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Processo nº 515/2011 Data: 29.09.2011
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “homicídio”.
Renovação da prova.
Insuficiência da matéria de facto provado para a decisão.
Falta de fundamentação.
Qualificação jurídica.
Pena.


SUMÁRIO

1. O pedido de renovação da prova é objecto de decisão interlocutória, e a sua admissão depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
- que tenha havido documentação das declarações prestadas oralmente perante o Tribunal recorrido;
- que o recurso tenha por fundamento os vícios referidos no nº 2 do artº 400º do C.P.P.M.;
- que o recorrente indique, (a seguir às conclusões), as provas a renovar, com menção relativamente a cada uma, dos factos a esclarecer e das razões justificativas da renovação; e
- que existam razões para crer que a renovação permitirá evitar o reenvio do processo para novo julgamento, ou seja, que com a mesma, se consiga, no Tribunal de recurso, ampliar ou esclarecer os factos, eliminando os vícios imputados à decisão recorrida.

2. O vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão apenas ocorre quando o Tribunal omite pronúncia sobre matéria objecto do processo,

3. Sendo o recurso de rejeitar, pode a decisão de rejeição integrar o acórdão em que se aprecia o pedido de renovação da prova.

4. Em matéria de fundamentação devem-se afastar-se “perspectivas maximalistas”, e que o facto de não se concordar com a fundamentação exposta numa decisão não implica que se considere a mesma inexistente.

5. Atenta a moldura penal prevista para o crime de “homicídio” – 10 a 20 anos de prisão – sendo evidentes as razões de prevenção criminal, constatando-se que tem o arguido uma personalidade violenta, com tendência para a prática de crimes, não olhando a meios para atingir os fins a que se propõe, e visto que a vítima era a sua companheira que muito fez para salvar a relação que mantinham, excessiva não é a pena de 14 anos de prisão àquele imposta por tal crime.


O relator,

______________________
José Maria Dias Azedo


Processo nº 515/2011
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por Acórdão do T.J.B. decidiu-se absolver o arguido A, da prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 crime de “furto”, p. e p. pelo art. 197°, n.° 1 do C.P.M., condenando-se o mesmo arguido, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 crime de “homicídio”, p. e p. pelo art. 128° do C.P.M., na pena de 14 anos de prisão, e, em cúmulo jurídico com a pena que lhe tinha sido imposta no âmbito do Processo n.° CR1-05-0178-PCC, foi o arguido condenado na pena única de 15 anos de prisão; (cfr., fls. 727 a 727-v).

*

Inconformado, o arguido recorreu.
Motivou para, a final, oferecer as conclusões seguintes:

“1- O acordão recorrido padece de total falta de fundamentação, pois não indica os motivos de facto e de direito determinativos da condenação;
2- O acordão recorrido não fez a necessária análise crítica da prova produzida tendo, outrossim, feito uma remissão genérica para os elementos de prova carreados para os processo sem sequer ter tido a preocupação de os cotejar;
3- O acordão recorrido é totalmente omisso quanto aos fundamentos que presidiram à qualificação jurídica operada;
4- A exigência legal da fundamentação não se satisfaz com a mera enumeração dos meios de prova produzidos em audiência de discussão e julgamento sendo preciso muito mais para que se dê como cumprida esta exigência;
5- A mera indicação dos elementos de prova não basta, frustando a própria lei, ao impedir de comprovar se no acordão se seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, não sendo portanto uma decisão ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum na apreciação da prova;
6- O julgador está obrigado a indicar os meios de prova em que fez assentar a sua convicção e a esclarecer as razões pelas quais lhes conferiu relevância, não só para que a decisão se possa impôr aos outros, mas também para permitir o controlo da sua correcção e razoabilidade pelas instâncias de recurso;
7- O acordão recorrido não fez qualquer análise da actuação do recorrente nem a integrou nos elementos constitutivos do crime pelo qual este foi condenado; 8-A omissão total de fundamentação do acordão recorrido implica que o mesmo deva ser considerado NULO. (art o 360° alínea a) e 105° n° 1 ambos do C.P.P.);
9- Para além disso, há insuficiência da matéria de facto provada para consubstanciar a decisão de direito tomada (art° 400 n° 2 alínea a) do C.P.P.);
10- Ou seja, o crime de homicídio, pelo qual o recorrente foi condenado, é um crime apenas punível se se provar que o agente actuou com dolo;
11- Ora, a matéria provada é insuficiente para a decisão a que o douto clectivo chegou pois não se colhe do acordão recorrido se a conduta do recorrente foi motivada por dolo, e se assim o foi, qual o grau de dolo ou se o foi apenas por negligência;
12- E, não obstante tal não constar da matéria de facto provada o recorrente foi punido com uma pena de prisão que supõe a verificação do dolo directo;
13- Não há um único facto provado em que se demonstre que o recorrente com a sua conduta tinha intenção de matar a sua namorada;
14- O que se provou, foi que o recorrente sabia que com a sua conduta poderia causar danos graves à integridade física da vitima ou poderia colocar a sua vida em perigo mas, em lado nenhum, se provou que o recorrente representasse a morte da vitima corno consequência da sua conduta;
15- Tendo em conta a factualidade dada como provada e na ausência absoluta do apuramento concreto e fundamentado do grau e da intensidade do dolo do recorrente e tendo em conta ainda, o principio de “in dubio pro reo” forçoso é concluir que foi incorrecto o tipo legal do crime pelo qual o recorrente foi condenado;
16- A factualidade provada, quando muito, permite apenas a subsunção dos factos ao tipo legal de crime consagrado no art° 138° alínea d) e 139° no. 1 alínea b) ambos do C.P.M., isto é, ao crime de ofensa grave à integridade física originando a morte.
17- Aliás, este também foi o entendimento do Digníssimo Magistrado do Ministério Público aquando da redacção da primeira acusação que foi proferida, nestes autos, contra o recorrente em 19 de Junho de 2009;
18- Nada obsta à alteração da qualificação jurídica do crime porque o recorrente foi condenado (convolando-o no crime p.p. pelo art. 138° alínea d) e 139° n° 1 alínea b) ambos do C.P.) pois, de acordo com o acordão proferido, nestes mesmos autos, pelo Tribunal de Segunda Instância (proc. n° 575/2010) a decisão proferida pelo anterior colectivo absolvendo o recorrente da prática do crime de ofensas graves à integridade física agravadas pelo resultado tratou-se de uma absolvição da instância e não de urna absolvição do pedido;
19- Por outro lado, a medida concreta da pena -14 anos de prisão- peca por severidade em demasia;
20- Na verdade, o acordão recorrido omitiu completamente na averiguação da medida concreta da pena o facto do recorrente se encontrar sob o efeito de bebidas alcoólicas, de estar num estado emocional perturbado, de se tratar da sua namorada com quem vivia em comum e com quem tinha um filho, de o recorrente se ter entregue voluntariamente à policia e de ter confessado os factos em tribunal;
21- Face a essa ausência total de esforço de apuramento no tipo ou grau de dolo subjacente à conduta do recorrente, o acordão recorrido não respeitou o estatuído na alínea b) do n° 2 do artigo 65° do C.P., que assim omitiu por completo, razão pela qual violou esta norma legal;
22- De facto e atento todo o circunstancialismo que envolveu a prática do crime pelo recorrente, e mesmo sendo já feita a requerida convolação do crime cometido pelo recorrente para o crime p. p. pelo artigos 138° alínea d) e 139° n° 1 alínea b)- a medida concreta da pena nunca deveria ultrapassar os 10 anos de prisão efectiva.
23- Por último, o recorrente considera que deverá ser renovada a prova produzida em audiência de discussão e julgamento com vista a permitir ao douto tribunal de recurso aquilatar do dolo do recorrente no cometimento do crime”; (cfr., fls. 736 a 760).

