Processo n.º 490/2010
(Recurso civil e laboral)
Data: 29/Setembro/2011
RECORRENTES :
Recurso Principal
A (XXX)
Recurso Interlocutório
Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A.R.L. (澳門旅遊娛樂有限公司)
RECORRIDAS :
As Mesmas
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
A, melhor identificada nos autos, patrocinada por advogado, veio interpor contra Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A.R.L.” (澳門旅遊娛樂有限公司), Sociedade Anónima de Responsabilidade Limitada, com sede em Macau, Região Administrativa Especial de Macau, no Hotel Lisboa, 9º andar, acção de processo comum de trabalho, formulando o pedido de condenação da Ré, a pagar-lhe, a título de créditos laborais a quantia de MOP$2.660.117,92, acrescida dos respectivos juros, desde a citação.
Julgada a causa, foi proferida douta sentença, tendo sido a Ré absolvida, na medida em que o Mmo Juiz a quo considerou que os valores encontrados como resultantes das compensações devidas já teriam sido oportunamente pagos pela empregadora.
Tendo sido indeferido o recurso subordinado interposto pela Ré, foi no entanto decidido pelo Mmo Presidente deste Tribunal, em sede de reclamação, que a questão suscitada pela Ré, relativa ao valor e consequências da declaração subscrita pelo trabalhador, aquando da cessação da relação laboral, devia agora ser apreciada, tendo procedido a uma convolação do recurso ampliado da Ré STDM.
Fundamentalmente, no seu recurso, a trabalhadora entende que, no caso concreto, as gorjetas devem integrar o salário, avançando com outras fórmulas para cálculo das compensações que considera devidas relativamente a descansos semanais, anuais e feriados não gozados.
Antes, porém, dever-se-á apreciar a questão relativa à mencionada excepção relativa à declaração assinada pelo trabalhador, nos termos da qual se considerou pago de todas as compensações devidas.
Importa ainda ter presente que vem interposto um recurso relativo á prescrição dos créditos reclamados, recurso esse interposto pela ré do Saneador, nos termos do qual foram considerados não prescritos os créditos reclamados.
Como não é difícil descortinar se aquela excepção relativa à pretensa quitação dos créditos reclamados tiver êxito, prejudicado fica o conhecimento desta última excepção.
Oportunamente, foram colhidos os vistos legais.
II - FACTOS
Vêm provados os factos seguintes:
“Da confissão e das provas documentais resultam provados os seguintes factos:
FACTOS PROVADOS
1. Durante o período compreendido entre 21.09.1984 e 25.07.2002 a Autora prestou trabalho para a aqui Ré.
2. Entre 21 de Setembro de 1984 e 30 de Junho de 1989 a Autora tinha uma retribuição fixa diária de MOP$4,10, entre 1 de Julho de 1989 e 30 de Abril de 1995, tinha uma remuneração fixa diária de HKD$10,00 e a partir de 1 de Maio de 1995, a remuneração passou ser de HKD$15,00.
3. Além disso, a Autora, ao longo do período referido na alínea 1) recebeu uma quota-parte, variável, do total das gorjetas entregues pelos clientes da Ré a todos os trabalhadores, cujo montante era diariamente reunido e contabilizado e, em cada dez dias, distribuído por todos os seus trabalhadores, lidassem ou não directamente com os clientes e de acordo com a respectiva categoria profissional.
