Processo nº: 401/2009
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 22 de Setembro de 2011
Descritores: Habilitações académicas
Verificação
SUMÁRIO:
I- Se a lei diz que podem exercer a profissão de farmacêutico os indivíduos que possuam licenciatura em farmácia obtida em universidades portuguesas ou habilitações de nível superior em farmácia reconhecidas nos termos da lei, haverá que indagar aos requisitos na norma estabelecidos para o efeito.
II- A verificação de habilitações académicas de nível superior para o exercício de actividade condicionada, como é o caso da actividade de farmácia, compete à Direcção de Serviços de Saúde, nos termos do art. 3º, nº1, do Regulamento Administrativo nº 26/2003, de 25/08/2003.
III- A verificação consiste na confirmação de que as habilitações são as adequadas ao exercício de determinada actividade profissional e na aferição da idoneidade e autenticidade dos documentos comprovativos das habilitações académicas invocadas (art. 1º citado Regulamento Administrativo).
IV- Essa confirmação implica, portanto, uma análise concreta e casuística, isto é, caso a caso, pessoa a pessoa e habilitação a habilitação, o que necessariamente envolve apreciações de natureza discricionária técnica, que não se compadecem com critérios objectivos administrativamente pré-fixados, cuja verificação obrigariam automaticamente ao reconhecimento e confirmação das referidas habilitações.
Processo nº 401/2009
Acordam no Tribunal de Segunda Instância
I- Relatório
A interpôs recurso contencioso do despacho do Senhor Director dos Serviços de Saúde de 28/05/2008, que indeferiu pedido de inscrição na Direcção dos Serviços de Saúde como farmacêutica.
*
Por sentença de 9/02/2009, o M.mo Juiz do Tribunal Administrativo julgou procedente o recurso e anulou o acto sindicado.
*
É dessa sentença que ora vem interposto pelo Ex.mo Director dos Serviços de Saúde o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações foram apresentadas as seguintes conclusões:
I. A Sentença do Tribunal Administrativo proferida em 9 de Fevereiro de 2009, decidindo anular o acto de indeferimento com fundamento na sua ilegalidade, incorre em erro de interpretação da lei.
Sobre os critérios para o reconhecimento de habilitações
II. É da competência dos Serviços de Saúde avaliar e reconhecer - ou não reconhecer - as habilitações académicas cuja titularidade - o recorrente invoca, o que implica, necessariamente, a formulação e aplicação de juízos de valor que, por sua vez, supõem a existência de critérios.
III. A lei não estabelece critérios para aferir se as “habilitações invocadas são as adequadas para o exercício de determinada actividade profissional” (art.º 1.º Regulamento Administrativo n.º 26/2003).
IV. Tais critérios, porém, são essenciais para garantir, quer a observância de princípios gerais de direito administrativo, designadamente os da igualdade, justiça e imparcialidade, quer a concretização da missão e atribuições legalmente cometidas aos Serviços de Saúde (artigos 1.º e 3.º do Decreto-Lei n.º 81/99/M, de 15 de Novembro, nomeadamente) e das competências assinaladas aos seus órgãos e subunidades orgânicas, nos domínios da qualidade da prestação de serviços à população da RAEM, da segurança e eficácia na dispensa e uso dos medicamentos e, por tais vias, da defesa e promoção da saúde pública.
V. Os Serviços de Saúde têm, por isso, não apenas o poder, mas também o dever de fixar tais critérios.
VI. Foi ao abrigo da discricionaridade administrativa e com os objectivos que dele constam, com clareza, que foi exarado e publicado em Boletim Oficial (n.º 28, II série, de 12 de Julho) o despacho do director dos Serviços de Saúde n.º 6/SS/2007, de 2 de Julho sobre “critérios de apreciação de licenciatura em Farmácia e habilitações profissionais de farmacêuticos”.
