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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A intentou acção declarativa com processo ordinário contra B, pedindo a anulação ou a declaração de nulidade das deliberações tomadas na reunião do conselho de administração da ré de 4 de Maio de 2009 e cancelamento dos respectivos registos na Conservatória do Registo Comercial.
Por despacho do Ex.mo Juiz foi julgada improcedente a questão atinente à irregularidade do mandato outorgado a favor do mandatário da ré.
Por sentença, foi a ré absolvida da instância com fundamento em que as deliberações do conselho de administração das sociedades não são directamente impugnáveis perante os tribunais.
O Tribunal de Segunda Instância (TSI) concedeu provimento ao recurso interposto pela autora do mencionado despacho, por Acórdão de 10 de Maio de 2012, declarando a irregularidade de representação e incapacidade judiciária da ré.
E não conheceu do recurso da sentença, por o considerar prejudicado face à decisão do recurso interlocutório.
Inconformada recorre a ré B para este Tribunal de Última Instância (TUI), pedindo a revogação do Acórdão recorrido.
Para tal, formulou a ré B as seguintes conclusões úteis:
- As normas dos n.ºs 3 e 4, do artigo 467°, do Cód. Comercial, que estabelecem a regra do voto maioritário, são imperativas, e consequentemente é nula qualquer estipulação em contrário, ainda que se trate de regra estatutária.
- Assim, são nulas as regras dos artigos 21.°, al. o), e 25°, n.º 2 (bem como a do art. 23°, n.º 1, aI. B)), dos estatutos da Ré, ora Recorrente, na medida em que exigem o voto unânime dos membros do conselho de administração, em violação do art. 467°/4 do Cód. Com.,
- Pelo que é válida a deliberação de 04/05/2009, bem como a procuração outorgada nos autos com base nos poderes conferidos por aquela deliberação.
- Decidindo de outra forma, o Acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 467°, n.ºs 3 e 4, do Cód. Comercial, e no artigo 8°, n.ºs 1 e 2, do Cód. Civil.
- De qualquer modo, a deliberação de 29/12/2009 que conferiu os poderes que estão na base do mandato da signatária foi aprovada por unanimidade dos administradores em efectividade de funções, porque em 29/12/2009 C estava suspenso do conselho de administração por sentença proferida em 09/11/2009, sendo então aquele órgão constituído por dois membros apenas.
- Uma vez que o artigo 25°, n° 2, dos Estatutos estabelece que as deliberações relativas, entre outras, à representação da sociedade em juízo "só serão válidas quando tomadas por unanimidade dos votos de todos os administradores", a deliberação de 29/12/2009, que está na base da outorga de poderes forenses à signatária, foi tomada pela unanimidade dos administradores e não violou os Estatutos.

II – Os factos
Os Tribunais de 1.ª e Segunda Instâncias consideram provados os seguintes factos:
  a) Com base na acta de 23.04.2004, XXXX/XXXXXXXX, foi inscrito que os administradores da Ré eram D, C e E;
  b) Com base na acta de 06.06.2006, foram inscritos os seguintes factos:
  b1) XXXX/XXXXXXXX destituídos D, C e E;
  b2) XXXX/XXXXXXXX reconduzido C;
  b3) XXXX/XXXXXXXX nomeados administradores F e G;
  c) Com base na acta de 01.09.2008 foram inscritos os seguintes factos:
  c1) XXXX e XXXX/XXXXXXXX inscrito o cancelamento da recondução da recondução de C e que este cessa funções;
  c2) XXXX/XXXXXXXX inscrito a cessação de funções de F e G;
  c3) XXXX e XX/XXXXXXXX inscreve a nova administração e alteração do pacto.
  d) Pela XXXX/XXXXXXXX foi inscrita a providência cautelar onde se pede a suspensão de todas as deliberações tomadas na assembleia ordinária de 01.09.2008. A XXXX/XXXXXXXX corresponde à inscrição de que foi instaurada a acção a que se encontra apensa a providência cautelar referida a qual corre termos neste tribunal sob o nº CV3-08-0061-CAO;
  e) Pela XXXX/XXXXXXXX foi inscrita que foi instaurada acção em que se pede a declaração de nulidade das deliberações tomadas na assembleia geral extraordinária de 06.06.2006 a qual segue termos neste tribunal sob o nº CV2-08-0067-CAO na qual ainda não foi proferida decisão.
  
III – O Direito
1. As questões a resolver
São duas as questões a resolver.
A primeira a de saber se, face à lei ou aos estatutos da sociedade ré, a deliberação do seu órgão de administração, relativa à representação da sociedade em juízo, é tomada por unanimidade ou por maioria.
A segunda, suposta a resposta à questão anterior a favor da unanimidade, é a de saber se, face às vicissitudes judiciais de suspensão de deliberações atinentes à nomeação e destituição de administradores, se deve considerar que as deliberações impugnadas nos autos foram tomadas por unanimidade.

