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Processo nº 543/2009
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 29 de Setembro de 2011
Descritores: Pactos de preferência
Direito legal de preferência
Lei aplicável
SUMÁRIO:
I- De acordo com o disposto nos arts. 415º e 410º, nº2 do CC de 1966, os pactos de preferência implicavam a forma escrita e, querendo as partes convencionar eficácia real ao direito de preferência, era necessária a escritura pública, nos termos dos arts. 413º e 421º do mesmo Código.
II- Tendo um contrato de arrendamento para o exercício de actividade comercial sido celebrado sob o império do CC de 1966, a venda do arrendado só conferirá direito de preferência ao arrendatário se o diploma legal vigente ao tempo da alienação o previr.
III- Nem o Regime do Arrendamento Urbano, nem o actual Código Civil consagram qualquer direito de preferência a favor dos arrendatários que exerçam no imóvel comércio ou indústria, na venda ou dação do prédio em pagamento.




Processo n. 543/2009
Recurso Civil e Laboral
Recorrente: A
Recorridos: Companhia B, Lda e C

I- Relatório
A, com os demais sinais dos autos, intentou acção declarativa com processo ordinário contra C e Companhia B, Limitada visando o reconhecimento de um direito de preferência legal e convencional e a consequente outorga da escritura pública de venda de prédio que identifica, além da condenação dos RR a pagarem indemnização pelos danos causados, honorários e despesas judiciais próprios desta acção.
Após a contestação do 1º Réu (fls. 146 e sgs.) e da 2ª Ré (fls. 64 e sgs.), foi a seu tempo proferido despacho saneador-sentença (fls. 171/177), julgando totalmente improcedente a acção.
É deste saneador que o autor interpõe o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações deduziu as seguintes conclusões:
A) A Sentença recorrida viola o disposto nº art. 429º, nº 1 alínea b), pois face à matéria factual alegada pelo recorrente, cuja prova é essencial porque matéria controvertida, não há condições para a boa decisão da Acção.
B) Donde, ao decidir precocemente e sem ter indagado factos essenciais à boa composição do pleito, não atendendo a todas as questões que foram colocadas, nem a toda a matéria de Direito envolvida, estar a Sentença proferida ferida de nulidade, nºs termos do art. 571º, nº 1, alíneas b) e d) do Código de Processo Civil, pois,
C) Sem conceder, ainda que se considerasse que o pacto de preferência celebrado teria eficácia meramente obrigacional, porque o recorrente pagou parte do preço do contrato prometido sempre se concluiria pela existência do direito de retenção previsto nº art. 754º do Código Civil de 1966, porquanto haveria violação pelo 1º recorrido, quer do pacto, quer do contrato de promessa, consabidamente um direito de cariz real.
D) Aos factos aplicam-se as Leis mas apenas aquelas que com esses mesmos factos se achem em contacto - arts. 5º, 7º, 8º e 12º do Código Civil de 1966 e arts. 4º, 6º, 7º, 8º e 11º do Código Civil de 1999.
E) A Lei nº 12/95/M, nº seu art. 3º, prevê a sua própria aplicação aos arrendamentos de pretérito e no seu art. 5º, veio considerar o arrendamento objecto dos autos válido e sem qualquer vício de forma, pois cumpriu necessários requisitos de forma - art. 21º.
F) O art. 1º, que prevê o âmbito de aplicação da Lei nº 12/95/M, estabelece que, onde não haja qualquer oposição, se aplica o regime geral da locação, pelo que, no modesto entendimento do recorrente, os arts. 1117º e 1119º do Código Civil de 1966, que prevêem o direito legal de preferência dos arrendatários que no locado exerçam comércio ou profissão liberal lhe é aplicável porque adquiriu esse direito.
G) Mesmo que se não considerasse a aplicação do Regime Geral do Código Civil de 1966 e, destoutra, se considerasse a aplicação do Decreto nº 43525, porque a Lei nº 12/95/M sanou qualquer vício de forma que o contrato contivesse, sempre se aplicaria o art. 84º daquele Decreto, sendo certo que, também nesta perspectiva, o recorrente adquiriu o direito de preferência legal sobre a aquisição do locado.
*