4. Desde o início da relação laboral e até à sua cessação, a Autora recebeu da Ré as seguintes quantias:
- Ano de 1984: MOP$ 10.118,00
- Ano de 1985: MOP$ 39.252,00
- Ano de 1986: MOP$ 49.175,00
- Ano de 1987: MOP$ 84.151,00
- Ano de 1988: MOP$ 111.650,00
- Ano de 1989: MOP$ 143.329,00
- Ano de 1990: MOP$ 176.598,00
- Ano de 1991: MOP$ 178.691,00
- Ano de 1992: MOP$ 168.427,00
- Ano de 1993: MOP$ 178.548,00
- Ano de 1994: MOP$ 191.595,00
- Ano de 1995: MOP$ 111.204,00
- Ano de 1996: MOP$ 208.567,00
- Ano de 1997: MOP$ 205.575,00
- Ano de 1998: MOP$ 204.972,00
- Ano de 1999: MOP$ 152.663,00
- Ano de 2000: MOP$ 164.314,00
- Ano de 2001: MOP$ 176.974,00
- Ano de 2002: MOP$ 94.496,00
5. Até 1998, a Autora trabalhava em ciclos contínuos de três dias:
- No primeiro dia, a Autora começava a trabalhar às 14.00 horas e interrompia às 18.00 horas, recomeçava às 22.00 horas e acabava às 2.00 horas.
- No segundo dia, a Autora começava a trabalhar às 10.00 horas e interrompia às 14.00 horas, depois recomeçava às 18.00 horas e acabava às 22.00 horas.
- No terceiro dia, a Autora começava a trabalhar às 6.00 horas e interrompia às 10.00 horas, depois recomeçava às 2.00 horas e acabava às 6.00 horas.
6. A partir de 1998, a Autora passou a trabalhar em ciclos contínuos de 9 dias:
- No primeiro, segundo e terceiro dias, a Autora começava às 7.00 horas e acabava às 15.00 horas;
- No quarto, quinto e sexto dias, a Autora começava às 23.00 horas e acabava às 7.00 horas;
- No sétimo, oitavo e nono dias, a Autora começava às 15.00 horas e acabava às 23.00 moas.
7. No dia de 28 de Julho de 2003, a Autora subscreveu a declaração, aceite pela Ré, cujo teor consta de fls. 436, com o seguinte teor:
Em língua chinesa: “本人…….., 持澳門居民身分證編號 X/XXXXXX/X, 自願收取由澳門旅遊娛樂有限公司 (以下簡稱 “澳娛”) 發放的服務賞金MOP$ (澳門幣) 30,930.64, 作為支付本人過往在 “澳娛” 任職期間一切假期 (周假、年假、強制性假日及倘有之分娩假期) 及協議終止 “澳娛” 的僱傭關係等所可能衍生權利的額外補償。同時, 本人聲明及明白在收取上述服務償金之後, 本人因過往在 “澳娛” 任職而可能衍生之權利已予終止, 因此, 本人不會以任何形式或方式, 再行向 “澳娛” 追討或要求任何補償, 即本人與 “澳娛” 就僱傭關係補償的問題上, 從此各不拖欠對方。”
( ... )
Em língua portuguesa: "Eu, (…..) titular do BIR n.° ……… recebi, voluntariamente, a título de prémio de serviço, a quantia de da STDM, referente ao pagamento de compensação extraordinária de eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença de maternidade e rescisão por acordo do contrato de trabalho, decorrentes do vínculo laboral com STDM Mais declaro que e entendo que, recebido o valor referido, nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a STDM subsiste e, por consequência, nenhuma quantia é por mim exigível, por qualquer forma, à STDM, na medida em que nenhuma das partes deve à outra qualquer compensação relativa ao vínculo laboral"
8. A Autora recebeu da Ré a quantia referida na alínea anterior.
8A. Além da quantia referida em 7), a Autora recebeu ainda a quantia de MOP$15.465,32 como compensação/indemnização pelo descanso semanal, férias e feriados, no âmbito do' processo de contravenção laboral n° 1476/2002.
9. Em Julho de 2003, o Departamento da Inspecção do Trabalho enviou à Autora o oficio cuja cópia se encontra a fls. 445 a 449 e cujo teor aqui se dá por reproduzido.