2. Representação das sociedades anónimas
Fundamentalmente, compete ao conselho de administração das sociedades anónimas gerir as actividades da sociedade e representá-la, como dispõe o n.º 1 do artigo 465.º do Código Comercial.
O artigo 467.º do Código Comercial estatui sobre o quorum necessário para o conselho de administração poder deliberar (quorum constitutivo). Exige a presença ou representação da maioria dos seus membros (n.º 3).
E também dispõe sobre o quorum necessário para o conselho de administração aprovar deliberações (quorum deliberativo). Exige o voto da maioria dos votos dos administradores presentes ou representados (n.º 4).
Relativamente a preceitos semelhantes do Código das Sociedades Comerciais português a doutrina divide-se quanto a saber se a norma relativa ao quorum deliberativo é imperativa ou se pode ser afastada pelos estatutos (norma de carácter supletivo).
Relativamente a uma das competências do conselho de administração, a representação da sociedade, estatui o artigo 468.º, n.º 1 do mesmo Código:
“1. Os administradores exercem conjuntamente os poderes de representação, ficando a sociedade vinculada, salvo disposição estatutária em contrário, pelos negócios jurídicos concluídos pela maioria dos administradores ou por eles ratificados”.
A primeira parte da norma significa que todos os administradores têm a possibilidade de exercer esse poder de representação.
A segunda parte da norma respeita à vinculação da sociedade perante terceiros. Ela obriga-se desde que os negócios jurídicos sejam concluídos pela maioria dos administradores ou por eles ratificados.
Relativamente a esta norma há uma significativa diferença entre os Códigos português e de Macau.
O Código português estabelece que os estatutos da sociedade podem fixar um número inferior à maioria dos administradores para vincular a sociedade perante terceiros. Isto quer dizer que os estatutos podem estabelecer um número inferior, mas não um número superior.
Já o Código de Macau não contém esta limitação, dizendo simplesmente que a regra da maioria pode ser afastada por preceito estatutário.
Sendo o Código português anterior ao de Macau, e conhecendo o legislador de Macau o Código português, uma das suas fontes de inspiração, parece razoável supor que pretendeu que os estatutos da sociedade pudessem prever a necessidade de um número de administradores superior à simples maioria, para vincular a sociedade perante terceiros.
Relativamente às deliberações atinentes à constituição de mandatários da sociedade para a prática de quaisquer actos e para representar a sociedade em juízo e fora dele, os estatutos exigem para o quorum constitutivo a presença ou representação de todos os membros do conselho de administração (artigo 25.º, n.º 1).
E para o quorum deliberativo dessas mesmas deliberações os estatutos exigem que as deliberações sejam tomadas pela unanimidade dos votos de todos os administradores (artigo 25.º, n.º 2).
Quanto à vinculação da sociedade perante terceiros, os estatutos exigem a assinatura conjunta de três administradores no que respeita à constituição de mandatários da sociedade para a prática de quaisquer actos e para representar a sociedade em juízo e fora dele [artigo 23.º, alínea b)].
Como se disse, a doutrina do Código das Sociedades Comerciais português divide-se quanto a saber se a norma relativa ao quorum deliberativo do conselho de administração é imperativa ou se pode ser afastada pelos estatutos.
A autora invoca no sentido imperativo da norma JOSÉ ENGRÁCIA ANTUNES1, dizendo que este discute o assunto em abstracto. Não é exacto. O autor discute a questão em concreto, mas numa matéria completamente diversa da que nos ocupa. Ele trata dos princípios da unanimidade e maioritário, mas apenas nas deliberações dos sócios, isto é, na assembleia geral e nunca nas deliberações do conselho de administração.
ANTÓNIO PEREIRA DE ALMEIDA2, entende que a regra é imperativa, com o único argumento de que “a imposição de maiorias qualificadas ou unanimidade para certas deliberações em órgãos executivos poderia determinar a sua paralisação com prejuízo para a sociedade”.
PAULO OLAVO CUNHA3defende a regra da imperatividade com um argumento semelhante ao anterior e com fundamento na interpretação literal, embora admitindo derrogações ao princípio, desde que as mesmas não conduzam a situações de impasse na gestão.
PEDRO MAIA4 aceita que o argumento literal pode adaptar-se tanto à tese que sustenta a imperatividade legal como à tese que defende o seu carácter supletivo. Mas defende a regra da imperatividade com os inconvenientes do funcionamento conjunto por unanimidade.
Pois bem entendemos que os preceitos dos n. os 3 e 4 do artigo 467.º do Código Comercial - dispondo que as deliberações do conselho são válidas com a presença da maioria dos administradores presentes ou representados e que as deliberações só são válidas se tomadas pela maioria dos administradores presentes ou representados – não são imperativos, podendo ser afastados pelos estatutos da sociedade.
Como explica a voz particularmente autorizada de RAÚL VENTURA5, referindo-se ao preceito correspondente ao artigo 467.º, n.º 4, do Código Comercial de Macau, “O art. 410.º, n.º 7, não ressalva as estipulações contratuais que exijam para todas ou algumas deliberações, maioria qualificada, ao contrário do que faz, para as deliberações de sócios em assembleia geral, o art. 386.º, n.º 1. A favor do carácter imperativo do disposto no n.º 7, pode argumentar-se com a facilidade de gestão da sociedade, que a exigência de maioria qualificada pode entravar; a analogia com as deliberações dos sócios seria afastada pela diferença entre um órgão – a assembleia – que só esporadicamente reúne e delibera sobre alguns assuntos, e um órgão de competência permanente e geral. No sentido contrário, dir-se-á, antes de mais, que a norma do art.º 410.º, n.º 7, se aplica para fazer calcular a maioria pelo número de administradores votantes, em vez do número estatutário, e que, portanto, não intenta proibir a maioria qualificada. Invocar-se-á ainda a vantagem de, pela qualificação da maioria, dar eficácia, embora negativa, aos votos de administradores eleitos por minorias de accionistas através de regras especiais de eleição. A segunda ordem de argumentos impressiona-me mais fortemente, e uma vez que a derrogação só poderia ser efectuada pelo contrato de sociedade, parece que deve ser deixada aos accionistas a ponderação entre a facilidade de tomada de deliberações e a ressalva de eventuais interesses dalgum grupo deles”.
No mesmo sentido se pronunciou LUÍS BRITO CORREIA6.
A favor do carácter supletivo da norma do artigo 467.º, n.º 4, do Código Comercial, impressiona-nos sobretudo o facto de que “os accionistas hão-de saber se lhes convém ou não o funcionamento por unanimidade e que é a eles que cabe ponderar as suas vantagens e inconvenientes da fixação desse quórum deliberativo ao conselho de administração”7.
Por outro lado, pode haver interesse estatutário em proteger determinadas minorias de sócios e, por conseguinte, os votos dos administradores que representam tais minorias.
Daqui resulta que as deliberações do conselho de administração da ré atinentes à representação da sociedade em juízo e fora dele tinham de ser tomadas por unanimidade dos administradores, vistos os estatutos o exigirem.

