Processo n.º 477/2011
(Rcurso cível e laboral)
Data : 13/Outubro/2011
ASSUNTOS:
- Acidente de trabalho
- Presdisposição patológica; hipertensão
- Presunção do acidente de trabalho
- Presunção do resultado lesivo como consequência do acidente de trabalho
SUMÁRIO:
1. Do conjunto dos artigos 3º, n.º 1, a), 8º e 10º, n.º 1, a), do DL40/95/M decorre uma dupla presunção, não só da verificação de um acidente de trabalho, mas ainda entre o nexo causal entre as lesões observadas no local e tempo de trabalho e o resultado incapacidade e/ou morte.
2. Assim, se um trabalhador foi limpar um ar condicionado, no tempo e local de trabalho, trabalho de acid cleaner, envolvendo o manuseameto de ácido clorídrico, e foi encontrado desmaiado, vindo a morrer por ruptura de vasos cerebrais, embora sofresse de hipertensão, não estando comprovado que esta predisposição patológica tenha sido a causa única do acidente, presume-se mais do que a simples relação causal entre o acidente (ocorrência lesiva) e as lesões, devendo partir-se da lesão observada para presumir-se todo o «acidente de trabalho» enquanto facto jurídico complexo, apto a desencadear o direito à reparação.
3. Presumir-se-á que as lesões que conduziram à morte foram consequência do acidente de trabalho, cabendo ao empregador (ou sua seguradora) a prova do contrário, p. ex., que foi agredido ou acometido de doença súbita.
O Relator,
João A. G. Gil de Oliveira
Processo n.º 477/2011
(Recurso Civil e Laboral)
Data: 13/Outubro/2011
Recorrente: Companhia de Seguros A
Recorridos (os familiares da vítima): B
C
D
E
F
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
Companhia de Seguros A, Ré nos autos à margem referenciados e aí melhor identificada,vem interpor recurso da sentença aí proferida, nos termos da qual foi a ora recorrente condenada a pagar à 1ª autora a importância de MOP$420,000.00, bem como a quantia de MOP$28,000.00, às 2ª, 3ª e 4ª autoras a importância de MOP$58,333.33 a cada uma delas, e a quantia de MOP$105,000.00 ao 5° autor, respectivos juros contados desde o trânsito em julgado da sentença, tudo decorrente do facto de ter sido considerado o acidente mortal sofrido pelo trabalhador G como acidente de trabalho.
Para tanto alega em síntese conclusiva:
Resulta claramente que a decisão recorrida, interpretada de per si, com a experiência comum e com os elementos dos autos nela acolhidos, se encontra inquinada do vício de erro na apreciação da prova, tendo violado o disposto no art. 8° do Decreto-Lei n° 40/95/M, de 14 de Agosto, e que após a reapreciação da prova por parte desse Venerando Tribunal da Segunda Instância, deverá ser proferido douto Acórdão que considere a rutura do vaso cerebral e hemorragia celebrai sofrida pelo Trabalhador não como consequência de acidente de trabalho, com a consequente absolvição da Recorrente relativamente aos pedidos de compensação formulados nos autos pelos familiares da vítima;
Ao analisar os factos e fazendo a aplicação do direito, a secção da sentença fundamental para a decisão que veio a ser proferida - 4. Análise dos factos e aplicação da lei:, 4.1 Acidente de trabalho e 4.2 Responsabilidade pela indemnização - veio a dar como assente que, a) a morte do Trabalhador foi devido a rutura do vaso cerebral e hemorragia celebrai sofrida pelo mesmo em virtude de hipertensão de que padecia; b) a morte do Trabalhador foi induzida pelo ácido clorídrico com que teve o mesmo contacto antes do seu desmaio, porquanto a inalação de tal gás pode provocar reacção humana incluindo dores de cabeça e aceleração do batimento cardíaco; c) quando aconteceu o acidente, o Trabalhador estava a trabalhar na sala dos motores, que só tinha uma ventoinha para efeitos de ventilação; d) a rutura do vaso cerebral e hemorragia celebrai sofrida pelo Trabalhador foi provocada pelo ambiente de trabalho em que trabalhava; e) existe nexo de causalidade entre a lesão sofrida pelo Trabalhador e o trabalho; n não se demonstrou que a doença de que padecia o Trabalhador foi a única causa da sua morte; e g) não existe a descaracterização do acidente prevista no art. 7° do Decreto-Lei n° 40/95/M, reconhecendo-se o acidente dos autos como de trabalho;
No vertente processo, foi determinada a documentação das declarações prestadas na audiência de julgamento, existindo por isso suporte de gravação, o que permitirá ao douto Tribunal de Segunda Instância melhor avaliar, e decidir, sobre o ora invocado erro na apreciação da prova, aqui expressamente se requerendo a reapreciação da matéria de facto, nos termos admitidos no art. 629º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi art. 1º do Código de Processo do Trabalho;
A Recorrente, ao invocar no presente recurso o erro na apreciação da prova, que, na sua óptica, inquina a decisão proferida pelo douto Tribunal a quo, não pretende apresentar apenas uma simples discordância relativamente à interpretação dos factos feita por aquele douto Tribunal, tendo bem presente o dispositivo do art. 558º do Código de Processo Civil, e a natureza insindicável da livre convicção relativamente à apreciação da prova efectuada pelo Tribunal recorrido, e ainda estando bem ciente da jurisprudência afirmada nos Tribunais Superiores da RAEM, entendendo a Recorrente que tal se verifica na situação dos autos, e que o vício apontado à decisão recorrida resulta dos próprios elementos constantes dos autos, por si só ou com recurso às regras da experiência comum;
O Perito Médico afirmou que "Quanto ao ácido clorídrico não tem uma relação directa com a hemorragia cerebral, talvez o sítio onde ele trabalhava, a inalação desses ares pode provocar um mau estar, mas o acido clorídrico directamente nada tem a ver com a hemorragia.”, que “A hemorragia cerebral é a causa da morte e pode estar relacionada com a hipertensão, agora trabalhando nessa ambiente de trabalho com ácido clorídrico ou sem ácido clorídrico, não tem relação directa, foi só por a hora de expediente, ele estava a trabalhar quando ocorreu a hemorragia cerebral, por isso eu entendo que foi por estar a trabalhar e por isso há esse nexo de causalidade. " que "Através da autopsia detectou-se que ele tinha hipertensão e por isso também se constatou essa situação das veias estarem endurecidas." e que o ácido clorídrico "É um gás bastante irritante, que irrita e num local fechado quando uma pessoa inala sente-se mal disposta, mas não se pode fazer a ligação com a hemorragia que ele sofreu.";
Ou seja, a não ser o facto do acidente ter sido acometido ao Trabalhador no local e horário de trabalho, não estabeleceu o Perito Médico qualquer outra conexão entre a hemorrogia cerebral sofrida pelo Trabalhador e a morte que o veio a vitimar;
