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Processo 475/2011
(Processo Civil e Laboral)
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 29 de Setembro de 2011
Descritores: Acidente de trabalho
Predisposição patológica
Presunção de acidente

SUMÁRIO:

I- Mesmo que um ataque cardíaco que vitime um trabalhador tenha ocorrido no local e no tempo de trabalho (que faz presumir ser de trabalho o acidente, nos termos do art. 10º, nº1, al. a), do DL nº 40/95/M de 14/08), não haverá lugar a reparação se a efectiva prestação de trabalho não tiver concorrido, de acordo com os factos provados, para a produção do acidente vascular fatal.
II- E se, em vez da prova da concorrência de causas, tiver ficado demonstrado que apenas à doença de que o trabalhador padecia (aterosclerose da coronária, em virtude de acumulação de colesterol) se ficou a dever o ataque cardíaco, então nem ao abrigo do art. 8º do citado diploma haverá lugar a reparação.



Processo nº 475/2011
(Recurso civil e laboral)
Acordam no Tribunal de Segunda Instância

I- Relatório
O Ministério Público, ao abrigo dos arts. 56º, nº2, al. 9) da LBOJ e arts. 7º, nº1, al. l) e 60º, nº1, do CPT, em representação de A, moveu acção para efectivação de direitos resultantes de acidente de trabalho contra a “Companhia de Seguros da China (Macau), SA” - actualmente “Companhia de Seguros da China Taiping (Macau), SA”- , pedindo a condenação desta no pagamento da quantia indemnizatória de Mop$ 514,000,00.
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Prosseguiram os autos a sua normal tramitação até à sentença, na qual foi a Ré seguradora condenada no pagamento da indemnização global de Mop$430.666,67 e respectivos juros legais.
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É dessa decisão que ora vem interposto o presente recurso jurisdicional, apresentado pela, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
I. Vem o presente recurso interposto da douta Sentença proferida nºs vertentes autos que julgou a acção parcialmente procedente e, por entender que o acidente mortal que atingiu o A é um acidente de trabalho, condenou a Ré, ora Recorrente, a pagar aos 1º, 2º, 3º, 4º e 6º Autores indemnização nº valor global de MOP$514.000.00 acrescido dos respectivos juros.
II. Resulta claramente que a decisão recorrida, interpretada de per si, com a experiência comum e com os elementos dos autos nela acolhidos, se encontra inquinada do vício de erro na apreciação da prova, tendo violado o disposto nº art. 8º do Decreto-Lei nº 40/95/M, de 14 de Agosto, e que após a reapreciação da prova por parte desse Venerando Tribunal da Segunda Instância, deverá ser proferido douto Acórdão que considere o enfarte agudo do miocárdio sofrido pelo Trabalhador não resultou de acidente de trabalho mas antes de doença, isto é de males e patologias de origem endógena, com a consequente absolvição da Recorrente relativamente aos pedidos de compensação formulados nos autos pelos familiares da vítima.
III. O presente recurso versa assim sobre matéria de facto e sobre matéria de direito.
IV. Realizada audiência de discussão e julgamento entendeu o douto Tribunal a quo dar por provado que: (1º) A infeliz vítima, A, se sentiu mal, a 11 de Agosto de 2007 pelas 11h30, enquanto estava de pé na escada de madeira de 1,2 metros na loja nº 2426 de The Venetian da Taipa para proceder a trabalho de decoração, tendo em seguida sido amparada por colegas, que o deitaram nº chão; (2º) Morreu quando estava a ser transferido para o Centro Hospitalar de Conde S. Januário; (3º) De acordo com o perícia médico-legal: (a) A, faleceu por causa da insuficiência cardíaca que é provocada por aterosclerose coronária com isquemia miocárdica aguda. Além da doença cardíaca, o falecido tinha o pulmão direito atingido por tuberculose e uma extensa aderência pleural; b) Não se vê qualquer ferimento por violência após a verificação da superfície do corpo e dos órgãos; c) O presente caso é de morte súbita que aconteceu no local e horário de trabalho. A tensão e a fadiga de trabalho causaram o ataque cardíaco, deteriorando a doença que já existia. Há o nexo de causalidade com a morte súbita do presente caso' (esta parte não deve ser vista como se existe por pertencer ao termo concludente); (4º) A despesa de funeral no valor de MOP 41.210,00, foi paga pela irmã mais nova do falecido, B; (5º) A infeliz vítima sofria de doença aterosclerose coronária; (6º) Tinha o pulmão direito atingido por tuberculose e uma extensa aderência pleural; (7º) A aterosclerose coronária que veio a vitimar o trabalhador surgiu na sequência do desenvolvimento lento e progressivo do problema cardíaco de que padecia; (9º) o salário diário da vítima é de MOP 600,00.