VII. Pretendeu-se e pretende-se, com este despacho, assegurar e promover “um reconhecimento meticuloso”, sério e exigente de habilitações, designadamente académicas, de acordo com o entendimento que os Serviços de Saúde - entidade pública que, na RAEM, tem essa responsabilidade - fazem dos problemas e necessidades existentes e da forma de os prevenir, fazer face e resolver, em defesa da saúde pública e no interesse da população. Garantir, em suma, que a profissão de farmacêutico é exercida, na RAEM, por quem dispõe de competências que são, em nosso juízo, indispensáveis à garantia da qualidade do serviço prestado e à prossecução do interesse público.
VIII. Sabido - como o despacho também salienta - que são muito diversos, de país para país, de região para região, os critérios, conteúdos, objectivos e necessidades que conduzem à estruturação dos cursos de farmácia e à obtenção ou reconhecimento do respectivo título académico.
IX. Mais uma razão, aliás, para o estabelecimento de critérios claros, sob pena de, na RAEM, os Serviços de Saúde serem forçados aceitar e reconhecer qualquer diploma, de qualquer proveniência, desde que, na origem, se entenda que titulam uma licenciatura em Farmácia e habilitam para o exercício da profissão de farmacêutico.
X. O despacho estabeleceu, com fundamentos e objectivos bem expressos, critérios gerais, aplicáveis a todos os que se encontrem em circunstâncias idênticas, e dados a conhecer a todos os potenciais interessados através da sua publicação em Boletim Oficial.
XI. Tais critérios decorrem de uma responsabilidade legalmente cometida aos Serviços de Saúde e reflectem, necessariamente, o seu entendimento sobre a matéria a que se referem.
XII. O despacho constitui um todo, coerente e articulado, no âmbito do reconhecimento deste tipo de habilitações pelos Serviços de Saúde e condensa as opções que os Serviços de Saúde acharam por bem tomar, no exercício dos seus poderes e no cumprimento das suas obrigações.
XIII. Devendo sublinhar-se, porém, que o disposto no n.º 4, sendo parte daquelas opções, significa que os Serviços de Saúde entenderam e entendem que as pessoas que não se encontram, ou não venham a encontrar-se, nas condições nele previstas quaisquer que sejam e onde quer que tenham obtido, ou venham a obter, tais habilitações - não preenchem as condições julgadas necessárias para um desempenho profissional qualificado na RAEM.
XIV. Em conclusão, o despacho do director dos Serviços de Saúde n.º 6/SS/2007, de 2 de Julho (publicado no B.O. n.º 28, II série, de 11 de Julho), sobre “Critérios de Apreciação de Licenciatura em Farmácia e Habilitações Profissionais de Farmacêutico”, proferido ao abrigo de poderes discricionários, é inteiramente legal.
Sobre as habilitações de nível superior, em farmácia, da requerente
XV. A Decisão do Tribunal a quo incorre, igualmente, em erro de aplicação de lei.
XVI. A requerente é titular de um bacharelato em Técnicas de Diagnóstico e Terapêutica, ramo de farmácia (Cfr. Portaria n.º 235/98/M, de 16 de Novembro) e de uma licenciatura de dois anos, em Farmácia.
XVII. Das duas habilitações apenas esta última, porque especificamente de Farmácia, deve, nos termos da lei, ser considerada, porquanto e de acordo com a alínea a) do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 58/90/M, a habilitação a verificar ou reconhecer é a de nível superior em Farmácia, e não ser consideradas em conjunto, ambas as habilitações, como pretende a Decisão ora recorrida.
XVIII. Caso os Serviços e Saúde considerassem, para efeitos de verificação de habilitações, em conjunto a licenciatura em Farmácia obtida na Universidade de Chong San e o bacharelato em Técnicas de Diagnóstico e Terapêuticas, ramo de farmácia, conferido pelo Instituto Politécnico de Macau, os Serviços de Saúde, estariam, aí sim, a violar clara e frontalmente o disposto na alínea a) do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 58/90/M.
XIX. Assim, a Decisão recorrida padece de erro de aplicação da lei, que se invoca, em virtude da requerente não ser titular de habilitação superior em farmácia
*
Não houve contra-alegações.
*
O digno Magistrado do MP opinou no sentido do provimento do recurso em termos que aqui se dão por reproduzidos.
*
Cumpre decidir.