A testemunha Dr. H afirmou que "Basicamente o mais importante é que não há uma relação entre a causa da morte e os efeitos eventualmente nocivos que a manipulação desse produto, ácido clorídrico pode provocar", "Porque tem efeitos diferentes, não há uma relação porque os efeitos nocivos que eventualmente o ácido clorídrico pode provocar, não estão conectados com os sintomas da hipertensão." que (o ácido clorídrico) "O produto não é, não está indicado de provocar isso, o produto tem um efeito corrosivo, ou seja, queima, portanto se inalado queima os pulmões, quer ingerido queima o estômago, quando tem contacto com a pele queima a pele, em contacto com os olhos queima os olhos, tem um efeito corrosivo, não tem efeito de entrar na circulação, senão veja, todos nós temos acido clorídrico no nosso estômago, 0,5% de concentração dentro do nosso estômago, e o nosso estômago consegue digerir." que "A inalação queima, se queima .....”, que "Não foi nada detectado na autópsia.", que "Se fosse nocivo não era vendável, se fosse nocivo não era posto à venda em toda a parte do mundo, todos produtos são nocivos, o que é preciso ter cuidado necessário para fazer a protecção, quando falamos de 30 a 40% significa que 30 ou 40% é acido clorídrico, a outra parte é um estabilizador que é um produto que não deixa o acido clorídrico libertar-se por isso é que é possível trabalhar com ele e vender em objectos fechados., e que "Quando se fala do bater do coração isso significa é um sintoma para chamar a atenção, o efeito do produto é queimar a pálpebra pulmonar é uma forma de chamar atenção, se você estiver com poucos cuidados e começar a sentir queimar o ps pulmões difíceis, a queimar e o coração a bater rapidamente, atenção corre o risco de estar intoxicado, o produto não vai ao coração.";
Ou seja, do depoimento da testemunha Dr. H se retirou a constatação que o ácido clorídrico, se inalado pelo ser humano, tem como resultado queimar qualquer órgão da pessoa exposta a essa inalação, o que no presente caso não se verificou ter acontecido, por inexistir qualquer sinal ou vestígio de queimadura na autópsia feita ao Trabalhador falecido;
A testemunha I afirmou que era colega de trabalho do falecido G, no mesmo local desde há um ano atrás, que estava a trabalhar com ele no dia do acidente, que "Depois de ouvir as directrizes superiores, começamos a trabalhar juntos e entretanto ele desmaiou.", que ele, testemunha, não se sentiu mal, que quando a máquina está a proceder à lavagem continuam dentro da sala das máquinas, mas que ficam um pouco distanciados a ver, e que nesse local há circulação de ar, que quando fazem a mistura do produto, o cheiro é irritante, e que depois de inalar não tem problema de tosse ou vómito, e que não constatou esse tipo de situação no colega falecido, e que só de vez em quando é que faziam isso, às vezes nem sequer uma vez por mês, às vezes só uma vez durante vários meses, que o local tinha um aparelho que produz ar, ou seja, uma ventoinha de tamanho grande, que produzia ar fresco e tinha exaustor, e que não achava que era abafado quando entrava na sala das máquinas, e que havia circulação de ar;
Ou seja, do depoimento da testemunha I, colega de trabalho da vítima e presente no mesmo local aquando da ocorrência do acidente, se retira que não sentiu qualquer mal-estar naquele dia do infeliz acidente, que também não verificou qualquer estado de tosse ou vómitos no colega falecido, e que a sala das máquinas onde trabalhavam era arejada e provida de ar fresco e circulação de ar;
A testemunha Inspector da DSAL afirmou que, até ao momento presente, não tem conhecimento de ter ocorrido qualquer acidente mortal relacionado com a inalação de gases em instalações de ar condicionados;
Com a reapreciação da matéria de facto, e designadamente com a análise da prova testemunhal efectuada nos autos, defende a Recorrente que não ficou minimamente demonstrado que a morte do Trabalhador foi induzida pelo ácido clorídrico com que teve o mesmo contacto antes do seu desmaio, porquanto a inalação de tal gás pode provocar reacção humana incluindo dores de cabeça e aceleração do batimento cardíaco, ou que inexistia no local de trabalho suficiente ventilação;
Antes pelo contrário, ficou provado que a morte do infeliz Trabalhador ocorreu tão somente pelos graves problemas de hipertensão de que padecia há já bastante tempo, sendo tal razão a causa única da rutura do vaso cerebral e hemorragia celebrai que o veio a vitimar, e não sendo a sua predisposição patológica induzida pelas condições e ambiente de trabalho, as quais, ín casu, se revelaram perfeitamente inócuas para o resultado morte que ocorreu, assim se afastando a aplicação do disposto no art. 8° do Decreto-Lei n° 40/9S/M, e bem assim da presunção prevista no art. 10° do mesmo diploma legal.
Encontrando-se por isso a douta sentença recorrida inquinada do vício de erro na apreciação da prova, tendo violado o disposto no art. 8° do Decreto-Lei n° 40/9S/M, de 14 de Agosto, e que após a reapreciação da prova por parte deste Tribunal da Segunda Instância deverá ser proferido douto Acórdão que considere a rutura do vaso cerebral e hemorragia celebral sofrida pelo Trabalhador não como consequência de acidente de trabalho, com a consequente absolvição da recorrente relativamente aos pedidos de compensação formulados nos autos pelos familiares da vitima.
O Digno Magistrado do MP contra alega, dizendo em síntese:
O Recorrente desvaloriza o parecer do perito médico legal e valoriza as declarações das suas testemunhas o que é uma manifesta violação ao princípio de livre apreciação da prova;
No âmbito de acidente de trabalho, desde que a causa está relacionado com o trabalho, tem direito à reparação mesmo havendo predisposição patológica nos termos do art. 8º do DL n.º 40/95/M;
Aliás o conceito de acidente de trabalho incluiu aqueles que sejam causados indirectamente pelo trabalho;
A jurisprudência num caso análogo entendeu que “Assim, se um dado trabalhador tem um enfarte do miocárdio, enquanto está a desenvolver esforço físico de transporte de mercadorias, embora portador de uma predisposição para tal doença, não provando o empregador que o enfarte se ficou devendo, exclusivamente, a essa doença, tendo-se até comprovado que o esforço físico pode contribuir para a efusão da doença em causa, o acidente de trabalho não se mostra descaracterizado.”;
Mutatis mutandis, o referido é aplicável ao presente caso.
Nesses termos entende dever ser rejeitado o recurso por ser manifestamente improcedente.
Foram colhidos os vistos legais.