V. No vertente processo, foi determinada a documentação das declarações prestadas na audiência de julgamento, existindo por isso suporte de gravação, o que permitirá ao douto Tribunal de Segunda Instância melhor avaliar, e decidir, sobre o ora invocado erro na apreciação da prova, aqui expressamente se requerendo a reapreciação da matéria de facto, nºs termos admitidos no art. 629º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi art. 1º do Código de Processo do Trabalho.
VI. A Recorrente, ao invocar no presente recurso o erro na apreciação da prova, que, na sua óptica, inquina a decisão proferida pelo douto Tribunal a quo, não pretende apresentar apenas uma simples discordância relativamente à interpretação dos factos feita por aquele douto Tribunal, tendo bem presente o dispositivo do art. 558º do Código de Processo Civil, e a natureza insindicável da livre convicção relativamente à apreciação da prova efectuada pelo Tribunal recorrido, e ainda estando bem ciente da jurisprudência afirmada nos Tribunais Superiores da RAEM, entendendo a Recorrente que tal se verifica na situação dos autos, e que o vício apontado à decisão recorrida resulta dos próprios elementos constantes dos autos, por si só ou com recurso às regras da experiência comum.
VII. Do depoimento prestado em audiência de julgamento pelo Dr. G resulta que pela análise da documentação junta aos autos, começando a fls 210 o Trabalhador pelo menos desde 2003 sofria de diabetes e colesterol, sendo o enfarte do miocárdio o resultado natural da aterosclerose, doença que o acompanhava há já vários anos, e que culminaram na obstrução de 50% de uma artéria do coração e 80% da outra, referindo ainda que estas pessoas morrem independentemente de estarem cansadas, tendo a morte repentina sido motivada por uma serie de doenças que tinha, sem qualquer relação directa entre a morte e o trabalho desenvolvido pela vitima. Pelo contrário, foi peremptório ao afirmar que dadas as doenças de que a vitima padecia, e face à extensa obstrução das artérias, o enfarte poderia ter ocorrido em qualquer lugar, fosse a andar, a correr, a subir e descer escadas, porque se assustou com o transito, até mesmo a dormir.
VIII. Do depoimento prestado em audiência de julgamento pela testemunha C, inspector da Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais, resultou que das averiguações efectuadas apurei que o trabalhador só prestou por volta de 11 dias de trabalho e durante esses 11 dias apenas 1 dia prestou 2 horas extraordinárias, gozou descanso semanal, tendo condições de trabalho razoáveis, desenvolvendo actividade no interior de uma loja, não tendo sido notada qualquer infracção no trabalho.
IX. Do depoimento prestado em audiência de julgamento pelo Perito Médico Dr. D resultou que na autópsia viu que o coração tinha entupimento de 80% nos vasos sanguíneos o impedia a circulação do sangue, tendo o enfarte sido a causa da morte, referindo claramente que qualquer cansaço, fosse qual fosse daria origem ao ataque cardíaco.
X. Após reapreciação da prova efectuada em juízo por parte desse Venerando Tribunal da Segunda Instância deverá ser proferido douto Acórdão que considere o provado o quesito 8º da base instrutória ou seja que a morte da infeliz vitima foi causada por doença, isto é de males ou patologias de origem endógena, e em consequência julgue que o enfarte do miocárdio sofrido pelo Trabalhador não resultou de acidente de trabalho, não havendo qualquer relação entre a morte e a actividade pelo mesmo desenvolvida, assim se afastando a aplicação do disposto no art. 8º do Decreto-Lei nº 40/95/M, e bem assim da presunção prevista nº art. 10º do mesmo diploma legal.