***
II- Os Factos
A sentença recorrida deu por provada a seguinte factualidade:
O recorrente obteve em 25 de Novembro de 2003 o certificado de graduação do curso de bacharelato em Técnicos de Diagnóstico e Terapêutica do Instituto Politécnico de Macau (especializa-se em farmácia).
Em 28 de Dezembro de 2007, o recorrente obteve a licenciatura em farmácia (para os estudantes do ensino superior) da Universidade Zhong Shan da Província Guang Dong.
Em 1 de Abril de 2008, o recorrente requereu aos Serviços de Saúde a matrícula da profissão farmacêutica, entregando para o efeito os respectivos documentos comprovativos.
Em 2 de Abril, funcionários dos Serviços de Saúde elaboraram o relatório / parecer de n.º 01841/099/DIL/DAF/08 (fls. 2 e 7-12 dos autos do processo administrativo), cujo conteúdo aqui se dá por inteiramente reproduzido;
Em 19 de Maio, a Comissão Técnica de Licenciamento de Profissões Farmacêuticas emitiu opinião no referido relatório/parecer (fls. 3 dos autos do processo administrativo), cujo conteúdo aqui se_dá por inteiramente reproduzido, considerando por unanimidade que o recorrente não reunia o requisito previsto no n.º 4 do Despacho n.º 6/SS/2007, não satisfazendo as condições exigidas na alínea a) do artigo 5.º do DL n.º 58/90/M;
Em 28 de Maio, o Director dos Serviços de Saúde proferiu despacho no referido relatório/parecer, dizendo o seguinte: “concordo com a opinião CTLPF 19.5.2008”, indeferindo assim o pedido de matricula da profissão farmacêutica apresentado pelo recorrente.
A referida decisão já foi levada ao conhecimento do recorrente mediante o ofício n.º 02729/DIL/DAF/2008 emitido pelos Serviços de Saúde em 2 de Junho.
Em 7 de Julho, o recorrente interpôs o presente recurso contencioso junto deste tribunal.
***
III- O Direito
A recorrida pretendeu a inscrição como farmacêutica, pretensão que foi indeferida com o argumento de que não reunia certo número de exigências ou condições. Em vista dessa decisão, atacou o despacho em apreço do ora recorrente, datado de 28/05/2008.
Fê-lo suportado num argumento essencial: pugnando que o Director dos Serviços de Saúde, entidade ora recorrente, não tinha competência para, através do Despacho nº 6/SS/2007 do de 2/07/2007, publicado no BORAEM, II, de 11/07/2007, regulamentar o art. 5º do DL nº 58/90/M, de 19/09. E assim, por o acto impugnado se ter baseado nesse Despacho, estaria aquele ferido de ilegalidade, porque violador dos arts. 8º, nº2, al. b), do DL 81/99/M, art. 17º da Lei de Reunificação e o princípio plasmado na parte final do art. 2º da Lei Básica.
Ao mesmo tempo, considerou que reunia as condições previstas no art. 5º do DL 58/90/M citado.
Estudando o assunto, a sentença sob censura equacionou as questões a que haveria de dar resposta:
a) Saber se tal Despacho 6/SS/2007 do Director de Serviços de Saúde é um regulamento;
b) Saber se esse Despacho violou o disposto na alínea a), do art. 5º do DL nº 58/90/M.
Concluiu, então, que:
- O Despacho 6/SS/2007 não tem natureza regulamentar, até mesmo por não ter eficácia externa e antes se dirigir à Comissão Técnica de Licenciamento de Profissões Farmacêuticas, que posteriormente e com base nele haveria de fazer a apreciação objectiva de todos os requerentes.
- O Despacho 6/SS/2007 violou a alínea a), do art. 5º do DL nº 58/90/M na medida em que impede as pessoas com habilitações de nível superior em farmácia de obter a qualidade de farmacêutico. E com base nesta conclusão, anulou o acto impugnado.
No recurso jurisdicional em que ora nos encontramos, a digna entidade recorrente elege igualmente dois pontos como eixo da discórdia. A saber:
1º Se o Despacho 6/SS/2007, ao fixar critérios para o reconhecimento ou verificação de habilitações de nível superior em farmácia, incorre na violação da alínea a), do art. 5º do DL nº 58/90/M;
2º Se as habilitações da recorrente do acto de indeferimento podem ser reconhecidas ou verificadas como habilitações de nível superior em farmácia, para efeitos da alínea a) do art. 5º do DL nº 58/90/M, de 19 de Setembro.