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Respondendo, diz o Exmo. Magistrado do Ministério Público:
“1. A jurisprudência entende que em sede de fundamentação deve evitar-se de perspectivas máximalistas;
2. In casu, houve fundamentação que permite saber a razão da ciência e, principalmente, a questão do dolo;
3. Não há insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provado, uma vez que o douto Tribunal a quo deu-se como provado facto que se pode subsumir no conceito de dolo eventual do Recorrente;
4. Não se pode confundir a intenção de matar com o conceito de pré-meditação;
5. A intenção de matar pode formar-se instantaneamente enquanto a pré-meditação é uma agravante nos termos da al. g) do no. 2 do art. 129° do C.P.M.”; (cfr., fls. 263 e 264-v).

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Admitido o recurso, vieram os autos a este T.S.I..

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Em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:

“O réu A interpôs recurso para o Tribunal de Segunda Instância por inconformar como acórdão condenatório do Tribunal Judicial de Base, fundamentalmente, considerando que o acórdão a quo padece de vícios previstos no art. 400°, n.° 2, als. a) e b) do Código de Processo Penal: a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e a falta de fundamentação da decisão.
Em primeiro lugar, concordamos com o ponto de vista e os fundamentos apresentados pelo Magistrado do Ministério Público na sua resposta à motivação do recurso, considerando que os factos da acusação relacionados com o recorrente são todos provados, sem qualquer omissão, e que os factos assentes são consideravelmente bastantes para proferir uma decisão condenatória por este ter praticado um crime de homicídio, p. e p. pelo art.° 128° do Código Penal.
A par disso, o recorrente podia discordar e duvidar sobre a fundamentação do acórdão, mas, também devia distinguir isto da questão de existir ou não no acórdão a parte de fundamentação.
Analisado o acórdão condenatório, logo sucede à parte do relatório, expõe-se uma fundamentação razoável, da qual estão articulados os factos provados e os não provados, relatando sobre os motivos de facto e de direito que servem de fundamentos da decisão, bem como indicando as provas que foram observadas para a formação da convicção do tribunal.
Pois, o acórdão recorrido não padece notoriamente de vício “falta de fundamentação da decisão” alegado pelo recorrente.
Nestes termos, o recurso interposto pelo recorrente deve ser rejeitado por ser improcedente.
Dado que não se verifica a alteração substancial dos pressupostos da aplicação da prisão preventiva ao recorrente A, promove-se a manutenção da referida medida de coacção”; (cfr., fls. 810 a 812).

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Passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados os factos seguintes:

“I. Num dia incerto do princípio do ano de 2007, o A e a vítima B (identificada em fls. 294v., 295 e 304 dos autos) conheceram-se com a apresentação feita por amigos e, posteriormente, tomaram-se namorados.

II. Pouco depois, o arguido e a vítima arrendaram e coabitaram num quarto, sito na Rua Nova da Areia Preta, Edf. U Wa, bloco X, X andar A. Decorrido cerca de 3 a 4 meses, a vítima ficou grávida e, em consequência, ela e o arguido começaram a discutir sobre o casamento, bem como fizeram preparação para o nascimento do bebé.

III. No período do planeamento do casamento, o arguido, por ser viciado em jogo, perdeu o dinheiro destinado ao pagamento do jantar do casamento e um apartamento que lhe foi oferecido pela sua mãe C(identificada em fls. 56 e 183 dos autos). Enfim, o arguido e a vítima não se casaram, mantendo-se em relação de coabitação. Em 6 de Abril de 2008, a vítima gerou um bebé [D].

IV. Durante o período de coabitação, o arguido pediu emprestado mais de MOP 1 00.000,00 à vítima, sob vários pretextos, tais como, pretendia continuar o planeamento do casamento e tinha de tratar a doença grave da sua mãe. De facto, o arguido apostou no jogo todo o dinheiro pedido emprestado.