10. ( ... )
A Sociedade de Jogos de Macau SA, é uma sociedade anónima com um capital Social de duzentos milhões de patacas, dividido e representado por dois milhões de acções, com o valor nominal de cem patacas cada, das quais um milhão e seiscentas mil (privilegiadas) e cento e noventa e nove mil e novecentas e noventa (ordinárias simples) são detidas pela sociedade Investimentos - STDM, Limitada.
11. A STDM é sócia da Sociedade Investimentos - STDM, Limitada, representado a sua quota 99% capital desta.
12. A Autora tem dois filhos que nasceram em 24.04.1983 e em 4.02.1995.
13. Sempre que a Autora não prestou trabalho efectivo para a Ré não auferiu qualquer remuneração.
14. A Autora acordou com a Ré que, por cada dia em que aquela prestasse trabalho efectivo, e só nesses, receberia uma importância diária fixa nos termos da alínea B) dos factos assentes e uma importância variável correspondente à quota-parte referida na alínea C) da matéria de facto assente.
15. A Ré nunca fixou à Autora o período de descanso semanal.
16. Nem lhe fixou o período ou períodos de descanso anual.
17. A Autora recebeu apenas as quantias referidas na resposta dada ao quesito 1°, e nada mais, pelos dias em que prestou trabalho efectivo e nada recebeu pelos dias em que o não prestou.
18. A Autora nunca foi compensada com qualquer dia de descanso.
19. Quando da respectiva contratação, a Autora aceitou que o trabalho por si prestado em dias de descanso semanal, anual e feriados obrigatórios fosse pago sem qualquer compensação adicional.
20. E aceitou que, caso pretendesse gozar de descanso, tal nunca lhe seria negado só que tais dias não lhe seriam retribuídos.”
III - FUNDAMENTOS
Como já se observou, a questão que vem colocada pela STDM, relativa ao valor a dar à declaração assinada pelo trabalhador, se procedente, mostrando-se definitivamente julgada a excepção peremptória relativa à apreciação da declaração remissiva dos créditos anteriores, prejudicará necessariamente as questões suscitadas no recurso interlocutório relativamente à excepção da prescrição de parte dos créditos e as suscitadas no recurso final do trabalhador, nomeadamente quanto à integração das gorjetas no salário, donde, por razões de ordem lógica, se conhecerá previamente deste recurso final convolado.
2. Como resulta do texto da douta sentença proferida o valor dessa declaração não foi analisada “ex professo”, mas não deixou de relevar para, com base nela, se terem até os créditos considerados devidos por compensados
Importa então ver da natureza dessa declaração de forma a indagar se se observam ou não requisitos devidos quanto à forma da mesma.
Insurge-se a recorrente contra quem fora pedido o pagamento das compensações devidas pelo pretenso não gozo de determinados descansos (semanal, anual e feriados), durante os anos em que trabalhou para a Ré STDM, pela aplicação do artigo 854º do CC, tomada como remissão dos créditos a declaração acima referida, segundo a qual o trabalhador, aquando da cessação da relação laboral assinou uma declaração dizendo receber as quantias a que considerava com direito, mais dizendo que considerava não subsistir qualquer outro direito decorrente da relação laboral que então findava.
3. Antes de esmiuçar esta questão, importa caracterizar a natureza e alcance da declaração que o trabalhador assinou, para assim se ver se ela está ou não regulada no RJRL. Só se se concluir que se trata de uma renúncia de direitos indisponíveis abrangida por aquele regime se poderá afirmar a inaplicabilidade do regime geral consagrado na lei civil.
Analisando a transcrita declaração, os seus termos, em chinês e em português, são claros e o sentido que um declaratário normal - e, tal como se assinala na douta sentença recorrida, face ao disposto no artigo 228º do CC, é esse o sentido que há que relevar - dali retira é que o trabalhador, face à rescisão do contrato de trabalho, no que respeita à relação laboral subsistente até então, recebeu uma certa quantia, referente a compensações de eventuais direitos, nomeadamente relativos aos descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, aceitando que nenhuma outra quantia fosse devida.