II - FACTOS
Vêm provados os factos seguintes:
Após ter discutido e realizado a audiência de julgamento, o presente Tribunal deu por provados os factos seguintes:
Factos provados:
O falecido G foi contratado pela Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A. em regime prolongado, exercendo funções como técnico na secção de ar condicionado do departamento de engenharia mecânica e manutenção do referido sociedade, sob as suas direcção e instruções. (A)
O trabalho do falecido era responsável pela reparação, manutenção e verificação dos aparelhos de ar condicionado existentes no hotel XX e casinos, com quantidade de mais de mil unidades. (B)
À data de acidente, o falecido auferia um salário mensal de MOP9.270, 00. (C)
No dia 12 de Outubro de 2008, por volta das 8H30 da manhã, o falecido e seu colega I receberam as instruções de trabalho dadas pelo subchefe da secção, J, tendo-se deslocado, entre 8H35 e 8H40, à sala de maquinas n.º3, para o fim de limpar o radiador condensador do aparelho de refrigeração de gela-água n.º8, do ar condicionado central. (D)
Concluído o processo de adesão do dito acid cleaner por volta de 3 a 4 minutes, depois de passados 1 a 2 minutos, o falecido foi descoberto que tinha desmaiado na sala de maquinas. (E)
O mesmo foi transportado ao Hospital Kiang Wu para socorro e tratamento e, veio a falecer no dia 19 de Outubro de 2008, pelas 20H45 da noite. (fls. 41 a 43 dos autos) (F)
À data de acidente, tinha 48 anos de idade. (G)
As três filhas do falecido C, D e E tinham respectivamente 17, 14 e 17 anos de idade, ao momento da morte do falecido, e B, como esposa do falecido. (H)
De acordo com o auto de não conciliação, tendo a esposa do falecido declarado que a STDM já tinha pago integralmente as despesas médicas. (I)
Através da apólice n.º CIM/EGI/2008/000442, tendo a STDM, junto da Companhia de Seguros A., adquirido o seguro de acidente de trabalho para o seu empregado (Employees’Compensation Insurance); segundo o seu âmbito do seguro, está de acordo com os teores previstos na lei. (J)
*
Factos constantes da base instrutória
De acordo com o parecer de médico-legal clínico, a morte do falecido foi devido à doença de ruptura súbita de vasos sanguíneos cerebrais resultante de hipertensão. (1)
O falecido, enquanto vivo, não tinha história de sofrimento de hipertensão. (2)
A causa da supracitada doença foi provocada pelo estado do trabalho do falecido. (3)
Na altura do acidente, o falecido trabalhava dentro da sala de maquinas onde só há uma ventoinha para efeitos de ventilação. (4)
De acordo com o manual de instruções de produtos, da empresa K fornecido pela entidade empregadora, o dito acid cleaner utilizado pelo falecido contém como substância, principalmente o ácido clorídrico, que pode causar ao corpo humano, após a inalação do seu gás, as reacções tais como dores de cabeça e aceleração cardíaca. (5)
Os restos mortais do falecido foram transportados pela sua família para o Interior da China para tratamento. (6)
Para o fim de funeral, a família do falecido despendeu um valor total de MOP34,700 (33.800+900) e RMB3.130, equivalente ao valor total de MOP38.382,00, mas o respectivo montante não foi pago. (7)
O 5º autor é o pai do falecido e este, enquanto vivo, lhe pagava periodicamente os alimentos. (8)
Procedendo a operação inerentes à manutenção de aparelho de ar-condicionado, é utilizada uma calda constituída essencialmente por ácido clorídrico diluído em água. (10)
Em proporção de 1:20. (11)
A qual era introduzida nas máquinas através de um tubo. (12)
O TLV-TWA do ácido clorídrico é de 5ppm (a concentração máxima admissível em 8 horas de trabalho, cfr. fls. 21 a 26) (14)
Porquanto no dia de factos, a vítima falecida só esteve em contacto com o mencionado produto cerca de 5 ou 10 minutos. (15)
Decorreu do Relatório de Autópsia constante dos autos que a vítima falecida apresentava coração dilatado e veias endurecidas, que são também sintomas de hipertensão. (16)
III - FUNDAMENTOS
1. O objecto do presente recurso passa fundamentalmente por saber se neste caso concreto existe acidente de trabalho indemnizável à luz do D.L n.º40/95/M, actualizado pela Ordem Administrativa n.º48/2006 ou se , ao invés, a lesão que gerou a incapacidade, embora observada na tempo e local do trabalho, resulta exclusivamente de uma doença de que o sinistrado já padecia devendo o caso ser descaracterizado como acidente de trabalho.
Importa ter presente que a recorrente suscita ainda uma reavaliação da matéria de facto de forma a convencer que o enfarte sobreveio por causa não laboral, pretendendo convencer de uma tese sobre uma pré-disposição da vítima a tal doença e que ela poderia ocorrer independentemente da sua prestação funcional aquando no momento e local de trabalho.
2. Neste domínio - da matéria de facto - é certo até que invoca o artigo 629º do CPC (Código de Processo Civil), aplicável ex vi artigo 1º do CPT (Código de Processo de Trabalho) e faz louvável resenha das transcrições pertinentes relativamente à prova que pretende seja analisada.
Mas se cumpre os requisitos relativos ao disposto na al. b) do n.º 1 do Art. 599º do CPC, já falha quanto ao requisito da al. a), não indicando os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados.
Afigura-se-nos que o advérbio concretamente inculca no sentido de dizer o alegante deve indicar quis os quesitos que julga foram mal julgados.
Ora, isso não acontece, de todo.
A recorrente limita-se a dizer que a reapreciação da prova pretendida visa demonstrar que a morte do Trabalhador foi induzida pelo ácido clorídrico com que teve o mesmo contacto antes do seu desmaio, porquanto a inalação de tal gás pode provocar reacção humana incluindo dores de cabeça e aceleração do batimento cardíaco, ou que inexistia no local de trabalho suficiente ventilação,
E, antes pelo contrário, que a morte do infeliz Trabalhador ocorreu tão somente pelos graves problemas de hipertensão de que padecia há já bastante tempo, sendo tal razão a causa única da ruptura do vaso cerebral e hemorragia cerebral que o veio a vitimar, e não sendo a sua predisposição patológica induzida pelas condições e ambiente de trabalho, as quais, in casu, se revelaram perfeitamente inócuas para o resultado morte que ocorreu.
Ora tal factualidade, ainda que relevante, não se mostra traduzida na base instrutória com excepção dos quesitos 2º, 3º, 16º e 17º, ainda que não exactamente nos termos pretendidos.
Não obstante esta lacuna de ordem formal e que numa perspectiva mais rigorista podia consentir o não conhecimento desta questão relativa à matéria de facto, considerando que se pugna pela fixação de um facto reputado como essencial para dirimir a vexata quaestio, qual seja o de saber se os problemas de hipertensão de que padecia o trabalhador foram a única causa que desencadeou a aludida ruptura do vaso sanguíneo e hemorragia cerebral ou se esta foi desencadeada pelo concreto circunstancialismo do desempenho laboral ocorrido, ou se este associado àquela pré-disposição desencadeou tal resultado.
Esta é matéria que podia levar a uma resposta diferente ao quesito 17º, onde se perguntava se a morte foi causada por esse quadro patológico de hipertensão, isto é, por males de origem endógena, que tem relação de conexão com a doença de que padecia muito antes daquele evento. E a resposta sobrevinda foi não provado.