XI. Ainda que improceda o recurso na parte respeitante à impugnação da decisão que dirimiu a matéria de facto, face à matéria de facto tal como provada pelo douto Tribunal não estamos perante um acidente de trabalho.
XII. O acidente de trabalho é constituído por uma cadeia de factos em que cada um dos respectivos elos tem de estar entre si sucessivamente interligados por um nexo causal: o evento naturalístico tem de estar relacionado com a relação do trabalho; a lesão, perturbação ou doença terão que resultar daquele evento; e finalmente a morte ou a incapacidade para trabalho deverão resultar da lesão, perturbação funcional ou doença. De tal forma que se esse elo causal se interromper em algum dos momentos do encadeado fáctico atrás descrito, não poderemos sequer falar - pelo menos em relação àquela morte ou àquela incapacidade em acidente de trabalho. (neste sentido conferir Vitor Ribeiro, Acidentes de trabalho, Reflexões e Notas Praticas, pag. 218)
XIII. Porém, no que se refere à prova do nexo causal entre as lesões e o acidente a lei estabelece, nos artigos 8º e 10º do Decreto-lei nº 40/95/M presunções a favor do sinistrado e dos seus beneficiários legais.
XIV. Resulta dos presentes autos que no dia 11 de Agosto de 2007, A sentiu-se mal, foi amparado por colegas que o ajudaram a deitar-se no chão, tendo vindo a falecer a caminho do hospital vítima de enfarte agudo do miocárdio.
XV. Apenas resultou que a vítima sofreu um enfarte no seu local e tempo de trabalho.
XVI. Não se vislumbra que tenha ocorrido um evento súbito, violento, inesperado de ordem exterior que tenha desencadeado ou que seja determinante no desencadeamento do referido enfarte.
XVII. Deste modo, somente através do funcionamento da presunção prevista no artigo 8º e 10º do Decreto-lei nº 40/95/M seria possível estabelecer o nexo de causalidade, elo essencial para se falar em acidente de trabalho.
XVII. Ficou provado que a infeliz vítima sofria de doença aterosclerose coronária (resposta ao quesito 5º) e que a aterosclerose coronária que veio a vitimar o trabalhador surgiu na sequência do desenvolvimento lento e progressivo do problema cardíaco de que padecia (resposta ao quesito 7º).
XIX. A aterosclerose coronária trata-se de uma doença degenerativa que, por regra se desenvolve lentamente, e que se caracteriza pelo estreitamento, pela obstrução, dos vasos sanguíneos em decorrência do endurecimento da camada interna da artéria devido à acumulação de gorduras, tendo o Trabalhador sofrido um enfarte agudo do miocárdio causado por essa doença.
XX. Mesmo dos factos provados resulta que a morte não tem qualquer relação de conexão com o trabalho desempenhado pela vítima, mas sim de doença degenerativa - a aterosclerose coronária - que padecia muito antes do evento - o enfarte agudo do miocárdio.
XXI. Não tendo resultado que a aterosclerose coronária que veio a vitimar o trabalhador (conferir resposta ao quesito 7º) tenha sido desenvolvimento da actividade profissional que o mesmo desenvolvia há 11 dias na Sociedade com um horário regular de 8 horas diárias.
XXII. O enfarte agudo do miocárdio surgiu unicamente na sequência do desenvolvimento lento e progressivo de uma determinada doença: aterosclerose coronária.
XXIII. Os Recorridos não conseguiram demonstrar a ocorrência, no local e no tempo de trabalho, de qualquer evento súbito, de natureza exógena, que tivesse sido determinante para o desencadeamento do enfarte, não obstante a existência daquela doença.
XXIV. Os Recorridos não conseguiram demonstrar que o trabalho prestado pela infeliz vítima, naquele dia e nos dias anteriores, ou que as condições em que era prestado esse trabalho, tivessem causado aquela doença, ou que o enfarte do miocárdio tivesse sido determinado por aquele trabalho e pelas condições em que esse trabalho era prestado ao longo da pouca vigência do seu contrato de trabalho.