Em linguagem simples, deu quitação da dívida.
4. Mas vem agora o trabalhador demandar outros montantes, quantitativamente muito maiores, numa desconformidade que desde logo impressiona, em relação àqueles que aceitou receber. E impressiona, porque em face de tais montantes, se não se considerava pago, face ao prejuízo que se afigurava, não devia ter assinado essa declaração.
Dir-se-á que não tinha consciência do montante dos créditos ou que foi induzido em erro; mas essa é uma outra questão que devia ter sido alegada e comprovada, não se deixando de adiantar que tal como agora ocorreu não havia razões para se aconselhar sobre o alcance dos créditos a que efectivamente teria direito.
Essa, contudo, é questão que não importa agora apreciar.
5. Nem se diga que se tratou de uma renúncia de direitos indisponíveis.
Não releva a natureza indisponível dos direitos concedidos ao trabalhador, a natureza proteccionista daquele diploma em relação a tais direitos, a necessidade de protecção da parte mais fraca, a posição dominante da concessionária empregadora, a menor margem de liberdade do trabalhador.
A protecção que deve ser dispensada ao trabalhador não pode ser absoluta nem fazer dele um incapaz sem autonomia e liberdade, ainda que aceitando os condicionamentos específicos decorrentes de uma relação laboral.
É verdade que, desde logo, o RJRL ,no seu art. 1°, pugnando pela "observância dos condicionalismos mínimos" nele estabelecidos, prevê que “O presente diploma define os condicionalismos mínimos que devem ser observados na contratação entre empregadores directos e trabalhadores residentes, para além de outros que se encontrem ou venham a ser estabelecidos em diplomas avulsos.”
E no art. 33º do R.J.R.T. ”O trabalhador não pode ceder, nem a qualquer outro título alienar, a título gratuito ou oneroso, os seus créditos ao salário, salvo a favor de fundo de segurança social, desde que os subsídios por este atribuídos sejam de montante igual ou superior ao dos créditos.”
Daqui decorre que nenhum desses artigos contempla ex professo a situação em apreço. Antes respeitam a situações diferentes, nomeadamente o artigo 33º o que prevê é a impossibilidade de renúncia a um salário e não já às compensações devidas por trabalho indevido.
Tais preceitos dispõem sobre a regulação do exercício de uma relação laboral ainda em aberto, compreendendo-se que por essa via, ao trabalhador sejam garantidos aqueles mínimos que o legislador reputa como as condições mínimas de exercício humano, digno e justo do trabalho a favor de outrem.
Tais cautelas já não são válidas quando finda essa relação, como aconteceu no caso presente.
E também não são válidas quando já não está em causa o exercício dos direitos, mas apenas uma compensação que mais não é do que a indemnização pelo não gozo de determinados direitos.
Não deixaria de ser abusivo e contrário à autonomia da vontade e liberdade pessoal, próprias do direito privado, que alguém, incluindo o trabalhador, não pudesse ser livre quanto ao destino a dar ao dinheiro recebido, ainda que a título de compensações recebidas por créditos laborais.
A não se entender desta forma, pese embora a aberração do argumento, ter-se-ia de obrigar o trabalhador a aceitar o dinheiro e, mais, importaria seguir o destino que ele lhe daria.
6. Diferentes são as coisas quando o trabalhador está em exercício de funções e a sociedade exige que as condições de trabalho sejam humanas e dignificantes, não se permitindo salários ou condições concretas de exercício vexatórias e achincalhantes, materializando a garantia da sua subsistência e do seu agregado familiar. Essa tem de ser a inspiração do intérprete relativamente ao princípio favor laboratoris, mas que não pode ir ao ponto de converter o trabalhador num incapaz de querer, entender e de se poder e dever determinar.