A sociedade recorrida contra-alegou, defendendo a inexistência do direito de preferência convencional e legal, pugnando, pois, pelo improvimento do recurso.
*
Cumpre decidir.
***
II- Os Factos
Apesar da 1ª instância não a ter descrito expressamente, resulta dos autos a seguinte factualidade:
1- Em 1967, em dia indeterminado, o A. celebrou com o 1º R. contrato de arrendamento dos prédios urbanos sitos na ilha da Taipa, nº XX, no XX, e no nº XX, da Rua do XX, bom como da licença do Estabelecimento de Bebidas que neles funciona denominado “XX”.
2- O 1º R. não tinha qualquer registo oficial da propriedade dos imóveis, que só adquiriu por usucapião em 24 de Setembro de 1998.
3- O contrato foi verbal e o A. sempre pagou as rendas.
4- A fls. 14 dos autos consta um documento, cuja tradução revela o seguinte:
“ Sr. A
Meus sinceros votos de sucesso para o vosso negócio.
Antes, cheguei a telefonar para você. Um telefonema foi atendido pela sua filha e o outro foi atendido por Ah D, a quem foi deixado recado de que a renda respeitante ao mês de Agosto de 1998 e os subsequentes rendas mensais, bem como as taxas de licença seriam depositadas atempadamente na conta contitulada por C, E e F, nº…, junto do Banco XX de Macau, XX, Branch, contudo no adia anterior liguei para o XX e este respondeu-me que o Sr. A ainda não tinha transferido a respectiva quantia para a minha conta. Deste modo, espero que a dita quantia seja paga com maior brevidade. O talão de depósito bancário pode servir como recibo de rendas.
Em Novembro do corrente ano haverá o acréscimo de renda e isto irá funcionar duma forma habitual. O acréscimo de taxa de licença será de $1.000,00 e o da renda será de 20%, correspondem à renda de $2.592,00 e à taxa de licença de $5.600,00, perfazendo a quantia global de$8.191,00. Abaixo estão os meus endereço e número de telefone.
(…)
Com os melhores cumprimentos.
C
Aos 18 de Outubro de 1998”.
5- Por escritura pública de 27 de Julho de 2005, o 1º réu transmitiu a propriedade dos imóveis à 2ª ré.
6- Em 1 de Janeiro de 1991 o autor o 1º réu assinaram um documento que tem o seguinte teor:
“ Encontrei o contrato de arrendamento anterior de XX pela renda mensal de Mop $ 2500,00 com aumento de 20% em cada dois anos. Quanto deverá ser a renda actual? (O pagamento da renda actual de “XX” é de Mop$ 7192,00)
C é o proprietário do prédio (….)e dá voluntariamente de arrendamento o rés-do-chão do prédio a A pela renda mensal de mil duzentas e cinquenta patacas (Mop$ 1250,00) a contar de 1 de Janeiro de 1991. Ambas as partes acordam que a renda mensal terá um aumento de 20% em cada dois anos.
O proprietário C é o titular da licença do Estabelecimento de Bebes “XX” e dá voluntariamente em locação a licença a A a contar de 1 de Janeiro de 1991 até 31 de Dezembro de 1991 pela renda mensal de mil duzentas e cinquenta patacas (Mop$ 1250,oo), dando ao arrendatário auxílio necessário para requerer junto da Direcção dos Serviços de Turismo a renovação da licença” (fls. 162 dos autos).
7- No dia 27 de Julho de 2005 foi celebrada uma escritura de compra e venda, através da qual XX, gerente geral da sociedade “Companhia XX, Limitada”, esta, por seu turno, procuradora de C (autor da acção), e ainda gerente de “Companhia XX, Limitada”, vende a esta sociedade os imóveis ali descritos, entre os quais o aludido em 1. Supra (fls. 53 a 59 dos autos).
8- Em 15/06/2007, a compradora comunicou a A, por carta registada com aviso de recepção, a denúncia do contrato de arrendamento relativo aos prédios acima referidos (fls. 18ª 20 ds autos).

