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Processo nº 628/2011 Data: 29.09.2011
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Pedido de escusa.



SUMÁRIO

1. A imparcialidade, como exigência específica de toda e qualquer decisão judicial, define-se, por via de regra, com a ausência de qualquer prejuízo ou preconceito em relação à matéria a decidir ou às pessoas que possam vir a ser afectadas pela decisão.

2. Porém, a verdade é que a imparcialidade do Juiz (e do Tribunal), não se apresenta sob uma noção unitária, reflectindo antes dois modos, diversos mas complementares, de consideração e compreensão da imparcialidade: a imparcialidade subjectiva e a imparcialidade objectiva.
A perspectiva subjectiva, tem a ver com a posição pessoal pelo Juiz assumida, e presume-se até prova em contrário.

Por sua vez, na abordagem objectiva, em que são relevantes as aparências, intervem, por regra, considerações de carácter orgânico e funcional, mas também todas as posições com relevância externa, que de um ponto de vista dos destinatários da decisão possam fazer suscitar dúvidas, provocando o receio quanto ao risco da existência de algum elemento ou preconceito que possa ser considerado em seu desfavor.
3. Apresenta-se assim a imparcialidade objectiva como um conceito construído sobre as “aparências”, e para não se cair numa “tirania das aparências”, impõe-se que os fundamentos ou motivos invocados sejam, em cada caso, apreciados nas suas próprias circunstâncias, ponderando-se sempre que “não basta ser, há que parecer”.

4. O fim do processo de suspeição consiste em determinar, não se o juiz se encontra realmente impedido de se comportar com imparcialidade, mas se existe perigo de a sua intervenção ser encarada com desconfiança e suspeição pela comunidade.


O relator,

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José Maria Dias Azedo

Processo nº 628/2011
(Autos de pedido de escusa)





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:




Relatório

1. A Exmª Juíz Presidente do Colectivo do Tribunal Judicial de Base veio formular pedido de escusa de intervir no julgamento dos Autos de Processo Contravencional Laboral aí registados sob o nº CR1-08-0028-LCT.

No seu pedido, alegou o que segue:

“A signatária recebeu o processo CR1-08-0028-LCT para julgamento.
A signatária é membro do Macau Golf and Country Club (sendo a transgressora o titular da licença do mesmo) desde o ano de 2004.
Tem convivido com os trabalhadores e caddies (cujas funções desempenhavam os autores) ao longo destes anos até actualmente, jogando golf e com o acompanhamento dos caddies.
A signatária tem conhecimento dos salários, comissões, retribuição de cada ronda dos caddies através de conversas tido com os mesmos, ou seja, tem conhecimento de factos constantes na base instrutória dos presentes autos.
Dentro deste circunstancialismo, vem a signatária pedir a V. Exa que lhe seja concedida a escusa, por entender que se verificam os motivos de suspeição que gerem desconfiança sobre a imparcialidade nos termos legais. (art.°s 32° a 34° do CPPM)”; (cfr., fls. 2 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Em sede de vista, emitiu o Exmº Representante do Ministério Público douto Parecer, pronunciando-se no sentido de se conceder a solicitada escusa; (cfr. fls. 25).

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Colhidos os vistos legais dos Mmºs Juízes-Adjuntos, vieram os autos à conferência.

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Sendo este T.S.I. o competente, (art. 34° do C.P.P.M.), e nada obstando, passa-se a decidir.

Fundamentação

2. Sob a epígrafe “Recusas e escusas”, preceitua o artº 32º do C.P.P.M. que:
“1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
2. A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pela parte civil.
3. O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições referidas no n.º 1.
4. Os actos processuais praticados por juiz recusado ou escusado até ao momento em que a recusa ou a escusa forem solicitadas só são anulados quando se verificar que deles resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo; os praticados posteriormente só são válidos se não puderem ser repetidos utilmente e se se verificar que deles não resulta prejuízo para a decisão do processo.”

Atento o assim estatuído, desde logo se vê que não basta um (ainda que grande) “desconforto” ou “inconveniência” para se afastar um Magistrado de determinado processo que em conformidade com as normas legais aplicáveis lhe foi distribuído.