3. O número de membros do conselho de administração da ré
Resta apurar se, face às vicissitudes judiciais de suspensão de deliberações atinentes à nomeação e destituição de administradores, se deve considerar que as deliberações impugnadas nos autos foram tomadas por unanimidade.
Quanto a esta questão também não merece censura o acórdão recorrido.
A deliberação na qual foi ratificada a deliberação conferindo poderes forenses a advogado e concordando com o substabelecimento de poderes pelo advogado constituído à advogada dos autos, foi tomada por dois dos membros do conselho de administração. Ou seja, não foi por unanimidade. Não releva o facto de o terceiro membro do conselho estar judicialmente suspenso das suas funções. Esta circunstância não reduz o número dos membros do conselho de administração.
Claro que a exigência da unanimidade dos membros de um órgão societário, quanto a determinadas deliberações, pode reduzir a sua eficácia. Mas, certamente, os sócios fundadores tiveram essa percepção. Só que relevaram mais a necessidade de concordância de todos os membros para a tomada de decisões importantes.
E não há o perigo de a sociedade não ter quem a represente, já que a lei processual dá solução à questão (artigo 53.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
O recurso é, pois, improcedente.

IV – Decisão
Face ao expendido, negam provimento ao recurso.
Custas pela recorrente.
Macau, 5 de Dezembro de 2012.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
     1 JOSÉ ENGRÁCIA ANTUNES, O artigo 490.º do CSC e a Lei Fundamental, in Estudos em Comemoração dos Cinco Anos (1995-2000) da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Coimbra Editora, 2001, p. 208 e segs.
     2 ANTÓNIO PEREIRA DE ALMEIDA, Sociedades Comerciais, Coimbra Editora, 3.ª edição, 2003, p. 311.
     3 PAULO OLAVO CUNHA, Direito das Sociedades Comerciais, Coimbra, Almedina, 2.ª edição, 2006, p. 594 e 595.
     4 PEDRO MAIA, Função e Funcionamento do Conselho de Administração da Sociedade Anónima, Universidade de Coimbra, Stvdia Ivridica, 2002, p. 215 e segs.
     5 RAÚL VENTURA, Estudos Vários Sobre Sociedades Anónimas, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, Coimbra, Almedina, 1992, p. 549 e 550
     6 LUÍS BRITO CORREIA, Deliberações do Conselho de Administração de Sociedades Anónimas, in Problemas de Direito das Sociedades, Coimbra, Almedina, obra colectiva, 2002, p. 416.
     7 PEDRO MAIA, Função e Funcionamento…, p. 217.
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1
Processo n.º 71/2012