3.1. Analisemos então a prova, a partir até da exposição da recorrente.
“ ... Do depoimento prestado em audiência de julgamento pelo Perito Médico Dr. L resultaram as seguintes fundamentais declarações:
Perito Médico Dr. L
4.° Secção (0.10)
Delegado do Ministério Público
"Esta hemorragia cerebral teria acontecido independentemente das funções profissionais que ele desempenhava ou acontecia independentemente do trabalho que ele tinha, ou acha que para soldar ar condicionados, o manuseamento de produtos tóxicos pode ter alguma relação com essa doença?
Perito Médico
- Quanto ao acido clorídrico não tem uma relação directa com a hemorragia cerebral, talvez o sítio onde ele trabalhava, a inalação desses ares pode provocar um mau estar, mas o ácido clorídrico directamente nada tem a ver com a hemorragia."
(2.30)
Delegado do Ministério Publico
"Agora o Sr. Doutor o que diz é que as condições de trabalho que estaria este trabalhador puderam eventualmente causar stress e aumentar a hipertensão, é isso que o Sr. Doutor diz, agora o facto de manusear com ácido clorídrico ou produtos tóxicos na reparação de ar condicionados o Sr. doutor não consegue, não sabe se há relacionamento entre isso e o aumento da tensão?
Perito Médico
- A hemorragia cerebral é a causa da morte e pode estar relacionada com a hipertensão, agora trabalhando nessa ambiente de trabalho com ácido clorídrico ou sem ácido clorídrico, não tem relação directa, foi só por a hora de expediente, ele estava a trabalhar quando ocorreu a hemorragia cerebral, por isso eu entendo que foi por estar a trabalhar e por isso há esse nexo de causalidade."
(4.35)
Advogado da Ré
"Eu penso saber que da autópsia realizada pelo Sr. Doutor ficou apurado que o falecido apresentava coração dilatado e veias endurecidas, isto é, sinal de, isto tem uma relação directa com a hipertensão?
Perito Médico
-Sim.
Advogado da Ré
Sinais visíveis que o mal de que se advém a morte e a hemorragia é de hipertensão?
Perito Médico
- Através da autopsia detectou-se que ele tinha hipertensão e por isso também se constatou essa situação das veias estarem endurecidas."
(6.35)
Mma. Juíza
"Quando você fez a autopsia do falecido e os sinais que você detectou, as duas coisas, por exemplo, que já foi mencionado que o coração estava dilatado que corresponde com hipertensão e também os vasos sanguíneos estavam endurecidos?
Perito Médico
- Aquelas veias mais fininhas e o coração estava dilatado.
Mma. Juíza
E essa dilatação do coração é durante um longo período de tempo?
Perito Médico
- Sim, foi devido à hipertensão.
Mma. Juíza
Não foi de repente que se dilatou o coração?
Perito Médico
- Não, não, já durante ... por causa de uma acumulação do tempo.
Mma. Juíza
Quer dizer o coração dele em comparação com uma pessoa normal é mais dilatado, não foi só um dia que se dilatou?
Perito Médico
- Não, não, já durante um certo tempo.
Mma. Juíza
Consegue determinar esse período de tempo?
Perito Médico
- É que depende de caso para caso, mas de qualquer das maneiras, constata que era um coração grande, dilatado e corresponde ser por causa da hipertensão.
6.ª Secção (00.02)
Mma. Juíza
Em relação ao ácido clorídrico, o Doutor disse que o ácido clorídrico pode-se dizer que é um gás intoxicante?
Perito Médico
- Sim.
Mma.Juíza
Quando se inala esse gás quais os sintomas?
Perito Médico
- É um gás bastante irritante, que irrita e num local fechado quando uma pessoa inala sente-se mal disposta, mas não se pode fazer a ligação com a hemorragia que ele sofreu.
Assim,
O Perito Médico afirmou que "Quanto ao ácido clorídrico não tem uma relação directa com a hemorragia cerebral, talvez o sítio onde ele trabalhava, a inalação desses ares pode provocar um mau estar, mas o acido clorídrico directamente nada tem a ver com a hemorragia.”, que "A hemorragia cerebral é a causa da morte e pode estar relacionada com a hiperiensão, agora trabalhando nessa ambiente de trabalho com ácido clorídrico ou sem ácido clorídrico, não tem relação directa, foi só por a hora de expediente, ele estava a trabalhar quando ocorreu a hemorragia cerebral, por isso eu entendo que foi por estar a trabalhar e por isso há esse nexo de causalidade." que "Através da autopsia detectou-se que ele tinha hipertensão e por isso também se constatou essa situação das veias estarem endurecidas.” e que o ácido clorídrico "É um gás bastante irritante, que irrita e num local fechado quando uma pessoa inala sente-se mal disposta, mas não se pode fazer a ligação com a hemorragia que ele sofreu.".
(...)
8. Do depoimento prestado em audiência de julgamento pela testemunha Dr. H resultaram as seguintes fundamentais declarações:
TESTEMUNHA Dr. H
8.ª Secção (6.15)
Advogado da Ré
"O Sr. Doutor fez um estudo sobre isto, ou seja, estamos a falar em ácido clorídrico, estamos a falar, o que sabe sobre isto, o que pode apurar com o estudo dos documentos, relatórios médicos, autópsias, documentos técnicos, o que é que o Sr. doutor sabe sobre isto?
Testemunha
- Basicamente o mais importante é que não há uma relação entre a causa da morte e os efeitos eventualmente nocivos que a manipulação desse produto, ácido clorídrico pode provocar.
Advogado da Ré
Porque é que não há relação?
Testemunha
- Porque tem efeitos diferentes, não há uma relação porque os efeitos nocivos que eventualmente o ácido clorídrico pode provocar, não estão conectados com os sintomas da hipertensão.
Advogado da Ré
O seu colega médico já tinha referido isso, mas eu ao ouvir falar em ácido clorídrico, o próprio documento técnico que refere pode ter um efeito nas pessoas que o manipulam, relativamente, dores de cabeça, etc., etc.
O Sr. Doutor sabe em concreto o que estamos a falar neste produto, manipulado pela vítima?
Testemunha
- O produto é vendido, o ácido clorídrico portanto existe na natureza como uma relação do cloro com a água, inclusive existe no nosso corpo, nós temos ácido clorídrico no nosso estômago, numa percentagem bastante pequena 0,5% da que constitui numa parte da nossa digestão, qualquer pessoa humana, animais tem acido clorídrico, no estômago, não nos faz mal porque temos uma protecção própria e que precisamos do acido clorídrico para fazer a nossa digestão diariamente para desfazer os alimentos que nós comemos.
O ácido clorídrico é utilizado para várias funções e em certas concentrações porque o acido clorídrico quando utilizado em concentrações de mais de 40% torna-se em vapor e é muito instável e muito difícil de fazer a sua concentração e é usado em termos da indústria, praticamente anda à volta de 34% é aquilo que é vendido como XX de XX, XX é o produto que está aqui em causa, ele tem efeitos nocivos, tem determinados tipos de riscos que estão tipificados em vários países, o efeito fundamental desse acido clorídrico é o efeito corrosivo, devido à sua elevada concentração de 34%, o efeito corrosivo e conforme o meio em que o utilizamos, se tiver em forma de vapor e for inalado pode queimar os nossos pulmões, se for ingerido eventualmente corre o risco de aumentar o efeito corrosivo dentro do estômago, para além daquele que o nosso organismo tem, se for em contacto com a pele, nos olhos, queima, a nível da Organização Internacional de Acidentes de trabalho de saúde ocupacional e prevenção, o efeito numero um é corrosivo.