Nem aquele princípio, consagrado no artigo 5º do mesmo supra citado Regime nos seguintes termos “1. O disposto no presente diploma não prejudica as condições de trabalho mais favoráveis que sejam já observadas e praticadas entre qualquer empregador e os trabalhadores ao seu serviço, seja qual for a fonte dessas condições mais favoráveis. 2. O presente diploma nunca poderá ser entendido ou interpretado no sentido de implicar a redução ou eliminação de condições de trabalho estabelecidas ou observadas entre os empregadores e os trabalhadores, com origem em normas convencionais, em regulamentos de empresa ou em usos e costumes, desde que essas condições de trabalho sejam mais favoráveis do que as consagradas no presente diploma.” , poderá ter o alcance que se pretende, de limitar a capacidade negocial do trabalhador de forma tão extensa.
O princípio do tratamento mais favorável "...assume fundamentalmente o sentido de que as normas jurídico-laborais, mesmo as que não denunciem expressamente o carácter de preceitos limitativos, devem ser em princípio consideradas como tais. O favor laboratoris desempenha pois a função de um prius relativamente ao esforço interpretativo, não se integra nele. É este o sentido em que, segundo supomos, pode apelar-se para a atitude geral de favorecimento do legislador - e não o de todas as normas do direito laboral serem realmente concretizações desse favor e como tais deverem ser aplicadas"1
Noutra perspectiva2, considera-se que tratamento mais favorável ao trabalhador deve ser entendido em termos actualistas, como o conjunto dos valores que o Direito do Trabalho, de modo adaptado, particularmente defende e entre os quais, naturalmente, avulta a protecção necessária ao trabalhador subordinado. Quando haja um conflito hierárquico entre fontes do Direito do Trabalho, aplicam-se as normas que estabelecem tratamento mais favorável para o trabalhador, sejam elas quais forem; tal não se verificará quando a norma superior tenha uma pretensão de aplicação efectiva, afastando a inferior.
Donde decorre que o princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador não é erigido para sufragar toda e qualquer interpretação que permita o alargamento de uma tutela proteccionista injustificada, tendo antes na sua génese a exclusão de um regime, entre dois ou mais aplicáveis, que lhe seja menos favorável.
7. Nesta conformidade falece ainda eventual invocação do artigo 6º do RJRL ”São, em princípio, admitidos todos os acordos ou convenções estabelecidos entre os empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos ainda que disponham de modo diferente do estabelecido na presente lei, desde que da sua aplicação não resultem condições de trabalho menos favoráveis para os trabalhadores do que as que resultariam da aplicação da lei”,
tendo-se como condições de trabalho, nos termos do art. 2º, al. d) todo e qualquer direito, dever ou circunstância, relacionados com a conduta e actuação dos empregadores e dos trabalhadores, nas respectivas relações de trabalho, ou nos locais onde o trabalho é prestado.
Isto porque, como se disse, já não se trata de conduta e actuação no local de trabalho e exercício de funções.
Tal é a situação dos autos, em que se mostrou cessada a relação laboral e assim se tem entendido em termos de Jurisprudência comparada.3
8. Quanto à natureza e validade da declaração.
Afastando-se, como se viu, a aplicabilidade do RJRL em relação à proibição de tal estipulação, importa atentar na natureza que assume a declaração emitida pelo trabalhador aquando da cessação da relação laboral.
Em termos gerais, a remissão de dívida traduz-se na renúncia do credor ao direito de exigir a prestação, feita com o acordo do devedor.
A primeira questão que se coloca é a de saber se o documento em causa constitui realmente um contrato de remissão. Pode-se entender que a referida declaração não configura um contrato de remissão, pois que tal implicaria uma identificação e reconhecimento de créditos de que prescindiria.
Mas, o certo é que tal documento contém, pelo menos, uma declaração de quitação que, dada a sua amplitude, abrange todos os créditos resultantes da relação laboral em causa, incluindo os que eventualmente pudessem resultar da sua cessação.