V. Dado que o arguido andou sempre a mentir a vítima, os dois entraram frequentemente em discussões e houve duas vezes a pretensão de se separar. A primeira vez aconteceu em pouco depois do início do “namoro”; e a segunda vez teve lugar no princípio do ano de 2009 quando o arguido pediu dinheiro à vítima para apostar no jogo, consequentemente, eles entraram em discussões severas e, enfim, a vítima acabou por voltar a residir em casa da sua mãe. Depois, o arguido tentou várias vezes recuperar a relação com a vítima, mas esta não o ligou. Finalmente, recuperou-se a relação entre o arguido e a vítima e os dois voltaram a viver juntos, uma vez que a mãe do arguido, C, dirigiu-se ao local de trabalho da vítima ("X X" no Four Seasons Hotel do Venetian Resort na Taipa) e, foi ali, andou a chorar e persuadi-la.
VI. Em 6 de Maio de 2009, por volta das 05HOO, o arguido e a vítima, depois de ter ingerido álcool e divertido no “Karaoke X”, sito no Edf. Walorly no NAPE em Macau, foram de Taxi para o quarto arrendado pelos mesmos, sito na Areia Preta, Edf. U Wa, bloco X, X andar A. Contudo, eles saíram do carro no entroncamento entre Edf. Kam Hoi San e Edf. Hoi Pan Garden, na intersecção em que está fixado o semáforo.

VII. Em seguida, o arguido e a vítima andaram a pé para casa, passando por um beco, sito na parte lateral do “Estabelecimento de Comida X” no Edf. Kam Hoi San.

VIII. No caminho, o arguido e a vítima entraram em discussões por coisas insignificantes da vida quotidiana. Na altura, o arguido estava muito irritado e deu com força uma palmada na cabeça da vítima.

IX. A vítima doeu, virou as costas e preparou para abandonar o local em apreço.

X. Para impedir a fuga da vítima, o arguido agarrou com força nas mãos e no ombro da mesma e abraçou-a a passar pela porta secundária do “Jardim de Infância das Cáritas de Macau”, puxando-a à força para encaminhar para frente e, em contrapartida, a vítima tentou fugir. Daí, os dois andaram a puxar um ao outro e, enfim, o arguido conseguiu impedir a fuga da vítima (vide auto de visionamento de fls, 157 a 158, fotografias de fls. 159 a 170 e auto de visionamento de fls, 171 e 172 dos autos).

XI. Em seguida, o arguido empurrou à força a vítima até que ficasse encostada numa parede do local em causa e, depois, o arguido ficou várias vezes ajoelhado. O arguido voltou a puxar à força a vítima para encaminhar para frente (vide auto de visionamento de fls. 171 a 172 e fotografias de fls. 173 a 180 dos autos).
XII. No decurso, o arguido tomou-se subitamente bastante agitado e começou a perder o seu auto-controlo, dando com força um soco na cabeça da vítima e causando-lhe queda e ferimento, além disso, o arguido não parou de pisar e dar pontapés fortes na cabeça, no pescoço, na face e em diversas partes do corpo da vítima, o que durou mais de um minuto (vide auto de visionamento de fls. 91 a 92 e fotografias de fls. 93 a 97 dos autos).

XIII. O arguido causou directamente hemorragia quantiosa na boca, no nariz e em diversas partes da cabeça da vítima, consequentemente, esta entrou rapidamente em coma.

XIV. Depois de a vítima ter desmaiado e caído no chão, o arguido meteu a mão na mala de mão da vítima e retirou dela um telemóvel (de marca SONY ERICSSON, modelo W350i, n.° X) (vide auto de busca e apreensão de fls, 186 e fotografias de fls, 188 dos autos) e MOP1.500,00, e, em seguida, abandonou logo o local em causa.