III- O Direito
1- Da nulidade da sentença
Invoca a recorrente a nulidade da sentença, nos termos do art. 571º, nº1, al. b) e d) do CPC, com o argumento de que o tribunal “a quo” não atendeu a todas as questões que haviam sido colocadas, nem a toda a matéria de direito envolvida.
Não tem razão.
O despacho saneador-sentença considerou as vertentes do direito invocado. Na verdade, o M.mo Juiz explicou que a decisão que tomava se alicerçava na circunstância de não ter sido alegada a existência do pacto de preferência reduzido à forma escrita: escritura pública, para a hipótese de se pretender atribuir-lhe eficácia real.
E esta fundamentação não foi posta em crise pela ora recorrente. Com efeito, no recurso até podia ela invocar a existência dessa escritura (que por lapso não tivesse sido invocada na petição). Mas, em vez disso, acabou mesmo por confessar a inexistência desse documento, ainda que para a sua falta tenha apresentado uma justificação, que imputa ao próprio 1º réu: a circunstância de só em 1998 este ter adquirido o prédio por usucapião.
Portanto, por este momento, temos por adquirido este facto inquestionável: se houve pacto, ele não foi reduzido a escrito!
E assim sendo, não tinha o tribunal que fazer quaisquer outras indagações, nem deixar seguir o rumo normal do processo a fim de adquirir ou obter a final, aquilo que no momento em que foi proferido o despacho saneador era já dado assente. Tudo o que viesse a ser obtido em sede de julgamento não iria alterar esse facto concernente à falta de documento escrito em que as partes pudessem ter efectuado a referida convenção. Com efeito, nem a prova do pagamento de Mop$ 30.000,00 teria relevância, se de qualquer maneira sempre o pacto, a provar-se, seria verbal.
Ou seja, o tribunal antecipou o juízo que iria necessariamente efectuar mais tarde, com a certeza de que os dados não podiam alterar-se. E nesse exercício, especificou os fundamentos válidos e bastantes, tanto de facto, como de direito, sem que houvesse necessidade de pronunciar-se sobre quaisquer outras questões.
Eis, pois, a razão para se negar a existência da invocada nulidade.
*
2- Do mérito do recurso
A questão que foi decidida no despacho recorrido apresenta-se-nos numa dupla dimensão, na medida em que versa sobre eventual existência do direito de preferência reclamado pela recorrente, tanto na vertente real, como na obrigacional.
E se nos é permitido ir adiantando a solução, bem nos parece que a decisão impugnada não merecerá quaisquer reparos.
Senão, repare-se na forma como o despacho em crise resolveu a primeira vertente, depois de concluir que o tema em debate deveria ser resolvido à luz do Código Civil de 1966, na sequência, aliás, de acórdão do TUI, de 5/12/2008, Proc. nº 41/2008.
Disse, e nós concordamos, que o direito de preferência por convenção das partes pode gozar de eficácia real se, respeitando a imóveis, ela constar de escritura pública e estiver registado nos termos da lei. Assim o dispunha o art. 421º do C.C. de 1966, de resto, com a devida concatenação com o exercício do direito dele resultante através da acção a que se refere o art. 1410º do mesmo Código.
Ora, acontece que essa escritura nunca foi celebrada, tal como emerge da omissão resultante da respectiva alegação na petição inicial da acção e como decorre das próprias alegações de recurso em confissão irretractável.
É certo que a recorrente diz que o pacto de preferência só exige celebração de escritura pública se as partes pretenderem dar-lhe eficácia real. Isso é verdade, tal como está estatuído no art. 413º do CC.
Mas também é verdade que o pacto, no que respeita à forma, exige o requisito da forma previsto no art. 410º, nº2 do CC. É o que muito claramente assoma do art. 415º do mesmo Código. Assim sendo, porque nenhum documento existe onde conste firmado o pacto, nenhuns efeitos válidos se poderia alguma vez retirar dele.
Andou bem, pois, a decisão em apreço.
*

Resta apurar se pelo facto de haver contrato de arrendamento, daí se segue algum direito legal de preferência.
O contrato verbal data de 1967. E nessa época, o art. 1117º do CC estipulava que, no que concerne aos arrendamentos para comércio ou indústria “ na venda…os arrendatários que nele exerçam o comércio ou industria há mais de um ano têm direito de preferência”.