Os trechos em itálico acima destacados servem para se atentar no paralelismo de situações entre aquilo que a sentença estudou e decidiu e aquilo que o ora recorrente agora esgrime. É que, parecendo haver entre eles semelhança total, na verdade há uma diferença assinalável. É que se o primeiro ponto é em ambos de praticamente igual objectivo e teor, o segundo só aparentemente coincide: a sentença tratou-o do ponto de vista do Despacho 6/SS/2007, para saber se ele violou o art. 5º, al. a), do DL nº 58/90/M, mas a recorrente pretende discutir apenas se a decisão recorrida (a.a.) ofendeu ou não aquele dispositivo legal.
Ora, nós cremos que a discussão neste recurso deve ser feita, precisamente, tal como a entidade ora recorrente a colocou no segundo ponto. Porquê? Porque a interessada não convoca somente a ilegalidade do acto impugnado com base no Despacho 6/SS/2007, mas antes considera também que a sua situação de facto era no sentido de preencher as condições exigidas naquele preceito. Deste modo, segundo cremos, a recorrente contenciosa também atacou o acto administrativo praticado num quadro geral de invalidade, isto é, criticou-o por estar ferido de ilegalidade intrínseca e não somente por ter feito aplicação concreta do Despacho 6/SS/2007.
Esta conclusão introdutória deixa-nos mais tranquilos porque nos permite fazer a avaliação total da bondade legal do acto impugnado em ambas as frentes.
Comecemos pelo regime jurídico emergente do DL nº 58/90/M no que concerne à actividade farmacêutica.
O art. 5º, al. a) deste diploma, reza assim:
“Podem exercer a profissão de farmacêutico os indivíduos que reúnam cumulativamente as seguintes condições:
a) Possuam licenciatura em farmácia obtida em universidades portuguesas ou habilitações de nível superior, em farmácia, reconhecidas nos termos da lei”.
Decorre daqui que a primeira condição substantiva admite duas vias, em jeito de alternativa:
Primeira: A licenciatura em farmácia obtida em universidades portuguesas; ou,
Segunda: Habilitação de nível superior em farmácia reconhecidas nos termos da lei.
Não estando em causa a primeira, parece claro que, numa interpretação literal, a segunda nos dá conta de, mesmo sem possuir licenciatura em farmácia obtida em Portugal, ainda poder ser farmacêutico quem possuir habilitação superior em farmácia, seja uma licenciatura obtida fora de universidades portuguesas, seja uma outra forma de obtenção de aptidões e competências com origem territorial onde quer que seja. Isto é, habilitações de nível superior é expressão que visa englobar quaisquer modelos de aquisição de conhecimentos, incluindo licenciaturas obtidas fora de Portugal.
Questão que anda associada a esta é a da prova das habilitações. É agora assunto tratado no art. 7º do mesmo diploma.
Essa prova faz-ze “Quando obtidas em estabelecimentos de ensino de Macau ou de Portugal, através de documento emitido pelo respectivo estabelecimento “(al.a)).
“Nos restantes casos, mediante o certificado de reconhecimento emitido peoa Direcção dos Serviços de Educação ou pela Direcção dos Serviços de Saúde, consoante se trate de habilitações académicas ou profissionais, respectivamente” (al.b)).
Ora, tratando-se in casu de apurar habilitações académicas, em princípio deveria ser a prova feita através de certificado de reconhecimento emitido pela DSE. Todavia, com o Regulamento Administrativo nº 26/2003, de 14 de Agosto de 2003, as coisas mudaram. E assim é que, de acordo com o art. 3º, nº1 deste Regulamento, “A verificação de habilitações académicas nos níveis de ensino primário, secundário e superior, para efeitos de exercício de actividade profissional condicionada por intervenção de entidade pública, é da competência dessa entidade”. Portanto, a verificação das habilitações da recorrente contenciosa seria feita pela Direcção dos Serviços de Saúde, por deter competência para o efeito.