(13.40)
Advogado da Ré
A origem da hipertensão, a causa da hipertensão qual seja é possível determinar?
Testemunha
- O Sr. morreu com uma chamada hemorragia intracerebral, normalmente este tipo de hemorragia são 60%, são estudos feitos em toda a parte do mundo, são derivadas da hipertensão e são exactamente na zona ganglionar da base porque esses vasos tem uma estrutura de certa fragilidade.
(17.10)
Delegado do Ministério Publico
"Este ácido clorídrico provoca dores de cabeça, a inalação deste gás pode provocar aumento do ritmo cardíaco, isso é verdade ou mentira?
Testemunha
- O produto não é, não está indicado de provocar isso, o produto tem um efeito corrosivo, ou seja, queima, portanto se inalado queima os pulmões, quer ingerido queima o estômago, quando tem contacto com a pele queima a pele, em contacto com os olhos queima os olhos, tem um efeito corrosivo, não tem efeito de entrar na circulação, senão veja, todos nós termos acido clorídrico no nosso estômago, 0,5% de concentração dentro do nosso estômago, e o nosso estômago consegue digerir.
(18.52)
Delegado do Ministério Publico
"O Sr. Doutor não exclui a hipótese de inalação, se percebi bem, no caso de ele ter inalado ácido clorídrico, ter provocado um aumento na tensão e ter sido a causa indirecta da hemorragia cerebral, exclui essa hipótese?
Testemunha
- A inalação queima, se queima ...
Delegado do Ministério Publico
Também não foi detectado na autópsia?
Testemunha
- Não foi nada detectado na autópsia.
(20.50)
Delegado do Ministério Publico
"Em Macau há imensos ar condicionados, é uma profissão que é muito vulgar aqui em Macau, suponho eu, todos nos temos ar condicionado, há muitos profissionais neste ramo, tem acontecido acidentes que saiba, similares, isto não é um acidente típico desta profissão?
Testemunha
- Não, não tenho conhecimento.
(24.00)
Mma. Juíza
Na altura do acidente o falecido com outro trabalhador estava a diluir este ácido clorídrico, um abriu a lata de ácido clorídrico e depois deitou noutro recipiente e outra pessoa retirou água para diluir, deste procedimento vai libertar ácido clorídrico que poderá ser inalado pelo ser humano, durante este procedimento?
Testemunha
- Há um certo grau de libertação, mas não é de forma alguma um grau de risco, daí que o procedimento de precaução e prevenção são usar mascara se tiver num lugar fechado, se não tiver num lugar fechado e tiver uma ventilação, é suficiente para proteger, portanto a concentração é extremamente pequena, a libertação de gás é só partir dos 40% é que começa a aumentar a libertação do acido clorídrico, este produto XX anda à volta de 34% a 37% depois para diluir com agua, o tempo de exposição que é feito com o produto é muito pequeno, a pessoa abre e fecha o produto, é o mínimo dos mínimos, só se houver um acidente é que a pessoa poderá inalar em grandes quantidades e se tiver num local fechado e não tiver ventilação, manipulou durante horas e não fechou os produtos, etc, etc.
(26.05)
Mma. Juíza
A minha ideia é que a libertação de gás foi inalado pelo ser humano, depois de introduzir aquele ácido, ele vai-se libertar no ar, mas vai atingir o grau de 34% ou mais elevado, se uma pessoa durante o procedimento inalar esse gás isso é nocivo para o corpo humano ou não?
Testemunha
- Se fosse nocivo não era vendável, se fosse nocivo não era posto à venda em toda a parte do mundo, todos produtos são nocivos, o que é preciso ter cuidado necessário para fazer a protecção, quando falamos de 30 a 40% significa que 30 ou 40% é acido clorídrico, a outra parte é um estabilizador que é um produto que não deixa o acido clorídrico libertar-se por isso é que é possível trabalhar com ele e vender em objectos fechados.
(29.50)
Mma. Juíza
Se não usasse a mascara e inalar por negligência isso vai causar o bater do coração?
Testemunha
- Quando se fala do bater do coração isso significa é um sintoma para chamar a atenção, o efeito do produto é queimar a pálpebra pulmonar é uma forma de chamar atenção, se você estiver com poucos cuidados e começar a sentir queimar o ps pulmões difíceis, a queimar e o coração a bater rapidamente, atenção corre o risco de estar intoxicado, o produto não vai ao coração.
(...)
Do depoimento prestado em audiência de julgamento pela testemunha I, colega de trabalho da vítima, resultaram as seguintes fundamentais declarações:
TESTEMUNHA Colega de Trabalho I
9.° Secção (3.50)
Delegado do Ministério Publico
"O senhor é colega de trabalho do Sr. G?
Testemunha
- Sim.
Delegado do Ministério Publico
Qual eram as suas funções, o seu trabalho?
Testemunha
- Ar Condicionados.
Delegado do Ministério Publico
Os senhores eram colegas de trabalho há muito tempo?
Testemunha
- Há uns anos.
Delegado do Ministério Publico
O senhor também desempenhava essas funções há muitos anos ?
Testemunha
- No início não era, só depois é que passou a ser, só nos últimos dois anos, um ano aliás, no início eu trabalhava noutro departamento, não trabalhava com ele, ou seja, trabalhava no mesmo departamento mas em locais diferentes.
Delegado do Ministério Publico
Os senhores trabalhavam na inspecção e manutenção de ar condicionados no Hotel XX, no Hotel e no casino do XX?
Testemunha
- Quando trabalhei com ele, só trabalhei um ano.
Delegado do Ministério Publico
Na manutenção dos ar condicionados do Hotel XX, é isso?
Testemunha
- Sim.
Delegado do Ministério Publico
Olhe houve um dia que ele sentiu-se mal e foi para o hospital, lembra-se disso?
Testemunha
- No dia que isso aconteceu, sim, sim.
Delegado do Ministério Publico
O senhor estava com ele?
Testemunha
- Sim, estava a trabalhar com ele.
Delegado do Ministério Publico
A que horas é que ele sentiu mal, já tinha trabalhado o dia todo ou era no principio, tinha começado a trabalhar há pouco tempo?
Testemunha
- Depois de ouvir as directrizes superiores, começamos a trabalhar juntos e entretanto ele desmaiou.
Delegado do Ministério Publico
Em que sitio concreto é que foi?
Testemunha
- Dentro da sala das máquinas.
9.° Secção (7.04)
Delegado do Ministério Publico
"Olhe e a sala onde estava, era uma sala grande, pequenina, tinha as janelas abertas ou as janelas fechadas, como era?
Testemunha
- Era grande, tinha várias maquinas grandes, ali não havia muitas janelas, só havia o exaustor.