XV. Posteriormente, o arguido deslocou-se ao apartamento da sua mãe C, sito em Macau, em Fái Chi Kei, Edf. Vai Chui Garden, bloco X, X andar X, em vez de regressar ao apartamento do Edf. U Wa pelo mesmo arrendado. O arguido contou à sua mãe sobre as discussões surgidas com a vítima e, depois, foi descansar no quarto da sua mãe.

XVI. No mesmo dia, por volta das 06H00, passava no local da ocorrência de factos uma residente chamada E (identificada em fls, 52 dos autos) que descobriu que a vítima se encontrava em estado de coma e deitada no chão, havia nas proximidades da sua cabeça uma mancha grande de sangue, bem como no seu nariz e boca estavam a deitar sangue, por isso, ela resolveu por comunicar telefonicamente à Polícia sobre o assunto. Pouco depois, chegaram os guardas da Polícia e a ambulância do Corpo de Bombeiros, pelos quais foi transportada a vítima ao Centro Hospitalar Conde de S. Januário para ser socorrida.

XVII. Por ser infrutífero o tratamento, a vítima morreu em 8 de Maio de 2009, por volta das 11H35. O relatório médico do exame directo e o relatório de autópsia do cadáver, constantes de fls, 12 e 304 a 310 dos autos, descreveram os ferimentos da vítima e, para os devidos efeitos jurídicos, o seu teor se dá aqui por integralmente reproduzido, constituindo como parte integrante da acusação.

XVIII. Segundo o parecer conclusivo do médico legal, a vítima B morreu pela grave lesão no crânio-cerebral, cujos ferimentos fatais são fractura do osso occipital, contusão cerebral e hemorragia subaracnóide, provocados pelo impacto na parte traseira do lado esquerdo da cabeça da vítima. Além do ataque feito à cabeça, a vítima também sofreu de várias contusões na parte superior do tórax e do dorso, bem como no membro superior esquerdo, provocando a fractura das 1ª e 2ª vértebras torácicas, hematoma mediastinal direita e contusão no lobo superior direito, sendo esses os ferimentos resultantes do impacto violento de carácter contundente. Atendendo à equimose em forma de barra regular provocada pela contusão na face e tendo em conta que os ferimentos estão concentrados nas partes frontal e traseira da cabeça, do tórax e do dorso, conclui-se que a vítima foi, por várias vezes, pisada e atacada quando estava deitada (os ferimentos costumam ser encontrados em forma espalhada quando a vítima for ferida em outras partes do corpo ou quando se encontrar em fuga). Há várias “feridas defensivas” no antebraço esquerdo da vítima, daí, revela-se que a vítima estava consciente e tinha consciência de auto-defesa aquando foi atacada. Pelo exposto, a vítima morreu de homicídio (vide a conclusão do médico legal do relatório de autópsia do cadáver de fls. 310 dos autos).

XIX. O arguido agiu livre, consciente e deliberadamente o acto supramencionado.

XX. O arguido começou por bater na cabeça da vítima, empurrou-a no chão e, depois, agrediu-a, ininterrupta e fortemente, em diversas partes do corpo com socos e pontapés.

XXI. O arguido tinha perfeito conhecimento de que os empurrões e puxões, assim como a força e o tempo dedicados à agressão eram suficientes para causarem lesões graves ao corpo da vítima, e, até, podia provocar-lhe perigo para a vida, contudo, o arguido ainda permitiu a ocorrência do risco em apreço.

