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Processo nº 471/2011 Data: 20.10.2011
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Acidente de viação.
Homicídio por negligência.
Erro notório na apreciação da prova.
Reenvio.




SUMÁRIO

1. Atentas as regras de experiência, e na ausência de outra matéria de facto, é de se considerar padecer de erro notório na apreciação da prova a decisão que dá como provado que em resultado do embate, a vítima foi projectada para o ar, acabando por cair a uma distância de 13.3 metros do local de embate, e como “não provado” que a arguida, “por não estar a conduzir com velocidade adequada, não conseguiu travar atempadamente o automóvel MG-54-13 a fim evitar ou ceder passagem à Chao Leng (vítima) que se encontrava a atravessar a via nesse local”, e que, “o acidente referido ocorreu por a arguida não ter cumprido as regras do trânsito, pois por não seguir com velocidade adequada não conseguiu travar de imediato a sua viatura, a fim de evitar e ceder a passagem à vítima que apareceu à sua frente.

2. Com efeito, dada a distância entre o ponto de embate e o local para o qual foi projectado o corpo da vítima, (13.3 metros), impõe-se concluir, segundo as regras de experiência, que a arguida conduzia com uma velocidade que a impediu de travar em espaço livre e visível, evitando o infeliz acidente.

O relator,

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José Maria Dias Azedo






Processo nº 471/2011
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. No T.J.B. e nos Autos de Processo Comum Singular n.° CR2-10-0182-PCS, respondeu, A (XXX), acusada da prática de 1 crime de “homicídio por negligência” p. e p. pelo art. 134°, n.° 1 do C.P.M., conjugado com o art. 30°, n.° 1 da Lei n.° 3/2007 (“Lei do Trânsito Rodoviário”).
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Realizado o julgamento, proferiu o Mmo Juiz douta sentença absolvendo a arguida do imputado crime; (cfr., fls. 227 a 247 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformados, vem B (XXX) e C (XXX), assistentes, recorrer.
No âmbito da motivação que apresentaram formulam as conclusões seguintes:

“1ª O presente recurso vem interposto da douta Sentença proferida pelo Tribunal Singular nos vertentes autos, que absolveu a Arguida do crime de homicídio por negligência por que vinha acusada;
2ª Resulta claramente que a decisão recorrida, interpretada de per si, com a experiência comum e com os elementos dos autos nela acolhidos, se encontra inquinada do vício constante do art. 400°, n° 2 alínea c) do Código de Processo Penal - erro notório na apreciação da prova, e bem assim verificando-se igualmente o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto, previsto no art. 400°, n° 2 alínea a) do Código de Processo Penal, que inquina a
Sentença recorrida e que determinará o reenvio do processo para novo julgamento, na sua totalidade (art. 418°), no âmbito do qual sejam sanados os invocados vicias com a adequada indagação da matéria de facto;
3ª Nos vertentes autos está em causa a eventual prática pela Arguida do crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo art. 134°, n° 1 do Código Penal, por força da violação do disposto no art. 30°, n° 1 da Lei n° 3/2007 (Lei do Trânsito Rodoviário), tratando-se de um tipo de crime que, de acordo com a definição contida no art. 14° do Código Penal, pressupõe a violação de um dever objectivo de cuidado;
4ª Tendo-se considerado como provado que a vitima, após o embate no pará-brisa do veículo MX-XX-XX conduzido pela Arguida, foi projectada pelo ar ficando caída a uma distância de 13.3 metros do ponto de embate, e que, em sede de 3. Convicção, a douta Sentença recorrida atendeu ao depoimento prestada em audiência de julgamento pela Arguida, que entre outras explicações dadas, referiu que a vítima apareceu à sua frente, depois de ela própria ter desviado por instantes o seu olhar para o conta quilómetros do seu carro, em fracções de segundo, não se entende como é que depois se dá como não provado que Chegada ao troço à frente do poste de iluminação n°IBIB03, dessa via, por não estar a conduzir com velocidade adequada, não conseguiu travar atempadamente o automóvel MX-XX-XX a fim evitar ou ceder passagem à D (vítíma) que se encontrava a atravessar a via nesse local. e que o acidente referido ocorreu por a arguida não ter cumprido as regras do trânsito, pois por não seguir com velocidade adequada não conseguiu travar de imediato a sua viatura, a fim de evitar e ceder a passagem à vítima que apareceu à sua frente;
5ª Segundo as regras da experiência comum, um embate que projecta um corpo a 13.3 metros de distância, só pode significar que o respectivo veiculo não seguia a uma velocidade adequada que permitisse ao respectivo condutor travar atempadamente, nos termos previstos no art. 30°, n° 1 da Lei do Trânsito Rodoviário;
6a A distracção revelada pela própria Arguida, que não se encontrava a olhar para a via de trânsito aquando do surgimento da vítima, só pode ter como consequência a consideração pelo Tribunal de ter a Arguida violado o disposto no art. 15°, n° 3 da mesma Lei do Trânsito Rodoviário;
7ª É de todo incompreensível ter o douto Tribunal a quo determinado não ter a Arguida violado qualquer regra de trânsito, e nem que a mesma tenha sido responsável pela ocorrência do acidente fatal dos autos;
8ª Ocorreu por isso o invocado erro notório na apreciação da prova previsto no art. 400°, n° 2 alínea c) do Código de Processo Penal), o que expressamente se invoca;
9ª O douto Tribunal tem o especial dever de ordenar a produção da prova necessária à descoberta da verdade material por forma exaustiva, tanto em relação aos factos da acusação, como aos da defesa e aos que surgirem no decurso da audiência de julgamento, e integrar os mesmos no segmento da decisão referente à fundamentação de facto, considerando-os provados ou não provados, e a partir deles então estruturar a decisão final em termos de convicção e fundamentação;
10ª A douta Sentença recorrida não integrou nem nos Factos Provados, nem nos Factos Não Provados: a) A circunstância de a Arguida ter afirmado em audiência de julgamento que a vítima apareceu à sua frente, depois de ela própria ter desviado por instantes o seu olhar para o conta quilómetros do seu carro, em fracções de segundo, apesar de ter invocado tais afirmações em sede de 3. Convicção; b) A prova documental atinente ao veículo MX-XX-XX conduzido pela Arguida, constante dos autos a fls. 27 a 33, donde se constata com toda a clareza as marcas no vidro dianteiro do embate violento do corpo da infeliz vítima; c) A circunstância de constar no croqui de fls. 4 dos autos, o local do embate assinalado com a letra X a meio da hemi-faixa por onde circulava a Arguida; d) A circunstância de constar no mesmo croqui de fls. 4 dos autos, entre o local do embate e o local onde ficou imobilizado o veículo automóvel conduzido pela Arguida a distância de 9.3 metros; e) A circunstância de ter a Arguida efectuado a travagem antes ou depois do embate;
11ª Esses factos não se discutiram em sede de Sentença, nem foram apurados pelo Tribunal, mas se revelavam fundamentais para a decisão da causa, porquanto respeitam à dinâmica própria do acidente, às circunstâncias em concreto em que se verificou o fatal embate, matéria fáctica absolutamente decisiva para o apuramento da responsabilidade relativa dos intervenientes no acidente, e para a imputação da responsabilidade, ou irresponsabilidade penal, designadamente daquela que vinha acusada da prática de crime;

12ª Como tal não sucedeu, significa isto que neste segmento existe clara insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, o que consubstancia o vício previsto no art. 400°, n° 2 alínea a) do Código de Processo Penal, que ora expressamente se invoca, que inquina a Sentença recorrida, devendo ser proferido douto Acórdão por esse Venerando Tribunal que determine o reenvio do processo para novo julgamento, na sua totalidade (art. 418°), no âmbito do qual sejam sanados os invocados vícios com a adequada indagação da matéria de facto”; (cfr., fls. 255 a 268).

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Respondendo, pugnam o arguido e o Exmo. Magistrado do Ministério Público pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 274 a 287 e 290 a 296).

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Admitido o recurso, vieram os autos a este T.S.I..

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Em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público douto Parecer opinando também no sentido da improcedência do recurso; (cfr., fls. 309 a 311).

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Passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão dados como provados os factos seguintes:

“1. Em 5 de Outubro de 2009, cerca das 14.20 horas, a arguida ia conduzir o automóvel ligeiro MX-XX-XX (pertence a XXX) circulando na Av. de Amizade, em direcção à Rua dos Pescadores para o Largo do Terminal Marítimo.
2. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1., a vítima, quando atravessava a faixa de rodagem nos termos referidos infra em 5., foi embatida pela parte dianteira do automóvel conduzido pela, caindo no lado esquerdo do pará-brisas do MX-XX-XX e a seguir foi projectada para o ar, acabando por cair do lado do poste de iluminação n.°181B03 que ficava a 13.3 metros do ponto de embate.
3. Após o embate, a vítima foi transportada para o Hospital C.S. Januário para ser socorrida, mas acabou por falecer no dia seguinte, pelas 10.55 horas da manhã.
4. A vítima faleceu por força fractura na base do crânio e lesões graves no crânio-cerebral, em consequência do embate supra descrito (v. Relatório de autópsia a fls. 107 e 108 dos autos).
5. Quando ocorreu o embate, a vítima estava a atravessar a rua do lado direito para o lado esquerdo, tendo em conta o sentido de marcha da viatura da arguida.
6. Nas circunstâncias referidas supra em, o tempo estava bom, o pavimento estava seco e a densidade do tráfego era normal”.