Delegado do Ministério Publico
O senhor não se sentiu mal ou também se sentiu mal?
Testemunha
- Eu não me senti mal.
10.ª Secção (2.15)
Mma. Juíza
"Quando a máquina está a proceder à lavagem, vocês continuam dentro da sala das máquinas?
Testemunha
- Continuamos.
Mma. Juíza
Mas não ao lado da máquina?
Testemunha
- Não, não afastamo-nos, ficamos um pouco distanciados a ver.
Mma. Juiza
E nesse local há ventilação do ar?
Testemunha
- Sim, há circulação de ar, sim.
Mma. Juíza
Quando vocês fazem a mistura do produto, você acha que o cheiro é forte, de certeza que há cheiro, porque aquele produto tem cheiro, mas é irritante ou não?
Testemunha
- É irritante.
Mma. Juíza
Depois de inalar tosse ou vomita?
Testemunha
- Eu não tenho problema.
Mma. Juíza
E o seu colega, tanto tempo que trabalhou com ele, constatou esse tipo de situação nele?
Testemunha
- Não, só de vez em quando é que fazemos isso.
Mma. Juíza
Em média por mês, quantas vezes vocês fazem este tipo de lavagem?
Testemunha
Não sei, a companhia destaca 2 pessoas e varia, só mesmo de vez em quando eu vou lá, às vezes nem sequer uma vez por mês, às vezes só uma vez durante vários meses.
11.ª Secção (0.35)
Mma. Juíza
Em relação à ventilação, só tinha uma ventoinha ou tinha muitas ventoinhas?
Testemunha
- Tinha um aparelho que produz ar, ou seja, uma ventoinha de tamanho grande.
Mma. Juíza
Quer dizer uma máquina que não é um ar condicionado e que produz ar fresco?
Testemunha
- Sim, produz ar fresco.
Mma. Juíza
E tinha exaustor?
Testemunha
- Exaustor, tinha.
Mma. Juíza
Você acha que havia corrente de ar ou não, circulação de ar?
Testemunha
- Normalmente costumávamos trabalhar lá.
Mma. Juíza
Mas você acha que há circulação de ar ou não, ou acha que era abafado quando entra na sala das máquinas?
Testemunha
- Não, não sinto isso.
Mma. Juíza
Quer dizer que há circulação de ar ou corrente de ar?
Testemunha
- Sim.
(...)
Do depoimento prestado em audiência de julgamento pela Inspector da DSAL, resultaram as seguintes fundamentais declarações:
TESTEMUNHA Inspector da DSAL
12.3 Secção (4.30)
Delegado do Ministério Publico
"O senhor tem conhecimento de haver acidentes mortais, que não seja por queda nas instalações dos ar condicionados, relacionados com a inalação de gazes, é frequente esse tipo de acidentes?
Testemunha
- Por enquanto não, até ao momento actual não.
3.2. Tudo visto e analisados os elementos pertinentes dos autos, cremos que não há base para concluir que houve uma errada apreciação da prova e que as resposta podiam ser outras.
Os depoimentos médicos são inconclusivos em termos de desmentirem que o trabalho que estava a ser desenvolvido não desencadeou o aludido derrame.
É certo que havia uma situação de hipertensão e predisposição para tal ocorrência, mas, com segurança, alguém pode afiançar que se o trabalhador sinistrado não estivesse a trabalhar tal também não se desencadearia?
Estamos perante um non liquet em termos de prova e não obstante uma resposta afirmativa ao quesito 2º - a causa da supracitada doença foi provocada pelo estado do trabalho do falecido - vê-se bem do teor da douta sentença que a Mma Juiz soube interpretar devidamente a factualidade, dizendo, no fundo, que não se pode excluir essa possibilidade, donde, mesmo a dar-se como não provada essa relação de causalidade, tal não se mostraria definitivo, pois que o crucial era saber se o desfecho resultou tão somente da doença pré-existente.
E quanto a isso não há volta a dar-lhe.
O sinistrado bem podia estar na sua cama a dormir um sono descansado ou atribulado, sabe-se lá, e morrer.
O sinistrado bem podia estar a trabalhar e não ocorrer o derrame fatal; como este bem pode ter ocorrido exactamente pelo trabalho, pelo stress da função que levava a cabo, pelo esforço, pouco que fosse de carrego dos produtos ou dos movimentos indispensáveis, pela irritação respiratória, pelo aumento de circulação sanguínea que o manuseamento e inalação do ácido clorídrico pode gerar, até tal como comprovado vem.
Mas está provado, está realmente, que o derrame não foi desencadeado, exclusiva ou agregadamente por essa ou outras causas?
Ora, o que se nos afigura é que o enquadramento fáctico a que procedeu a Mma Juiz reflecte exactamente esta posição, donde não haver nada a censurar.
Porventura a resposta ao supra-citado quesito 2º terá sido um pouco ousada. Mas como já se assinalou, é irrelevante, pois que para a tese da Ré relevante seria tão somente uma resposta afirmativa ao quesito 17º, excluindo-se qualquer concasualidade com as tarefas que estavam a ser desempenhadas.
De qualquer modo, ainda aí, a Mma Juiz, não se deixa de registar, mui louvavelmente, explicou detalhadamente os elementos em que se baseou para formar a sua convicção, aludindo ao depoimento do médico M e outros elementos probatórios que a inalação do referido ácido provocou desconforto, irritação, o que terá desencadeado um aumento da tensão arterial (cfr. despacho de fls 186 e 187 e tradução de fls 291).
Posto isto, passemos à integração jurídica.
4. Importa atentar no quadro normativo pertinente.
O Decreto-Lei n.º 40/95/M, de 14 de Agosto, define o "acidente de trabalho" como
"acidente que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza, directa ou indirectamente, lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte a morte ou incapacidade temporária ou permanente de trabalho ou de ganho" (cfr. alínea a) do artigo 3º do Decreto-Lei n.º 40/95/M, de 14 de Agosto).
Por seu turno, a alínea i) do mesmo artigo considera a lesão como
"lesão corporal, perturbação funcional ou doença quer profissional quer resultante de acidente de trabalho".
O artigo 6.º (Exclusões) dispõe:
“1. São excluídos do âmbito do presente diploma os acidentes de trabalho ocorridos:
a) Na realização de trabalhos eventuais ou ocasionais, de curta duração, salvo se forem prestados a organizações com fins lucrativos;
b) Na realização de trabalhos ocasionais, de curta duração, prestados a alguém que habitualmente trabalha só ou, apenas, com membros da sua família.
2. A exclusão prevista na alínea b) do número anterior não abrange os acidentes de trabalho que resultem da utilização de máquinas.”