XXV. Mesmo que se entenda que o referido enfarte do miocárdio ocorreu no local e no tempo de trabalho e que por esta razão se deva presumir (presunção iuris tantum) que o mesmo foi determinado por acidente de trabalho, terá necessariamente de concluir que a prova obtida através da referida presunção foi destruída pela prova produzida em sede de audiência de julgamento, mostrando-se, assim, ilidida tal presunção.
XXVI. A douta sentença recorrida violou o disposto nos artigos 8º e 10º do Decreto-lei nº 40/95/M, devendo por isso ser substituída por outra que considere que o enfarte do miocárdio sofrido pelo Trabalhador não resultou de acidente de trabalho, mas da aterosclerose coronária que padecia, com a consequente absolvição da Recorrente relativamente aos pedidos de compensação formulados nos autos pelos familiares da vítima.

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Não houve contra-alegações.

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Cumpre decidir.

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II- Os Factos

A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
Em 21 de Maio de 2009, após a tentativa de conciliação feita pelo Ministério Público, os familiares beneficiários do sinistrado A, a empregadora Companhia Construção e Engenharia E Limitada, a empreiteira F Limited e a seguradora Companhia de Seguros da China (Macau) S .A. chegaram ao consenso de que a obra do acidente tinha sido subempreitada à Companhia Construção e Engenharia E Limitada pela F Limited, que a F Limited tinha comprado seguros de trabalho junto da seguradora acima referida, e que o sinistrado era empregado da Companhia Construção e Engenharia E Limitada e concordaram na sua retribuição - base. (A)
Porém, na supracitada tentativa de conciliação, a entidade seguradora não concordou com que o acidente em causa era acidente de trabalho, nem com o nexo de causalidade entre o acidente e o dano, pelo que recusou pagar a indemnização. (B)
O sinistrado A nasceu em 31 de Outubro de 1964, e tinha 42 anos na altura do acidente (vide as fls. 50 dos autos). (C)
A Companhia Construção e Engenharia E Limitada contratou o sinistrado A como operário de pintura. (D)
Com referência à referida obra, a entidade patronal Companhia Construção e Engenharia E Limitada comprou junto da Companhia de Seguros da China (Macau) S.A. seguros de acidente de trabalho. (E)
A entidade patronal Companhia Construção e Engenharia E Limitada já transferiu, através da apólice n.º CIM/ECC/XXXX/XXXXX, para a ré a responsabilidade de indemnização pelos danos decorrentes do referido acidente de trabalho. (F)
Da Base instrutória:
Em 11 de Agosto de 2007, pelas 11h30, o sinistrado A estava a rebocar as paredes na loja n.º 2426A em Venetion Macau Resort, ficando num lugar com altura de cerca de 1,2 metros na escada de madeira. Durante o trabalho, o sinistrado sentiu-se mal e os seus colegas apoiaram-no a descer a escada e deitar-se nº chão. (1º)
Mais tarde o sinistrado foi transportado na ambulância ao Centro Hospitalar Conde de S. Januário para tratamento, mas foi verificada a sua morte a caminho. (2º)
De acordo com o parecer médico-legal clínico:
a. A morto por causa da insuficiência cardíaca causada por aterosclerose coronária e enfarte agudo do miocárdio. Além de doenças cardíacas, o morto também sofreu de tuberculose no pulmã o direito e uma extensa aderência pleural;
b. Não se verificam lesões causadas por violência no exame visceral e do exterior do cadáver;
c. Isto é um caso de morte súbita ocorrido no local e no tempo de trabalho. A tensão do trabalho e o cansaço são as causas do presente ataque cardíaco, fazem com que as doenças anteriormente existentes deteriorassem. (3º)
In casu, as despesas do funeral são de 80 a 90 mil patacas e pagas pela irmã mais nova da vítima B (vide as fls. 85 a 91 e 119 dos autos). (4º)
A infeliz vítima sofria de doença aterosclerose coronária. (5º)
Tinha o pulmão direito atingido por tuberculose e uma extensa aderência pleural. (6º)
A aterosclerose coronária que veio a vitimar o trabalhador surgiram na sequência do desenvolvimento lento e progressivo do problema cardíaca de que padecia. (7º)
O sinistrado cobrou um salário diário de MOP$600. (9º)
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III- O Direito
1- Introdução
Olhemos com atenção para a factualidade provada.