A remissão é uma das causas de extinção das obrigações e traduz-se na renúncia do credor ao direito de exigir a prestação que lhe é devida, feita com a aquiescência da contraparte4, revestindo, por isso, a forma de contrato, como claramente se diz no art.º 854º, n.º 1, do C.C.: "O credor pode remitir a dívida por contrato com o devedor."
9. O que verdadeiramente caracteriza o contrato de remissão é a renúncia do credor ao poder de exigir a prestação que lhe é devida pelo devedor. Ao contrário do que acontece com o cumprimento (em que a obrigação se extingue pela realização da prestação devida) e ao contrário do que acontece na consignação, na compensação e na novação (em que o interesse do credor é satisfeito, não através da realização da prestação devida, mas por um meio diferente), na remissão, tal como na confusão e na prescrição, o direito de crédito não chega a funcionar. O interesse do credor a que a obrigação se encontra adstrita não chega a ser satisfeito, nem sequer indirecta ou potencialmente e, todavia, a obrigação extingue-se.5
O direito romano admitia a acceptilatio (remissão de uma obrigação verbal, mediante reconhecimento de se ter recebido a prestação, remissão que extinguia o crédito ipso jure), o pactum de non petendo (convenção pela qual o credor prometia ao devedor que não faria valer o crédito, definitiva ou temporariamente, contra todos - pactum in rem - ou contra determinada pessoa - pactum in provissem, produzindo o pacto o efeito de atribuir uma exceptio contra o crédito) e o contrarius consensus (convenção pela qual se extinguia toda uma relação obrigacional, derivada de um contrato consensual, o que só era possível se nenhuma das partes tinha ainda cumprido6
Pode-se dizer, num certo sentido, que, hoje, na remisão, - artigo 854ºdo Código Civil - extinguindo-se a obrigação, o interesse do credor não se satisfaz, nem sequer indirecta ou potencialmente.
10. Mas mesmo que, ainda porventura por algum excesso de rigor formal, se considerasse que o documento em causa não pudesse ser qualificado de remissão, por se entender ser necessário que a declaração nele contida tivesse carácter remissivo, isto é, que a parte tivesse declarado que renunciava ao direito de exigir esta ou aquela concretizada prestação, não se deixará de estar sempre perante uma declaração de quitação em que se consideravam extintos, por recíproco pagamento, ajustado e efectuado nessa data, toda qualquer compensação emergente da relação laboral, o que vale por dizer que todas as obrigações decorrentes do contrato de trabalho tinham sido cumpridas.
Como diz Leal Amado7, uma quitação com aquela amplitude é, sem dúvida, uma quitação sui generis, uma vez que os credores não se limitaram a atestar que receberam esta ou aquela prestação determinada. Ao declarar que recebia as compensações a determinado título e que mais nenhum direito subsistia, por qualquer forma, nada devendo reciprocamente, atestaram que receberam todas as prestações que lhe eram devidas. E essa forma de quitação, por saldo de toda a conta, não deixa de ser admitida em direito.
Perante isto, em vez de se perguntar se o autor renunciou ao direito às prestações que eventualmente lhe seriam devidas em consequência da cessação da relação laboral, perguntar-se-á se essas prestações já se mostram realizadas ou se se mostram extintas, sendo que a resposta a esta última questão, tida como relevante, é seguramente afirmativa, perante a clareza daquela afirmação.
Na verdade, como inequivocamente decorre do teor do documento, os direitos abrangidos pela declaração emitida são os emergentes da relação contratual de natureza profissional que entre A. e Ré se manteve até àquela data.
11. Poder-se-á ainda dizer que a extinção da relação laboral acordada, tornou impossível o cumprimento da obrigação de pagamento ao Autor, do que ele solicita. Daí que ele passasse a ser titular de um outro direito; tal como já se assinalou, o crédito peticionado é o crédito à indemnização devida pelo incumprimento das obrigações que decorreram para a entidade patronal de lhe garantir os aludidos repousos enquanto para ele trabalhou.