Antes mesmo desta disposição, o artigo 84º, n.º 1 do Decreto n.º 43525, de 7 de Março de 1961 (ver Boletim Oficial de Macau, em 8 de Abril de 1961) prescrevia que:
“Na venda ou dação do prédio em pagamento, os arrendatários que ali exerçam o comércio ou indústria há mais de um ano têm direito de preferência, graduado no último lugar, sucessivamente e por ordem decrescente das rendas.”
Com o advento da Lei nº 12/95/M, de 14/08 o regime de preferência legal sofreu uma modificação.
Com efeito, esta lei revogou expressamente a Lei do Inquilinato - Decreto n.º 43525, de 7 de Março de 1961 -, determinando que, nos termos do n.º 1 do seu art. 3°, o Regime do Arrendamento Urbano por ela aprovado era aplicável aos arrendamentos urbanos de pretérito acerca dos quais não houvesse acção pendente.

Posteriormente, o Decreto-Lei n.º 39/99/M viria a revogar a Lei n.º 12/95/M (com excepção dos seus artigos 116º a 120º). Ora, o n.º 1 do art. 17º estabelece a aplicação do regime da locação nele estabelecido aos contratos de locação celebrados antes da entrada em vigor do novo Código Civil (o que se verificou em 1.11.1999)
Isto vem revelar-nos que nem o Regime do Arrendamento Urbano, nem o actual Código Civil consagram qualquer direito de preferência a favor dos arrendatários que exerçam no imóvel comércio ou indústria, na venda ou dação do prédio em pagamento.
Para terminar o raciocínio, falta retomar uma vez mais a questão da aplicação da lei no tempo. E pergunta-se se será de aplicar ao caso a lei velha ou a lei nova.
A questão foi já estudada neste mesmo TSI e, com a devida vénia, sirvamo-nos do que foi escrito no Ac. de 26/11/2009, Proc. nº 544/2009:
“Desde logo o n.º 1 e 2 do art. 3º da Lei n.º 12/95/M enquanto norma do Direito transitório aplicável à locação dispunha:
“1. A presente lei é aplicável aos arrendamentos urbanos de pretérito acerca dos quais não haja acção pendente.
2. O disposto no número anterior não afecta a validade dos contratos celebrados antes da vigência desta lei e constantes de titulo suficiente segundo a lei em vigor à data da celebração.”
Depois, mais tarde, o artigo 17º do DL 39/99, de 3 de Agosto, também norma do Direito transitório, aplicável à locação, estabelece:
“1. Aos contratos de locação celebrados antes da entrada em vigor do novo Código Civil é aplicável o regime da locação nele estabelecido, com os desvios e adaptações previstos nos números seguintes.
2. O disposto no número anterior não prejudica a validade dos contratos, nem das suas cláusulas, desde que constem de título considerado suficiente à data da sua celebração ou tenham sido convalidados por disposição legal posterior.
3. Relativamente aos contratos de arrendamento de pretérito não sujeitos ao regime de duração limitada observar-se-ão as seguintes regras:
a) O senhorio continua impedido de os denunciar para o seu termo ou para o termo das renovações pelo prazo de 7 anos após a entrada em vigor do novo Código, sem prejuízo da aplicação, com as necessárias adaptações, do disposto nas alíneas b) a e) do artigo 78.º e nos artigos 79.º a 90.º do Regime do Arrendamento Urbano aprovado pela Lei n.º 12/95/M, de 14 de Agosto, adiante designado pela sigla «RAU»;
b) O senhorio pode, para além dos casos referidos no artigo 1034.º do novo Código, resolver o contrato, nos limites do disposto no n.º 2 do artigo 67.º do RAU, se o arrendatário conservar o prédio desocupado por mais de um ano, consecutivamente, ou, sendo o prédio destinado a habitação, não tiver nele residência permanente, habite ou não outra casa, própria ou alheia, conforme se prevê na alínea i) do n.º 1 do artigo 67.º do RAU;
c) As rendas ficam sujeitas a ser actualizáveis, para além dos demais casos previstos no novo Código, anualmente em função dos coeficientes aprovados pelo Governador por meio de portaria, caso em que é aplicável o processo constante dos artigos 43.º a 45.º do RAU.