E como fazer essa verificação?
Responde o art. 1º do Regulamento: “ A verificação de habilitações académicas consiste na confirmação de que as habilitações invocadas são as adequadas ao exercício de determinada função pública ou actividade profissional condicionada por intervenção de entidade pública ou para o prosseguimento de estudos e na aferição da idoneidade e autenticidade dos documentos comprovativos das habilitações académicas invocadas”.
Isto é, a verificação tem dois objectivos:
1º- Confirmar que as habilitações invocadas são as adequadas ao exercício de determinada função pública ou actividade profissional;
2º- Aferir da idoneidade e autenticidade dos documentos comprovativos das habilitações invocadas.
Dada a forma literal como o art. 1º está redigido, tudo leva a crer que a intenção do autor do Regulamento foi de cometer à entidade pública competente a análise concreta e casuística daqueles objectivos. E dizemos “casuística”, na medida em que a adequação das habilitações invocadas ao exercício de determinada função ou actividade (1º objectivo) pode não coincidir com a adequação das habilitações ao exercício de outra actividade ou função. Como se vê, todos os factores são variáveis nesta equação: as habilitações (que podem variar de grau e de substância), e as exigências de cada uma das funções ou actividades para que tende a verificação das habilitações. Para concluir, pois, que as mesmas habilitações podem não servir adequadamente para o exercício de diferentes funções.
Mas, o segundo objectivo da verificação também nos aponta para a casuística de que falávamos. Na verdade, importa sempre que a verificação das habilitações conclua pela aferição da idoneidade e autenticidade dos documentos juntos. Ora, isso não pode ser feito em abstracto, através de fórmulas mais ou menos universais, e antes deve ser feito caso a caso, consoante as especificidades de cada um.
O Despacho 6/SS/2007
Que eficácia e natureza terá este despacho?
A sentença disse, e disse bem, que a sua eficácia era interna. Ao ter por destinatária a Comissão Técnica de Licenciamento de Profissões Farmacêuticas (cfr. arts. 26º e 39º do DL nº 81/99/M, de 15/11, sobre a competência das Comissões Técnicas no âmbito da Direcção dos Serviços de Saúde; sobre composição, ver Despacho nº 19/SS/2006, in B.O. nº 48, ed 29/11/2006), tal Despacho tem em vista a produção de efeitos directos no interior da esfera jurídica da entidade colectiva Direcção dos Serviços, de Saúde, especificamente no quadro da actividade desenvolvida pela Comissão Técnica. Ou seja, é um conjunto de “instruções” pelas quais se determina o modo de proceder em relação à verificação das habilitações e que só se projectará indirectamente na esfera dos particulares interessados quando em concreto houver necessidade disso.
Mas, sendo assim, não poderemos deixar de estar em presença de um exercício regulamentar, na medida em que os seus efeitos indirectos vão atingir uma generalidade de pessoas e recair sobre uma abstracção de situações que possam ficar sob a sua mira de aplicação. Cremos, pois, estar perante um regulamento interno, com origem no Director, assente no art. 8º, nº1 e 2, al. b), do DL nº 81/99/M e até mesmo, indirecta ou implicitamente no art. 3º, nº1, do Regulamento Administrativo nº 26/2003.
O alcance material deste Despacho
É agora pertinente perguntar se a “instrução” regulamentar emanada no ponto 4 desse Despacho agredirá o art. 5º, nº1, al. a), do DL nº 58/90/M.
Importa eliminar esta dúvida, uma vez que o despacho contenciosamente sindicado remete expressamente para o parecer da Comissão Técnica de Licenciamento de Profissões Farmacêuticas, o qual é muito claro em afirmar que “ A cadeira, créditos e carga horária que fazem parte do curso da licenciatura em Medicina Amadora frequentado pela requerente, em regime de dois anos, a partir do grau de bacharel, organizado pela Universidade de Sun Yat Sem não são idênticos manifestamente ao curso de licenciatura em Medicina em tempo inteiro, pelo que, o grau académico acima referido da SRª não se enquadra ao critério do ponto 4 no Despacho nº 6/SS/2007, ora a Srª não dispõe de condição exigida para a inscrição de exercício da profissão de farmacêutico no art. 5º al. a), do DL nº 58/90/M. Nestes termos, propõe-se os Serviços de Saúde que seja indeferido o requerimento em causa”.
