4 dentes.
Após o período de doença, o ofendido completou 51 anos de idade.
O ofendido sofreu dores e sentiu aflição durante o sofrimento dos ferimentos e os tratamentos médicos.
De acordo com o n.º 3 do artigo 489.º do Código Civil, o montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 487.º, onde se dispõe que, quando a responsabilidade se fundar na mera culpa, pode a indemnização ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem.
Relativamente aos danos não patrimoniais, atentos os valores normalmente fixados por este Tribunal, parece exagerado o montante de MOP$500.000,00, fixado pelo acórdão recorrido, pelo que se altera para o valor de MOP$400.000,00, atribuído em 1.ª instância, que a demandada, ora recorrente, não discute.
6. Limite da condenação em caso de responsabilidade pelo risco.
O montante fixado como indemnização relativamente às questões suscitadas no recurso é de MOP$950.368,00. As outras quantias que a demandada foi condenada a pagar são MOP$41.222,00, MOP$6.400,00, MOP$23.978,25 e 180.180,00, o que tudo soma MOP$1.202.148,25.
Como se disse, face à ausência de culpa do responsável, o limite máximo de responsabilidade tem como máximo o montante correspondente ao valor mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel previsto na lei para a categoria do veículo causador do acidente (n.º 1 do artigo 501.º do Código Civil). Que era de MOP$1.000.000,00 ao tempo dos factos, pelo que de acordo com as regras de aplicação da lei no tempo é este o valor a considerar. Ensinam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA4que “os efeitos de um acidente de viação só podem ser os que lhe atribuía a lei vigente ao tempo em que ocorreu”.
Nada obsta a que os juros moratórios ultrapassem este máximo, já que se trata de mora do devedor.
IV – Decisão
Face ao expendido, acordam em conceder parcial provimento ao recurso, condenando a B a pagar a A a quantia de MOP$1.000.000,00 (um milhão de patacas), acrescida dos juros legais nos termos do nosso Acórdão uniformizador de jurisprudência, de 2 de Março de 2011.
Custas na proporção do vencido. A mesma regra se aplica às custas da acção e do recurso para o TSI.
Macau, 7 de Novembro de 2012.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
1 J. LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO E RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, Coimbra Editora, 2.ª edição, 2008, p. 605 e 606.
2 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, 4.ª edição, Volume I, 1987, p. 513 e 514.
3 ARMANDO BRAGA, A Reparação do Dano Corporal na Responsabilidade Extracontratual, Coimbra, Almedina, 2005, p. 148.
4 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código…, Volume I, p. 61.
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Processo n.º 64/2012