XXII. O arguido sabia perfeitamente que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Antes de ser preso, o arguido exercia funções de bate-fichas, auferindo a remuneração mensal de cerca de MOP10.000,00 a MOP20.000,00.
O arguido é solteiro; não tem ninguém a seu cargo.
O arguido confessou parcialmente os factos; não é delinquente primário.
Em 1 de Fevereiro de 2007, o arguido foi condenado, no Processo Comum Colectivo n.° CR1-0S-0178-PCC, pela prática de um crime de furto, p. e p. pelo art.° 197°, n.° 1 do Código Penal, na pena de prisão de 7 meses; pela prática de um crime de furto, p. e p. pelo art.° 197°, n.° 1 do Código Penal, na pena de prisão de 7 meses; e, pela prática de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo art.° 199°, n.° 1 do Código Penal, na pena de prisão de 7 meses, e, em cúmulo jurídico com a pena aplicada no processo n.° CR1-04-0140-PCS, foi, enfim, condenado numa pena única de 2 anos de prisão, com suspensão da execução da pena por 3 anos, sob condição de efectuar o pagamento de indemnização dentro de 3 meses. Os factos criminosos daquela causa foram ocorridos em 22 de Março de 2001, 9 de Agosto de 2001 e 23 de Maio de 2004. A referida decisão transitou em julgado em 9 de Outubro de 2009.
Em 2 de Julho de 2009, o arguido foi condenado, no Processo Comum Colectivo n." CR2-07-0209-PCC, pela prática de dois crimes de abuso de confiança, p. e p. pelo art.° 199°, n.° 1 do Código Penal, na pena de prisão de 9 meses para cada crime, e, em cúmulo jurídico das penas aplicadas nos dois crimes, foi condenado na pena de 1 ano de prisão efectiva. Os factos criminosos daquela causa foram ocorridos em 21 de Setembro de 2004 e 23 Janeiro de 2006. A referida decisão transitou em julgado em 5 de Outubro de 2009. O arguido completou o cumprimento da pena em 26 de Novembro de 2010; (cfr., fls. 796 a 804).

Do direito

3. Vem o arguido A recorrer da decisão que o condenou pela prática em autoria material e na forma consumada de 1 crime de “homicídio”, p. e p. pelo art. 128° do C.P.M., na pena de 14 anos de prisão.

Assacando à decisão recorrida o vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, pede a renovação da prova, certo sendo também que àquela imputa igualmente o vício de “falta de fundamentação”, “erro na da qualificação jurídica” e “excesso da pena” fixada pelo crime de “homicídio”.

Cremos porém que nenhuma razão tem o recorrente, apresentando-se-nos o presente recurso manifestamente improcedente, e sendo assim de rejeitar, notando-se também que por assim ser, pode tal decisão integrar o acórdão no qual se aprecia o pedido de renovação da prova; (cfr., v.g. o Acórdão deste T.S.I. de 20.01.2011, Processo n.° 35/2010).

Dito isto, vejamos.

–– Da peticionada “renovação da prova”.

O pedido de renovação da prova é objecto de decisão interlocutória, e a sua admissão depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
- que tenha havido documentação das declarações prestadas oralmente perante o Tribunal recorrido;
- que o recurso tenha por fundamento os vícios referidos no nº 2 do artº 400º do C.P.P.M.;
- que o recorrente indique, (a seguir às conclusões), as provas a renovar, com menção relativamente a cada uma, dos factos a esclarecer e das razões justificativas da renovação; e
- que existam razões para crer que a renovação permitirá evitar o reenvio do processo para novo julgamento, ou seja, que com a mesma, se consiga, no Tribunal de recurso, ampliar ou esclarecer os factos, eliminando os vícios imputados à decisão recorrida; (cfr., v.g., o cit. Acórdão de 20.01.2011).

No caso dos autos, diz o recorrente que o Acórdão recorrido padece do vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”; (cfr., art. 400°, n.° 2, al. a) do C.P.P.M.).

Afirma pois que:

“a matéria provada é insuficiente para a decisão a que o douto clectivo chegou pois não se colhe do acordão recorrido se a conduta do recorrente foi motivada por dolo, e se assim o foi, qual o grau de dolo ou se o foi apenas por negligência”; (cfr. concl. 11ª ).

Cremos haver equívoco.

Como sabido é, o vício em questão apenas ocorre “quando o Tribunal omite pronúncia sobre matéria objecto do processo”; (cfr., v.g., o Acórdão de 14/7/2011, Processo n.° 319/2011).