Como se vê a ligação que é feita entre o ponto 4 do Despacho 6/SS/2007 e o art. 5º, nº1, al. a), do DL nº 58/90/M revela que, na mente do autor da decisão administrativa impugnada, a “instrução” compreendida no primeiro está dentro dos parâmetros normativos do segundo. De tal modo, que a fundamentação assim expressada em conjunto acaba por justificar a mesma análise unitária, que é a de saber se, efectivamente, o requisito exigido no acto (mas que entendeu não estar preenchido) se pode achar contida naquele art. 5º.
Revisitando a segunda parte da alínea a), do preceito, e tal como acima fomos dizendo, ela permite que o interessado aceda à profissão de farmacêutico se possuir uma habilitação de nível superior em farmácia reconhecida nos termos da lei. Pode ser uma licenciatura não obtida em universidades portuguesas, como pode ser outra qualquer forma de habilitação de nível superior em farmácia. Mas não basta que o interessado possua essa habilitação superior. Se assim fosse, a mera posse do título implicaria uma habilitação automática para o exercício da profissão, tal como quis o legislador que acontecesse com a posse desse título académico obtido em faculdades portuguesas. Logo, é preciso algo mais, um “quid” necessário, para além da habilitação de nível superior: é forçoso que a habilitação seja reconhecida nos termos da lei.
A questão é: como reconhecer a habilitação nos “termos da lei”?
Note-se que o acto em crise não asseverou que a habilitação da recorrida não era de nível superior. Por conseguinte, não percamos tempo com isso. A verdade é que não deferiu o pedido da interessada, por considerar que ela não reunia as condições do ponto 4 do Despacho 6/SS/2007.
Então, de novo nos voltamos para o art. 1º do Regulamento Administrativo nº 26/2003, para nos interrogarmos :
A forma como o acto decidiu a questão pode dizer-se ser de verdadeira verificação de habilitação académica tal como o indica o preceito?
Vertendo a interrogação para tom negativo: o acto não confirmou que as habilitações eram as adequadas ao exercício da actividade farmacêutica? Não aferiu da idoneidade e autenticidade dos documentos juntos?
Ora bem. O problema não foi de idoneidade, nem de autenticidade dos documentos. Daí que o acto lhes não tivesse feito qualquer referência. O que levou à decisão de indeferimento foi outra coisa. Foi remeter para o critério do ponto 4 do Despacho 6/SS/2007 e concluir que não estavam observadas as condições do art. 5º, nº1, al. a), do DL nº 58/90/M. Só que ao fazê-lo dessa maneira, colocou a ênfase, a tónica, no critério estabelecido nas referidas instruções regulamentares. Ou seja, a decisão administrativa ora em apreço não foi favorável à pretensão da interessada por considerar que as cadeiras, créditos e carga horária do curso de licenciatura na China em Medicina Amadora a tempo parcial não eram iguais aos do curso de licenciatura em Medicina na mesma universidade a tempo inteiro. Isto é, em lado nenhum foi dito que as habilitações invocadas pela requerente não eram adequadas ao exercício da actividade, tal como o imporia o art. 1º do Regulamento Administrativo para verificação de habilitações. Nenhuma análise concreta foi feita sobre o mérito das habilitações possuídas pela interessada, se elas se revelavam inapropriadas, insuficientes, desfasadas das exigências da actividade. O acto não disse que as habilitações não eram de nível superior, é verdade. Mas se o acto acabou por as considerar (ao menos implicitamente), de nível superior, acabou por decidir o caso com argumentos que não eram os que a lei previa.
Vamos explicar-nos um pouco melhor, dentro do possível.