Por sua vez, deram-se como “não provados” os factos seguintes:

“Chegada ao troço à frente do poste de iluminação n.°181B03, dessa via, por não estar a conduzir com velocidade adequada, não conseguiu travar atempadamente o automóvel MX-XX-XX a fim evitar ou ceder passagem à D (vítima) que se encontrava a atravessar a via nesse local.
O acidente referido ocorreu por a arguida não ter cumprido as regras do trânsito, pois por não seguir com velocidade adequada não conseguiu travar de imediato a sua viatura, a fim de evitar e ceder a passagem à vítima que apareceu à sua frente.
A arguida sabia perfeitamente que a sua conduta era proibida e punida por lei”; (cfr., fls. 228 a 230).

Do direito

3. Vem os assistentes B e C, recorrer da sentença proferida pelo Mmo Juiz do T.J.B. que absolveu a arguida A (XXX), da imputada prática de 1 crime de “homicídio por negligência” p. e p. pelo art. 134°, n.° 1 do C.P.M., conjugado com o art. 30°, n.° 1 da Lei n.° 3/2007 (“Lei do Trânsito Rodoviário”).

Assacam à decisão recorrida os vícios de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” e “erro notório na apreciação da prova”.

Merecendo o recurso conhecimento, vejamos se merece provimento.

Pois bem, sobre os ditos vícios da matéria de facto, repetidamente, tem este T.S.I. afirmado que:

O vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão apenas ocorre “quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo”; (cfr., v.g., o Acórdão de 09.06.2011, Proc. n.°275/2011 e de 02.06.2011, Proc. 198/2011).

“O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.”

De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.”; (cfr., v.g., Ac. de 12.05.2011, Proc. n° 165/2011, e mais recentemente de 26.05.2011, Proc. n.° 268/2011 do ora relator).

No caso dos autos, inexiste o imputado vício de “insuficiência”, pois que o Tribunal a quo não deixou de emitir pronúncia sobre (toda) a matéria objecto do processo, elencando a que resultou provada e identificando a que resultou não provada, (como atrás se deixou transcrito).

Quanto ao “erro notório”, cremos que o mesmo se existe.

De facto, tendo-se dado como “provado” que em resultado do embate, a vítima foi projectada para o ar, acabando por cair a uma distância de 13.3 metros do local de embate, razoável não parece que se tivesse dado como “não provado” que a arguida, “por não estar a conduzir com velocidade adequada, não conseguiu travar atempadamente o automóvel MX-XX-XX a fim evitar ou ceder passagem à D (vítima) que se encontrava a atravessar a via nesse local”, e que, “o acidente referido ocorreu por a arguida não ter cumprido as regras do trânsito, pois por não seguir com velocidade adequada não conseguiu travar de imediato a sua viatura, a fim de evitar e ceder a passagem à vítima que apareceu à sua frente”.

Não se ignoram os motivos que levaram o Tribunal a quo a decidir como decidiu.
Porém, face à ausência de outra matéria de facto, outra solução não se vislumbra, pois que, dada a distância entre o ponto de embate e o local para o qual foi projectado o corpo da vítima, (13.3 metros), impõe-se concluir, segundo as regras de experiência, que a arguida conduzia com uma velocidade que a impediu de travar em espaço livre e visível, evitando o infeliz acidente.

Sendo, assim, em nossa opinião, evidente o “erro” em questão, e não sendo possível a este T.S.I. sanar tal maleita, há pois que se determinar o reenvio dos autos para novo julgamento, da referida matéria nos termos do art. 418° do C.P.P.M..

Decisão

4. Em face do exposto, acordam julgar procedente o recurso, ordenando-se o reenvio dos autos para novo julgamento.

Custas pela arguida com taxa de justiça que se fixa em 6 UCs.

Macau, aos 20 de Outubro de 2011
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 471/2011 Pág. 16

Proc. 471/2011 Pág. 17