4. Aos contratos de duração limitada para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal, celebrados anteriormente à entrada em vigor do novo Código e que as partes tenham submetido a um prazo de duração efectiva, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 115.º do RAU, não é aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 1038.º do presente Código.
5. O disposto no artigo 1044.º do novo Código sobre revogação unilateral dos arrendamentos urbanos para fins habitacionais não é aplicável aos contratos de pretérito senão após a renovação desses contratos na vigência do novo Código.
Atente-se no facto (daí a transcrição) de não se fazer qualquer ressalva em relação aos direitos de preferência legais anteriores.
O art. 11º do C. Civil dispõe:
“1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular. 2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.”
A interpretação do presente preceito tem feito correr rios de tinta, mas sempre temos recorrido àquela que decorre, cristalina, das palavras de Inocêncio Galvão Telles:
“O enunciado do artigo 12º( leia-se, entre nós, art. 11º) não é por si suficiente. Quando se deverá dizer que a lei dispõe directamente sobre o conteúdo das relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhe deram origem? Como discriminar as hipóteses em que os efeitos pendentes ou futuros são vistos em ligação com os factos, sua causa, e aquelas outras em que são olhados em si, no seu próprio conteúdo?
O artigo 12º não fornece a resposta, não apresenta um critério orientador. Esse critério tem de ser determinado doutrinariamente. Penso que o critério exacto é dado pela distinção atrás formulada entre situações jurídicas instantâneas e situações jurídicas duradouras. São as segundas que se traduzem num exercício continuado ou periódico, as visadas afinal na 2º parte do nº 2 do artigo 12º. Pela sua permanência maior ou menor, elas escapam, quanto ao futuro, à lei antiga, entrando na órbita da lei nova. É a lei nova que define a partir da sua vigência o conteúdo dos poderes do proprietário ou do tutor ou do cabeça de casal, etc.“
Para dizer que “as situações instantâneas tendem a desaparecer e as duradouras a perdurar, resolvendo-se aquelas em actos periódicos ou permanentes. A execução de umas é momentânea, a das outras é sucessiva ou continuada. Representam por ex. situações instantâneas o direito à restituição do capital mutuado ou o direito à anulação de um acto jurídico; situações duradouras, a posição de funcionário público, a de senhorio ou inquilino, proprietário, a de cônjuge. A lei antiga rege os factos e os efeitos pretéritos, os já executados. Quanto aos outros efeitos, ainda não executados ou nem sequer nascidos, há que ver se integram situações instantâneas ou duradouras. Se integram situações instantâneas, também se lhes aplica a lei antiga [v. g. as obrigações ligadas ao cumprimento do contrato deferido no tempo]. Se integram situações duradouras, respeita-se o seu passado sob a égide da lei antiga, mas para o futuro ficam sob o domínio da lei nova, que pode v.g. mudar os poderes do proprietário ou do cônjuge.”
Radicando o direito de preferência numa relação arrendatícia, não se pode deixar de ter essa situação como duradoura, cujo conteúdo encerra uma série de poderes, acções, abstenções, destinadas a permanecer no tempo e que serão reguladas pelo princípio do tempus regit factum,
Embora seja princípio aceite, na doutrina e na jurisprudência, que o reconhecimento judicial do direito de preferência retroage os seus efeitos ao momento da alienação, sendo o adquirente substituído pelo preferente com eficácia ex tunc, já a qualidade de titular do direito de preferência deve ser aferida em relação à data em que o mesmo é exercido, por ser esta a solução que resulta da segunda parte do n.º 2 do art. 11º do CC (“mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor”).
Perante este enquadramento e por tudo quanto acima se expôs parece claro que o direito de preferência concretiza um poder decorrente de uma situação duradoura (o seu esgotamento num dado momento não substantiva o conceito de situação instantânea no enquadramento supra), devendo considerar-se essa faculdade como desligada dos factos que lhes deram origem (os constitutivos da situação arrendatícia, relevando tão somente a existência dessa situação).