A verificação, tal como gizada na norma, implica uma tarefa subsuntiva claramente discricionária. Recebidos os documentos, aferidos idóneos e considerados autênticos (2ª parte, do art. 1º do Regulamento 26/2003), à entidade pública resta averiguar se as competências que decorrem dos ensinamentos ministrados ao interessado servem, se ajustam ou se adequam ao exercício da actividade em causa. E nessa tarefa devem ser esgrimidas todas as razões substantivas, com exclusão das de natureza formal, evidentemente, porque as capacidades, a preparação académica, técnica e profissional não podem deixar-se interferir por questões de outra ordem. Ora, o que a norma quer e exige é que esse exercício de análise seja feito, caso a caso, pessoa a pessoa, em função das habilitações concretas de cada uma. Pode acontecer que a mesma licenciatura obtida na Coreia do Sul, não conduza exactamente ao mesmo grau de conhecimentos de outra obtida na Malásia, por exemplo, assim como é possível suceder que uma habilitação de nível superior obtida na RPC forneça melhores padrões de capacidades e competências do que uma licenciatura obtida, por exemplo, no Vietname. Ou seja, só o apuramento muito exigente e concreto, por isso casuístico, por parte da entidade pública serve os propósitos normativos.
O que o acto fez foi reduzir tudo à duração do curso: o curso a tempo parcial deve ter os mesmos créditos, cadeiras e carga horária que o mesmo curso a tempo inteiro tirado na mesma Universidade de Sun Yat Sen. Repare-se no logro do acto administrativo: em vez de averiguar se a habilitação da interessada era efectiva e concretamente “adequada”, preferiu indeferir a pretensão por entender que aqueles itens (créditos, cadeiras e carga horária) não eram os mesmos do curso a tempo inteiro, sem nada dizer sobre se o mesmo curso a tempo inteiro era adequado à actividade. Ou seja, para a Comissão Técnica de Licenciamento de Profissões Farmacêuticas e para o autor do acto, que no parecer daquela se baseou - fundados um e outro no ponto 4 do Despacho 6/SS/2007 - bastaria saber que as cargas horárias, as cadeiras leccionadas e os créditos de cada uma, eram iguais em ambas as licenciaturas, sem curar de apurar se o próprio curso a tempo inteiro concedia conhecimentos, capacidades e competências aos alunos de modo a garantir a tal adequação de que vimos falando.
Pensamos que está na hora de concluir o nosso ponto de vista. Ao exigir que qualquer curso de licenciatura em farmácia a tempo parcial deva possuir os mesmos créditos, carga horária e cadeiras, o Ex.mo Director dos Serviços de Saúde criou um critério objectivo e, com isso, produziu uma situação de auto-vinculação de que não conseguirá desembaraçar-se sempre que alguém lhe surja reunindo aquela condição. Ou seja, terá que reconhecer automaticamente a habilitação porque o critério objectivo lhe não deixa margem para decidir diferentemente, enquanto o escopo da lei é, diferentemente, fazer um apuramento individualizado e concreto num quadro de clara discricionariedade técnica.
Sendo assim, aquela “instrução” interna de cariz regulamentar é ilegal por contrariar tanto o art.5º, al. a), do DL nº 58/90/M, como o art. 1º do Regulamento Administrativo 26/2003. E ao fazer uso de um regulamento ilegal, ilegal é o acto que o aplica.
E mesmo que assim não se considerasse, quer dizer, ainda que se não entendesse que o Despacho 6/SS/2007 tivesse essa natureza, ou até mesmo ainda que se entendesse que esse Despacho não sofre do desvio que lhe apontámos, nem por isso o acto deixaria de ser anulável. É que o acto, na 2ª parte, também convoca o art. 5º, al. a) do DL nº 58/90/M para justificar o indeferimento. E como já vimos atrás, o art. 5º, al. a) citado, na medida em que remete para o reconhecimento nos termos da lei, não permite a interpretação seguida pelo acto impugnado. Neste sentido, seja qualquer for o prisma que se siga, o acto sempre cometeu o vício de violação de lei.
Razão, pois, para se não poder conceder provimento ao recurso.
***
IV- Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.
Sem custas.
TSI, 22 / 09 / 2011
José Cândido de Pinho
Lai Kin Hong
Choi Mou Pan
Presente
Victor Manuel Carvalho Coelho