E, no caso, basta uma mera leitura ao Acórdão recorrido para se constatar que não deixou o Colectivo a quo de emitir pronúncia sobre toda a matéria objecto do processo.

Por sua vez, há que dizer que não corresponde à verdade que no Acórdão recorrido se não explicita “se a conduta do recorrente foi motivada por dolo ou se o foi apenas por negligência”.

Atente-se pois no facto provado e referenciado com o n.° XIX, onde consta que “o arguido agiu livre, consciente e deliberadamente o acto supramencionado”, e leia-se também o facto provado e referenciado com o n.° XXI.

Com efeito, consta aí que:

“O arguido tinha conhecimento de que os empurrões e puxões, assim como a força e o tempo dedicados à agressão eram suficientes para causarem lesões graves ao corpo da vítima, e, até, podia provocar-lhe perigo para a vida, contudo, o arguido ainda permitiu a ocorrência do risco em apreço”.

Haverá assim dúvidas que agiu, no mínimo, com “dolo eventual”, previsto no art. 13°, n.° 3 do C.P.M.?

Evidente nos parecendo a resposta, demonstrado cremos que fica também a não ocorrência do assacado vício de “insuficiência”, e, assim, a improcedência do pedido de renovação da prova.

Continuemos.

Visto que está também que inexiste “insuficiência…”, vejamos agora das restante questões pelo recorrente trazidas à apreciação deste T.S.I..

–– Passemos para o imputado vício de “falta de fundamentação”.

Diz o recorrente que:

“O acordão recorrido padece de total falta de fundamentação, pois não indica os motivos de facto e de direito determinativos da condenação;
O acordão recorrido não fez a necessária análise crítica da prova produzida tendo, outrossim, feito uma remissão genérica para os elementos de prova carreados para os processo sem sequer ter tido a preocupação de os cotejar;
O acordão recorrido é totalmente omisso quanto aos fundamentos que presidiram à qualificação jurídica operada”; (cfr., concl. 1ª a 3ª ).

Pois bem, para além de elencar os “factos provados” e atrás retratados, consignou-se no Acórdão ora recorrido o que segue:

“Factos não provados: os restantes factos da acusação, designadamente:
O arguido, aproveitando o momento em que a vítima foi agredida até ficar inconsciente, tirou o dinheiro e os bens que, no seu conhecimento, pertenciam à vítima, com o objectivo de apropriação.

Convicção do Tribunal:
Tendo analisado sinteticamente as declarações prestadas pelo arguido e os depoimentos prestados pelas testemunhas F, E, G e por um guarda do CPSP na audiência de julgamento, bem como o relato expressivo do médico legal sobre a causa da morte da vítima, o relatório de autópsia do cadáver (fls. 310 e 398 a 405 dos autos), o relatório de exame laboratorial da PJ (fls. 406 a 419 dos autos) e as fotografias (fls. 93 a 97, 106 a 110, 113 a 121, 131 a 156, 159 a 170, 173 a 180 e 209 a 211 dos autos) constantes dos autos, este Tribunal formou a convicção.
***
3. Não foi dado como provado que o arguido, aproveitando o momento em que a vítima foi agredida até ficar inconsciente, tirou o dinheiro e os bens que, no seu conhecimento, pertenciam à vítima, com o objectivo de apropriação, pelo que o acto do arguido não constitui o crime de furto que lhe foi imputado, consequentemente, deve ser absolvido do referido crime.
Segundo os factos provados, o arguido começou por bater na cabeça da vítima, empurrou-a no chão e, depois, agrediu-a, ininterrupta e fortemente, em diversas partes do corpo com socos e pontapés, razão pela qual o arguido cometeu um crime de homicídio.
***
4. Nos termos do art.º 65º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal de Macau de 1995:
“1. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção criminal.
2. Na determinação da medida da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.”
***
5. In casu, o crime praticado pelo arguido tirou a vida da falecida que era irreparável, e, também, causou grandes influências negativas à paz e à tranquilidade social. Quanto à natureza do crime, o arguido deve ser legal e moralmente censurado.
Deste modo, embora o arguido tenha confessado parcialmente os factos, atendendo a que o mesmo não é delinquente primário, assim como a sua atitude é extremamente cruel e grave, este Tribunal Colectivo conclui que é mais adequado condená-lo, pela prática de um crime de homicídio, na pena de prisão de 14 anos”; (cfr., fls. 804 a 806).