Esta perspectiva afigura-se particularmente relevante.
É que não se trata da disponibilidade de direitos, mas sim da compensação pela sua não satisfação.
Pelo contrato havido e comprovado, no âmbito do qual foi emitida aquela declaração, as partes acordaram sobre o montante de indemnização ou "compensação" devida ao Autor e, com o recebimento dessa quantia, a correspondente obrigação da Ré, surgida em substituição da obrigação inicial, extinguiu-se pelo pagamento de que o A. deu total quitação, sendo legítima a transacção extrajudicial sobre o conteúdo ou extensão de obrigação da Ré nos termos do artigo 1172º do CC, não abrangida já por qualquer indisponibilidade.
12. Anota-se ainda que no aludido documento, para além de que não se deixaram de concretizar a que título ocorreu o acerto final, quais as compensações a que se procedia, deu-se até quitação de todas e eventuais prestações não abrangidas por aquele recebimento.
Tem-se até noutros casos invocado o argumento de o trabalhador se encontrar em notória situação de inferioridade e dependência ao assinar o recibo, pelo que, não manifestando qualquer vontade negocial, não terá tomado uma opção livre e consciente, uma escolha livre no tocante à assinatura da referida declaração, estaríamos perante uma situação de erro vício previsto no artigo 240º do CC, face à indução da conduta pela entidade pública tutelar e viciação da vontade, por temor, vista a continuação numa sociedade subsidiária da primeira empregadora.
Trata-se, no entanto, de questão que não é colocada.
13. Não se deixa de referir que esta interpretação, não obstante algumas divergências, não tem deixado de ser acolhida nos Tribunais de Macau, conforme parte da Jurisprudência do TSI e a Jurisprudência do TUI.8
Assim se conclui pela não existência dos apontados vícios, não sendo de manter a douta decisão proferida, o que prejudica necessariamente o recurso final.
14. Estamos, pois, em condições de concluir que o referido documento assume uma natureza de quitação e de remissão abdicativa pela qual ficou claro que o trabalhador renunciava a quaisquer direitos emergentes da relação laboral que então cessava.
15. Como está bem de ver, relevando-se o documento de fls 436, como se releva, procedente deve ser julgada a excepção peremptória invocada, deixando de fazer sentido a apreciação do recurso final, vista a renúncia expressa e relevante de quaisquer créditos sobre a Ré por parte da A.
IV - DECISÃO
Pelas apontadas razões, nos termos e fundamentos expostos, acordam em conceder provimento ao pedido ampliado no recurso interposto, julgando procedente a excepção deduzida pela Ré, STDM e absolvendo-a dos pedidos formulados na acção pela trabalhadora A, ficando assim prejudicado o conhecimento do recurso interlocutório relativo à excepção da prescrição dos créditos reclamados e ao recurso da sentença proferida a final por parte da trabalhadora.
Custas do recurso pela A. A e sem custas o recurso interlocutório por prejudicado.
Macau, 29 de Setembro de 2011,
1 - Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, Almedina, 11.ª edição, pág. 118.
2 - Menezes Cordeiro, Direito do Trabalho, pág. 219.
3 - Acs. STJ de 20/11/03, proc. 01S4270, de 12/12/01, proc. 01S2271, de 9/10/02, proc. 3661/02
4 - A. Varela, Das obrigações em geral, Coimbra Editora, 2.ª ed., vol. II, pag. 203
5 - A. Varela - Ob. cit., pág. 204
6 - Professor Vaz Serra, BMJ 43, 57.
7 - A Protecção do Salário, pag. 225, eparata do volume XXXIX do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
8 - Acs do TUI46/07, de 27/2/08; 14/08, de 11/6/08; 17/08, de 11/6/08; TSI, proc. 294/07, de 19/7, entre muitos outros
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