A, que sofria de insuficiência cardíaca causada por aterosclerose – mas também de tuberculose com extensa aderência pleural – quando estava a rebocar as paredes de uma loja num centro comercial, montado numa escada com 1,20 de altura, sentiu-se mal e, transportado ao hospital, acabou por falecer no percurso, em virtude de um enfarte do miocárdio.
A sentença considerou este acidente vascular como acidente de trabalho, não reconhecendo à predisposição patológica que apresentava a causa única para o infeliz decesso. Considerou que a prestação do trabalho contribuiu para a ocorrência do ataque cardíaco, ou seja, entendeu que existe nexo de causalidade entre o trabalho e a morte do sinistrado.
A Seguradora, não se conforma com a matéria de facto apurada e, em consequência, começa por invocar erro de julgamento. Tratemos já disso.
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2- Da matéria de facto
No quesito 3º, alínea c), da Base instrutória estava escrito “Isto é um caso de morte súbita ocorrido no local e no tempo de trabalho. A tensão do trabalho e o cansaço são as causas do presente ataque cardíaco, fazem com que as doenças anteriormente existentes deteriorassem e têm um nexo de causalidade com a morte súbita em causa”.
Uma nota primeira: O trecho transcrito é retirado de um parecer de perito médico-legal. Ora, o parecer do perito não tem que ser levado ao questionário (base instrutória) e, em vez disso, pode ser incluído na matéria de facto assente. Evidentemente, não com o sentido de que o conteúdo da declaração é verdadeiro, mas no de que o perito produziu realmente aquela declaração. Ou seja, o perito disse aquilo e tal podia ser especificado porque constante de um documento. Mas a prova do seu conteúdo não podia deixar de ser feita pela parte sobre quem impendia o respectivo ónus, de acordo com a sua própria alegação: os autores. A quesitação naqueles moldes afigura-se-nos, assim, incorrecta e, em vez de contribuir para o esclarecimento da situação, conduz a resultados totalmente dúbios.
Aliás, se bem se atentar, quesitar “de acordo com o parecer médico-legal clínico…” é o mesmo que a priori dar como certo que o parecer contém aquela específica opinião. Por conseguinte, dar como provado que o parecer tem determinado conteúdo não é o mesmo que provar a matéria do conteúdo. Por isso é que a forma como a resposta é dada não surpreende, pois tinha que ser provada exactamente como foi: Que, de acordo com o parecer médico-legal clínico a) A, morto por causa da insuficiência cardíaca causada por aterosclerose coronária e enfarte agudo do miocárdio. Além de doenças cardíacas, o morto também sofreu de tuberculose no pulmão direito e uma extensa aderência pleural; b) Não se verificam lesões causadas por violência no exame visceral e do exterior do cadáver; c). Isto é um caso de morte súbita ocorrido no local e no tempo de trabalho. A tensão do trabalho e o cansaço são as causas do presente ataque cardíaco, fazem com que as doenças anteriormente existentes deteriorassem.
Ou seja, se não é boa técnica perguntar se o parecer disse isto ou aquilo, a resposta afirmativa a essa pergunta não pode provar mais do que era interrogado: que, segundo o parecer, o acidente se deu naqueles termos, condições e efeitos.
Ora, o que se pretendia saber não é o que o parecer diz, mas sim se os factos ali narrados são verdadeiros. E para isso, serviam os quesitos 5º a 9º, cuja prova nos revela que:
- A infeliz vítima sofria de doença aterosclerose coronária. (5º)
- Tinha o pulmão direito atingido por tuberculose e uma extensa aderência pleural. (6º)
- A aterosclerose coronária que veio a vitimar o trabalhador surgiram na sequência do desenvolvimento lento e progressivo do problema cardíaca de que padecia. (7º)
Ora, só este conjunto de factos nos aponta para a causa da morte: acidente vascular, vulgo ataque cardíaco, em consequência de aterosclerose coronária “…que veio a vitimar o trabalhador…”.