Este entendimento, de que o pressuposto legal de existência ou supressão do direito de preferência implica aplicação da lei nova às situações jurídicas anteriores, se o acto sobre que se pretende exercer a prioridade foi praticado no domínio desta, parece evidenciar-se em termos de Jurisprudência comparada.
Pode colher-se ali a ideia de que é aplicável ao direito de preferência, na venda, o regime da lei vigente na data da alienação e não o estabelecido em diploma posterior, embora nesta exista uma disposição que manda aplicar o regime nela prescrito aos contratos existentes à data da sua entrada em vigor.
Era o caso de situação similar, embora inversa, não decisiva, até porque o direito não estava anteriormente consagrado, em que a lei nova passou a prever o direito de preferência, até aí não previsto, e o beneficiário da prelação pretendeu prevaler-se dessa opção em relação a um acto dispositivo praticado no domínio da lei velha. Serve, no entanto, a referência sobre o âmbito da sucessão de leis em matéria de preferência.
Ainda, noutra situação, se decidiu que o direito de preferência genericamente reconhecido por uma dada lei, - tratava-se da preferência dada ao senhorio, no caso de trespasse de estabelecimento comercial ou industrial - , só se radica na sua esfera jurídica quando aquela situação ocorrer – mais se tendo decidido que a lei posterior, o Código Civil, embora não proibisse a existência e o exercício do aludido direito de preferência, mas ao não se lhe referir, excluiu-o do estatuto legal do arrendamento para comércio e indústria, embora o reconhecesse quando resultante do facto de preferência.
Este entendimento que vimos delineando vai ao encontro do ensinamento do Prof. Baptista Machado, segundo o qual em matéria contratual a aplicação ou não aplicação imediata das disposições da lei nova ao conteúdo e efeitos dos contratos anteriores depende fundamentalmente duma qualificação dessas disposições se referir a um estatuto legal ou contratual. Depende fundamentalmente do ângulo de incidência dessas disposições sobre as situações jurídicas visadas nas suas hipóteses legais, isto é, depende da resposta à questão de saber se elas abstraem ou não dos factos constitutivos das mesmas situações jurídicas, podendo referir-se a contratos e, todavia, não terem a natureza própria de regras próprias de um estatuto contratual. Se a lei nova abstrair dos factos constitutivos da situação jurídica contratual, quando dirigida à tutela dos interesses duma generalidade de pessoas que se achem ou possam vir a achar ligadas por uma certa relação jurídica, não se deixará de aplicar às situações anteriormente constituídas.
O estatuto do contrato é determinado em face da lei vigente ao tempo da conclusão do contrato, mas quando as cláusulas de um contrato ou a sua regulação ao abrigo da lei antiga brigue com as disposições prevalecentes da lei nova, enquanto ordenadoras do estatuto legal das pessoas e dos bens ou a princípios estruturadores da ordem social ou económica, as disposições da lei nova prevalecem sobre as da lei antiga.
Ora, parece, ainda aqui, não haver dúvidas, que a instituição ou afastamento de tal instituto, concretiza um instrumento de intervenção e regulação da economia que se há-de sobrepor a um qualquer estatuto contratual inter partes”.

Esta é a posição que recentemente viria a ser reiterada no Ac. do TSI de 14/04/2011, Proc. nº 602/2008 e que, novamente, aqui sufragamos.
Tudo, para concluir, em suma, que a recorrente não tem o invocado direito legal de preferência, devendo, pois, confirmar-se o julgado da 1ª instância.
***
IV- Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando o saneador-sentença recorrido.
Custas pelo recorrente.
TSI, 29 / 09 / 2011


_________________________
José Cândido de Pinho
(Relator)

_________________________
Lai Kin Hong
(Primeiro Juiz-Adjunto)

_________________________
Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)