De facto, o princípio do Juiz natural pressupõe, em prol do respeito pelos direitos dos arguidos, que na causa intervirá o Juiz que o deve ser segundo as regras de competência legalmente estebelecidadas para o efeito, implicando que o mesmo só deva ser afastado quando outros princípios ou regras, porventura, de maior ou igual dignidade, o ponham em causa, como sucede, v.g., quando não ofereça garantias de imparcialidade e isenção no exercício da sua função.

Assim postas as coisas, vejamos se o circunstancialismo invocado justifica a peticionada escusa.

A imparcialidade, como exigência específica de toda e qualquer decisão judicial, define-se, por via de regra, com a ausência de qualquer prejuízo ou preconceito em relação à matéria a decidir ou às pessoas que possam vir a ser afectadas pela decisão.

Tem-se entendido que os actos geradores de desconfiança sobre a imparcialidade do Juiz hão-de ser de tal modo suspeitos que a generalidade da opinião pública sinta que o Juiz em causa, está tomado de preconceito relativamente à decisão, ou que, de algum modo, antecipou o seu sentido.

Porém, a verdade é que a imparcialidade do Juiz (e do Tribunal), não se apresenta sob uma noção unitária, reflectindo antes dois modos, diversos mas complementares, de consideração e compreensão da imparcialidade: a imparcialidade subjectiva e a imparcialidade objectiva.
A perspectiva subjectiva, tem a ver com a posição pessoal pelo Juiz assumida, e presume-se até prova em contrário.

Por sua vez, na abordagem objectiva, em que são relevantes as aparências, intervem, por regra, considerações de carácter orgânico e funcional, mas também todas as posições com relevância externa, que de um ponto de vista dos destinatários da decisão possam fazer suscitar dúvidas, provocando o receio quanto ao risco da existência de algum elemento ou preconceito que possa ser considerado em seu desfavor.

Apresenta-se assim a imparcialidade objectiva como um conceito construído sobre as “aparências”, e para não se cair numa “tirania das aparências”, impõe-se que os fundamentos ou motivos invocados sejam, em cada caso, apreciados nas suas próprias circunstâncias, ponderando-se sempre que “não basta ser, há que parecer”.

Como afirma o Prof. Figueiredo Dias: “o fim do processo de suspeição consiste em determinar, não se o juiz se encontra realmente impedido de se comportar com imparcialidade, mas se existe perigo de a sua intervenção ser encarada com desconfiança e suspeição pela comunidade”; (in, “Dtº Proc. Penal”, Vol. I, pág. 319).

Assim, em face do que até aqui se expôs, julga-se que o circunstancialismo invocado pela Exma Juíz requerente justifica a pretendida escusa.

Com efeito, para além de se nos mostrar verificada a vertente subjectiva com base no próprio pedido em apreciação, cremos que a “relação” que existe entre a Exmª Juiz requerente e os intervenientes dos autos atrás identificados, constitui motivo bastante para que, em conformidade com a perspectiva objectiva, e não apenas pelo lado dos destinatários da decisão, mas também do público em geral, possa ser entendida como susceptível de afectar, na aparência, a garantia da boa justiça.

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Decisão

3. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, concede-se a peticionada escusa.

Sem tributação.

Macau, aos 29 de Setembro de 2011
José Maria Dias Azedo
Tam Hio Wa
   Chan Kuong Seng (votei vencido a decisão, porque entendo que antes de tomar decisão sobre o pedido de escusa, o TSI deveria convidar, à luz da parte final do n.º 4 do art.º 34.º do CPP vigente, a Mm.ª Juíza requerente para prestar informações adicionais acerca da eventual relação concreta dela com algum dos Autores dos autos subjacentes, porquanto opino que do dito convívio com os trabalhadores e caddies ao longo dos anos devido ao acompanhamento por estes no jogo do “Golf”, não resulte necessariamente, à Mm.ª Juíza requerente da escusa, qualquer “grande intimidade” ou “inimizade conhecida” com algum dos Autores em questão, geradora da desconfiança sobre a sua imparcialidade no julgamento a fazer da causa laboral dos mesmos Autores, bem como entendo que o conhecimento dos salários, comissões, retribuição de cada ronda dos caddies em geral não represente necessariamente que a Mm.ª Juíza requerente tenha contacto com o objecto concreto do conflito laboral em questão, travado entre os Autores referidos e o “Macau Golf and Country Club”).
Proc. 628/2011 Pág. 10

Proc. 628/2011 Pág. 1