O trabalhador, portanto, foi vítima de uma aterosclerose! Esta a causa para o acidente vascular de que o trabalhador veio a falecer. Nada mais está provado, nomeadamente sobre a ligação do serviço que ele estava a prestar ao acidente vascular. Em lado nenhum dos “factos provados”, nem da “base instrutória” está dito que o serviço contribuiu para a triste ocorrência. Repetimos: a matéria do quesito 3º não serve para provar serem verdadeiros os factos constantes da declaração, e serve somente para provar que, na opinião do parecer, os acontecimentos se passaram da maneira ali indicada.
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Segunda nota, e esta sim, relacionada especificamente com a impugnação da matéria provada/não provada. Para a recorrente, das declarações prestadas em audiência pelos Drs. G e D, médicos, não podia resultar resposta negativa ao quesito 8º (em que se perguntava se a morte foi “…causada por essa doença, isto é, por males ou patologias de origem endógena”).
E tem efectivamente razão. Tanto um, como outro destes médicos atribuem à grave insuficiência cardíaca de que padecia (aterosclerose na aorta, em virtude de acumulação de colesterol com a consequente má irrigação do músculo cardíaco) a causa do enfarte. O próprio Dr. D, testemunha do A, disse que foi por causa de todas essas doenças (associava-se na pergunta a aterosclerose a diabetes e colesterol de que o trabalhador sofria) que sobreveio a morte e que esta, em tais circunstâncias, até a dormir podia ocorrer (ver transcrição a fls. 286).
Assim sendo, e reapreciando a prova, nos termos do art. 629º, nº1, al. a) e 2, do CPC, decidimos dar por provada a matéria do quesito 8º.
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3- Do mérito do recurso
Mesmo que este TSI não desse por provada a matéria do quesito 8º da base instrutória, nem por isso, a decisão podia ser outra, tal como passamos a explicar.
Veja-se o que prescreve o art. 10º, nº1, al.a), do DL nº 40/95/M, de 14/08:
“A lesão ou doença contraída pelo trabalhador considera-se, até prova em contrário, consequência de acidente de trabalho quando se verificar:
a) No local e no tempo de trabalho”.
Foi com base neste dispositivo legal que a sentença considerou procedente a acção.
Ora, trata-se de um preceito que faz presumir, até prova em contrário, como acidente de trabalho a lesão ou doença que tiver sido contraída pelo trabalhador no local e no tempo do trabalho.
Claro está que se trata de uma presunção iuris tantum, ilidível, portanto, por prova em contrário. E uma vez presumido, pareceria que a consequência reparadora haveria de ser lógica. Mas não é sempre assim.
Como a jurisprudência tem entendido1, a ligação entre acidente e lesão obtém-se a partir do simples mecanismo presuntivo previsto na norma. Mas o nexo causal entre a lesão e a incapacidade já escapa à presunção e obedece às regras gerais sobre a prova, que no caso ao sinistrado incumbia fazer2. Ora, os autores não foram capazes de demonstrar a causalidade entre acidente e incapacidade, justamente por não terem provado, como lhe competia, a existência de acidente de trabalho. Acidente de trabalho, claro, encarado como elemento naturalístico, inesperado, de ordem exterior ao trabalhador.