O artigo 7.º (Descaracterização):
“1. Não confere direito à reparação o acidente de trabalho que:
a) For, dolosamente, provocado pela vítima ou provier de seu acto ou omissão, se ela tiver violado, sem causa justificativa, as condições de segurança estabelecidas pelo empregador;
b) Provier, exclusivamente, de falta grave e indesculpável da vítima;
c) Resultar da privação, permanente ou acidental, do uso da razão da vítima, salvo se essa privação derivar da própria prestação de trabalho, for independente da vontade da vítima, ou, sendo conhecida do empregador, este ou o seu representante consentirem na prestação do trabalho;
d) Provier de caso de força maior;
e) Seja devido a tumultos, alterações da ordem pública ou outros factos de idêntica natureza.
f) Resultar de acto de terceiro e se comprove seja devido a motivos exclusivamente pessoais e não laborais, não obstante se verifique no exercício da actividade profissional, tendo em conta a conduta da vítima antes e durante a prática do acto e as suas ligações com o autor ou o seu meio, nomeadamente a sua ligação ao crime organizado.
2. Não se considera abrangido pelo disposto na alínea b) do número anterior o acto ou omissão que resulte da habituação ao perigo do trabalho prestado.
3. Para o efeito previsto na alínea d) do n.º 1, considera-se caso de força maior o que, sendo devido a forças inevitáveis da natureza, independentes de intervenção humana, não constitua risco criado pelas condições de trabalho, nem se produza na execução de trabalho expressamente ordenado pela entidade patronal, em condições de perigo evidente, ou no normal desempenho de tarefas que a imprevista actuação das forças da natureza torne necessárias.
4. A verificação de qualquer das circunstâncias previstas no n.º 1 não exonera as entidades patronais da obrigação de prestar os primeiros-socorros aos sinistrados e de lhes assegurar o transporte até ao local onde possam ser clinicamente assistidos.”
O artigo 8.º(Predisposição patológica):
“A predisposição patológica da vítima de um acidente não exclui o direito à reparação integral, salvo quando tiver sido causa única da lesão ou doença ou tiver sido dolosamente ocultada.”
O artigo 9.º(Lesões ou doenças anteriores ao acidente):
“1. Quando a lesão ou a doença resultante do acidente forem agravadas por lesões ou doenças anteriores ou quando estas forem agravadas pelo acidente, a incapacidade é fixada como se tudo fosse resultante deste, salvo se já tiverem sido reparados os danos das lesões ou doenças anteriores.
2. No caso de a vítima estar afectada de incapacidade anterior ao acidente, a reparação é a correspondente à diferença entre a incapacidade que for fixada como se tudo fosse imputado ao acidente e a incapacidade anterior.
3. Confere também direito à reparação a lesão ou doença que se manifeste durante o tratamento de lesão ou doença resultante do acidente e que seja consequência do tratamento.”
O artigo 10.º(Prova do acidente):
“1. A lesão ou doença contraída pelo trabalhador considera-se, até prova em contrário, consequência de acidente de trabalho quando se verificar:
a) No local e no tempo de trabalho;
b) Em qualquer das circunstâncias previstas em (1) a (5) da alínea a) do artigo 3.º;
c) Nos três dias seguintes ao do acidente.
2. Se a lesão ou doença não for reconhecida no período indicado na alínea c) do número anterior, ou tiver manifestação posterior, incumbe à vítima ou aos beneficiários legais do direito à indemnização provar que foi consequência do acidente de trabalho.”
5. Perante este quadro normativo verifica-se que o evento ocorreu no tempo e lugar de trabalho, pelo que em princípio seria considerado de acidente de trabalho.
A C.ª de Seguros procura descaracterizá-lo e o ónus da prova compete-lhe, no sentido de provar que havia uma propensão patológica por parte do trabalhador para aquela doença propiciadora das condições geradoras do enfarte.
Joga aqui com muita acuidade o que se dispõe no supra citado artigo 8º e daí o termos dito acima que o importante para a Ré seria comprovar o quesito 17º. E a análise das provas não desmerece a resposta encontrada na 1ª Instância.
E a Mma Juiz faz exactamente eco dessa falta de prova que competiria à Ré no sentido de convencer que a causa da morte não foi, de todo ou parcialmente, causada pelo trabalho que estava sendo desenvolvido.
Actualizemos o seu pensamento expresso nas linhas seguintes:
“In casu, de acordo com os factos provados, evidentemente, o acidente ocorreu no horário de trabalho. O falecido estava no Hotel XX a limpar o radiador condensador do aparelho de refrigeração de gela-água do ar condicionado central, altura em que repentinamente desmaiou tendo sido transportado ao hospital para socorro e tratamento e, veio a falecer no dia 19. Portanto, segundo os supracitados factos já podemos confirmar que o respectivo acidente ocorreu no local e no horário de trabalho. Mas quanto à causa da morte do falecido se pode ser qualificada como a de acidente de trabalho, vamos continuar a analisá-la a seguir.
A ré tem vindo a alegar que, embora o respectivo acidente tenha ocorrido no local e no horário de trabalho, a causa da morte não tem nada a ver com o trabalho, mas sim foi causada pela própria doença de que sofre o falecido, sendo isso a única causa da morte do mesmo.
Ora bem, a fim de melhor resolver a supracitada questão, vamos concretamente analisar os factos já dados como provados seguintes:
(...)
De acordo com a lei, o chamado acidente de trabalho refere-se a que se verifica no local e no tempo de trabalho e produza, directa ou indirectamente, lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte a morte ou incapacidade temporária ou permanente de trabalho ou de ganho.
Estamos perante um caso de predisposição patológica, de acordo com a lei, a predisposição patológica da vítima de um acidente não exclui o direito à reparação integral, salvo quando tiver sido causa única da lesão ou doença ou tiver sido dolosamente ocultada.
Além disso, a Lei também presume que são consideradas como consequência do acidente de trabalho, as lesões ou doença sofridas pelos trabalhadores no local e no tempo de trabalho, salvo quando houver prova contrária.
Contudo, no caso de predisposição patológica, incumbe à ré a pretensão e ónus de prova, no sentido de provar que a hemorragia cérebrovascular súbita (causa da morte) foi totalmente causada pela própria doença do falecido, excluindo a existência de qualquer nexo de causalidade ou nexo de causalidade comum entre a causa da morte e o trabalho.
Não existe acidente de trabalho indemnizável à luz do citado diploma quando a lesão que gerou a incapacidade, embora observada na tempo e lugar do trabalho, resulta exclusivamente de uma doença de que o sinistrado já padecia.1
De acordo com os factos provados nos autos, o presente Tribunal entende que, por um lado, embora a causa da morte seja devido à própria doença de que sofre o falecido, a causa indutiva da morte tem a ver com a inalação do ácido clorídrico no trabalho, assim sendo, a causa da morte do falecido tem conexão com o trabalho, existindo um nexo de causalidade de adequação e de proporcionalidade. Além disso, e por outro lado, não foi provado o facto alegado pela ré (a causa da morte do falecido só foi provocada pela sua própria doença e, a sua situação corporal é apenas a causa única que provoca as lesões ou doença).
Pelo que, mesmo se for provada a causa da morte do falecido que seja a complicação resultante de hipertensão (hemorragia cerebrovascular súbita), a hipertensão é a própria doença do falecido, e uma vez que deu-se por provado que a hipertensão do falecido foi provocada pelo estado do seu trabalho, mas não foi provado que a hipertensão fosse causada só pela sua própria doença ou, fosse a única causa da morte resultante da sua situação corporal. Sendo assim, já se verifica o disposto no art.º 8º do D.L n.º40/95/M, pelo que, o presente Tribunal entende que o acidente em causa é um acidente de trabalho, o qual ocorreu no local e no tempo onde o falecido executava o trabalho, resultando daí a morte do falecido.”