Será que com o que se deixou transcrito não se observou o dever de fundamentação, ocorrendo o vício pelo recorrente assacado.

Cremos que a resposta só pode ser de sentido negativo.

Com efeito, atenta a própria redacção do art. 355°, n.° 2 do C.P.P.M. – onde se prescreve que “ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal” – tem este tribunal afirmado que em matéria de fundamentação devem-se afastar-se “perspectivas maximalistas”, e que o facto de não se concordar com a fundamentação exposta numa decisão não implica que se considere a mesma inexistente; (cfr., v.g. Acórdão de 14.04.2011, Processo n.° 1022/2010).

No caso dos autos, e ainda que se admita que a fundamentação não é abundante, censura não merece o Colectivo a quo.

Na verdade, elencou os factos provados, indicou os não provados, e ainda que algo sucintamente, não se deixou de expor de forma clara e perceptível para qualquer homem médio, os motivos que assim levaram a decidir, o mesmo sucedendo com o enquadramento jurídico da factualidade provada, qualificando-se a conduta do recorrente como a prática de 1 crime de “homicídio” e justificando-se a opção pela pena de 14 anos imposta ao recorrente.

É certo que mais se podia dizer, porém, patente é que não está o Acórdão recorrido inquinado com o vício de “falta de fundamentação”.

–– Do “crime de homicídio” e da “pena”.

Aqui chegados pouco há a dizer.

Com efeito, a conduta do ora recorrente integra os elementos típicos do preceituado no art. 128° do C.P.M. que prevê o crime em questão, pois que a agressão pelo mesmo perpetrada na pessoa da vítima constituiu a causa directa da sua morte, tendo aquele, e como se viu, agido, no mínimo, com dolo eventual.

Por fim, sendo o crime em causa punido com a pena de 10 a 20 anos de prisão, afigura-se-nos também justa e adequada a pena de 14 anos pelo Colectivo a quo fixada.

De facto, a conduta do ora recorrente não deixa de demonstrar uma personalidade violenta, com tendência para a prática do crime, com permanente tendência para tentar impor a sua vontade sem olhar a meios.
Não se pode também esquecer que com a conduta pelo recorrente desenvolvida se pôs fim à vida de uma pessoa que muito tinha feito para “aguentar” a relação que mantinham, e que tudo indica, terá sido tal persistência que terá originado o trágico desenlace que deu origem a este processo.

Por sua vez, e para além das evidentes necessidades da prevenção geral, há que considerar os antecedentes criminais do ora recorrente, e, diga-se, o desprezo que dedicou à vítima, alheando-se do seu estado, o que acentua, naturalmente, as necessidades de prevenção especial.

Daí, e sem necessidade de mais alongadas considerações, a manifesta improcedência do presente recurso, o que leva à sua rejeição.

Decisão

4. Nos termos que se deixam expostos, e em conferência, acordam indeferir o pedido de renovação da prova, rejeitando-se o recurso; (cfr., art°s 409°, n° 2, al. a) e 410°, n° 1 do C.P.P.M.).

Pagará o recorrente a taxa de justiça de 8UCs, e, pela rejeição, o equivalente a 6 UCs; (cfr., art. 410°, n° 4 do C.P.P.M.).

Macau, aos 29 de Setembro de 2011

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José Maria Dias Azedo
(Relator)

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Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)

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Tam Hio Wa
(Segundo Juiz-Adjunto)


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