Realmente, nada aconteceu de anormal na prestação de serviço que preencha a noção de um acidente de trabalho propriamente dito do qual possa extrair-se a presunção de que a doença ou a incapacidade se consideram consequência dele (art. 10º, nº1, al.a), cit.). Apenas se sabe que o trabalhador se encontrava a rebocar uma parede em cima de uma escada, se sentiu mal, que foi ajudado pelos colegas de serviço e transportado ao hospital onde chegou já sem vida por causa de um enfarte de miocárdio. Ou seja, nenhuma conexão com o trabalho foi demonstrado pelos autores. E assim sendo, a acção estava votada ao insucesso fatalmente, fazendo cair por terra a dita presunção (neste sentido, a jurisprudência que emerge do ac. do TSI de 23/07/2009, produzido no âmbito do Processo nº 348/2009 não presta nenhum socorro aos autores, uma vez que a situação de facto é nesse caso diferente: o trabalhador teve além um enfarte do miocárdio no momento em que desenvolvia um esforço físico de transporte de mercadorias). No nosso caso, porém, nada se sabe sobre o modo concreto como as coisas se passaram. Apenas sabemos, repetimos, que tudo se passou no local e no tempo de trabalho, mas sem a prova de um qualquer quid que tornasse mais perigoso, mais grave, mais esforçado, mais stressante, mais pesado, o serviço que estava a ser desenvolvido. Logo, nunca poderíamos afirmar com segurança a existência de causa externa para a ocorrência só com essa singela factualidade, tal como dizíamos atrás. Ou seja, com esses factos, nunca a acção procederia e muito menos depois de o quesito 7º ter sido provado e, por essa razão, devermos considerar que foi a “aterosclerose coronária que veio a vitimar o trabalhador” (negrito nosso)3.
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Mas, a solução torna-se mais evidente com a alteração da matéria de facto a que acima procedemos.
Na verdade, ao termos por adquirido que o falecimento só ocorreu devido à doença de que o trabalhador padecia, isto é, por males ou patologias de origem endógena (quesito 8º dado por provado), então fica ao léu a causa do acidente e, consequentemente, exposto o nexo causal entre acidente e resultado final danoso (no caso, a morte).
Quer dizer, não há aqui concorrência de causas de onde possamos concluir que o mal endógeno (patologia anterior) foi activado pela causa exógena (trabalho).
Se essa concorrência existisse, sim, a reparação ocorreria ao abrigo do art. 8º do mesmo diploma segundo o qual “A predisposição patológica da vítima de um acidente não exclui o direito á reparação integral, salvo quando tiver sido causa única da lesão ou doença ou tiver sido dolosamente ocultada”. Mas, face à prova feita ao art. 7º da base instrutória e, mais especificamente ao quesito 8º, não temos agora dúvidas de que o ataque cardíaco se verificou no tempo e local de trabalho por mero capricho da coincidência e que ele foi a causa única da morte: o trabalhador morreu por causa da doença de que padecia e não por estar a trabalhar.
Neste sentido, só podemos dar procedência ao recurso.
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IV- Decidindo
Nos termos expostos, acordam em conceder provimento ao recurso e revogar a sentença recorrida e, em consequência, julgar totalmente improcedente a acção.
Sem custas, dada a isenção prevista no art. 2º, nº1, al, h), do RCT.

TSI, 29 / 09 / 2011.

_________________________
José Cândido de Pinho
(Relator)

_________________________
Lai Kin Hong
(Primeiro Juiz-Adjunto)

_________________________
Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
1 Referimo-nos à jurisprudência portuguesa produzida sobre casos semelhantes e a partir de preceitos em tudo idênticos aos que na legislação da RAEM influenciam a decisão.
2 Neste sentido, o Ac. do STJ de 19/11/2008, Proc. nº 08S2466: “V – A presunção constante do n.º 1, do artigo 7.º, do RLAT – de acordo com a qual a lesão constatada no local e no tempo de trabalho se presume, até prova em contrário, consequência de acidente de trabalho –, assenta a sua razão de ser na constatação imediata ou temporalmente próxima, de manifestações ou sinais aparentes entre o acidente e a lesão (perturbação ou doença), que justificam, na visão da lei e por razões de índole prática, baseadas na normalidade das coisas e da experiência da vida, o benefício atribuído ao sinistrado (ou aos seus beneficiários), a nível de prova, dispensando-os da demonstração directa do efectivo nexo causal entre o acidente e a lesão ou mesmo do concreto acidente gerador da lesão.
VI – As referidas presunções não abrangem o nexo de causalidade entre as lesões corporais, perturbações funcionais ou doenças contraídas no acidente e a redução da capacidade de trabalho ou de ganho, ou a morte da vítima, sendo a sua demonstração um ónus do sinistrado ou seus beneficiários”.
Ver ainda Ac. do STJ de 25/06/2008, Proc. nº 08S0236.
3 Até por esta razão, em nossa opiinião haveria contradição entre factos provados e decisão tomada.
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