6. Estamos, pois em condições de analisar a questão e fácil é constatar que, em princípio, configura-se uma situação como acidente de trabalho.
É verdade que se configura também uma situação de predisposição do trabalhador a tal doença.
Competia à Ré alegar e provar que o enfarte sobreveio apenas por causa daquela predisposição, excluindo de todo qualquer relação causal ou concausal entre o trabalho e o enfarte sobrevindo.
Não existe acidente de trabalho indemnizável à luz do citado diploma quando a lesão que gerou a incapacidade, embora observada no tempo e lugar de trabalho, resulta exclusivamente de uma doença de que o sinistrado já padecia.2
Mesmo, repete-se, dando como não provado o quesito 2º, não ficam certezas sobre a atribuição da exclusividade da causa do derrame fatal àquela presdisposição patológica.
É certo que tal podia ter sobrevindo noutro circunstancialismo, com o trabalhador a dormir, sentado, a comer, mas o facto de ocorrer durante o trabalho faz presumir à partida que estejamos perante um acidente de trabalho.
Pode ser criticável esta solução, mas não se deixa de compreender se inserida numa protecção acrescida ao trabalhador, configurando-se como uma responsabilidade objectiva pelos meros riscos decorrentes da prestação da actividade laboral.
7. E é esta perspectiva que se deve ter, mesmo em casos onde um nexo de causalidade apareça mais diluído.
Foi esta Jurisprudência acolhida já no seio deste Tribunal3, porventura num caso de diferentes contornos, importando não esquecer que cada caso é um caso.
É essa filosofia que está subjacente a esta interpretação pro laboratoris que um recente acórdão colhido da Jurisprudência comparada reflecte numa situação algo caricata, resultante de uma brincadeira e que prima facie nada tem a ver com o exercício funcional do trabalho ou por causa dele, mas onde se refere a evolução interpretativa do que seja um acidente de trabalho, face até aos critérios actualistas que devem também presidir à interpretação da lei, tal como plasmado no artigo 8º, n.º 1 do CC )Código Civil).4
Aí se constata uma evolução de um conceito baseado no risco potencial da actividade profissional para um conceito baseado num risco resultante da integração empresarial.
Mas com uma outra proximidade em relação ao nosso caso, encontramos mesmo na Jurisprudência mais tradicional - igualmente comparada -, a expressão do que vinca exactamente a interpretação que vimos delineando, como seja o da situação do motorista que, ao volante, em plena actividade laboral, sofre subitamente de um colapso cardíaco.5
Noutro passo, assim se vem entendendo na Sala da Audiência Social do Supremo Tribunal da Espanha, onde se lança uma nova luz sobre o conceito de acidente de trabalho e se passa a considerar o enfarte do miocárdio durante o exercício profissional como acidente de trabalho.6
Este entendimento não deixa de se conter na expressão do Dr. Vítor Ribeiro,7comentando normas semelhantes às do nosso ordenamento (cfr. artigos 3º, n.º 1, a) e 10º, n.º 1, a), em argumentação aqui reforçada porquanto insertas no mesmo diploma, DL40/95/M), já acima citadas, e donde decorre uma presunção, não só da verificação de um acidente de trabalho, mas ainda entre o nexo causal entre as lesões observadas no local e tempo de trabalho e o resultado incapacidade e/ou morte, enquanto diz: “Embora aparentemente coincidente, essa presunção do n.º 4 da B.V tem, para nós, um alcance profundamente diverso daquela que se estabelece neste artigo 12º, n.º 1. Aqui presume-se mais do que a simples relação causal entre o acidente, já provado na sua materialidade, e as lesões, parecendo, pelo contrário, que é a partir da lesão observada que deva presumir-se todo o «acidente de trabalho» enquanto facto jurídico complexo, apto a desencadear o direito à reparação... De acordo com a importante presunção estabelecida no n.º 1, se, p. ex. Um trabalhador aparecer morto no local e tempo de trabalho, sem que ninguém tenha presenciado o que se passou, presumir-se-á que as lesões que conduziram à morte foram consequência do acidente de trabalho, cabendo ao empregador (ou sua seguradora) a prova do contrário, p. ex., que foi agredido ou acometido de doença súbita.”
8. Temos assim, em suma, que cabia à Seguradora provar que o enfarte se ficou devendo unicamente à doença que o trabalhador já arrostava consigo e quanto a isso, lendo e analisando os elementos dos autos e reapreciando as provas não há elementos que inculquem para essa certeza.
Não o tendo conseguido a ré, ter-se-á de presumir o acidente como de trabalho, face às apontadas normas e actualizada interpretação.
Não vindo colocadas outras questões, impõe-se a manutenção do decidido.
IV - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Macau, 13 de Outubro de 2011,
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho (vencido, conforme voto anexo)
Proc. nº 477/2011
Voto de vencido
A presunção de que trata o art. 10º do DL nº 40/95/M, de 14/08 apenas pretende aliviar a carga probatória dos interessados acerca da natureza laboral do “acidente”, mas não dispensa a prova do “acidente”e dos seus efeitos. Ou seja, a presunção ali referida não dispensa a prova do nexo causal entre “acidente” e a incapacidade ou morte consequentes. De modo que, para haver reparação, deverá ter ocorrido um facto naturalístico no local e tempo de trabalho caracterizado como acidente e do qual tenha advindo a lesão geradora da incapacidade ou morte.
A predisposição patológica a que se refere o art. 8º do mesmo diploma só se mostra relevante para efeito de reparação quando houver uma causa próxima (facto naturalístico/acidente) despoletadora da lesão da qual o sinistrado sofre sequelas, que não sofreria se não fosse a causa oculta representada por aquela predisposição.
É a posição manifestada nos acórdãos deste TSI proferidos em 29/09/2011 nos Processos nºs 373/2011 e 475/2011 e na jurisprudência neles citada, e que no presente voto reafirmamos.
No caso em apreço, o sinistrado não sofreu um “acidente” e por tal motivo, da morte, para a qual contribuiu a patologia de que padecia, não adviria um direito a reparação. Significa que, em nossa opinião, concederíamos provimento ao recurso.
TSI, 13 de Outubro de 2011
_____________________
José Cândido de Pinho
1 - Ac. STJ., de 28/01/2004, Proc. 03S3405
2 - Ac. STJ., de 28/1/2004, proc. 03S3405, http://dgsi.pt
3 Ac. 348/2009, deste TSI, de 23/7/09
4 - Ac. STJ, proc. 05S574, de 29/6/2005
5 - Ac. STJ, de 10/7/91, BMJ 409, 575
6 - Recurso n.º 3044/1998, cfr. http://www.infarctcombat.org/polemica-21/icem.html
7 - Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 1994, 74
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477/2011 1/41