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Processo nº 430/2011 Data: 20.10.2011
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “falsificação de documento”.
Modalidades.
Elementos típicos.




SUMÁRIO

1. O documento tem três funções que constituem simultaneamente os elementos constitutivos da noção jurídico-penal de documento: a função “representativa”, isto é, o documento é uma representação de um pensamento humano; a função “probatória”, isto é, o documento é apto para a prova de um facto juridicamente relevante (isto é, de um facto com o efeito de constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica); e a função de “garantia”, isto é, o documento é uma declaração com identificação do emitente (pessoa física ou jurídica).
Pode ser “intencional”, ou seja, ter sido criado ab initio com a função probatória, ou ser “ocasional”, isto é, ter adquirido essa função posteriormente à sua criação.

2. Por sua vez, não se confunde com a coisa em que o documento se corporiza, isto é, o escrito, o registo em disco, a fita gravada ou qualquer outro meio técnico.
A lei distingue (portanto), o documento propriamente dito, no sentido incorpóreo de declaração, e o documento impropriamente dito, no sentido de coisa que corporiza a declaração.

3. Uma “escala de turnos”, onde o arguido assinava e assim assinalava a sua comparência e presença ao serviço, constitui um “documento” para efeitos penais.
Com efeito, ao assinar, e assim assinalar a sua presença na “escala” em questão, presta a recorrente uma “declaração corporizada por escrito”, que, por sua vez, era também “idónea para provar facto jurídico”: (precisamente), a “presença da declarante”.

4. Verifica-se a falsificação ou falsidade “material” quando o documento é total ou parcialmente forjado ou quando se alteram elementos constantes de um documento já existente.
E verifica-se falsificação ou falsidade “intelectual” (ou ideológica) quando o documento não reproduz com verdade aquilo que se destina a comprovar. Aqui, o documento é inverídico, e tanto é inverídico o documento que é diferente do declarado, como o documento que embora conforme com a declaração, incorpora um facto falso juridicamente relevante.

O relator,

______________________
José Maria Dias Azedo


Processo nº 430/2011
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por sentença proferida pelo Mmo Juiz do T.J.B. decidiu-se condenar A (XXX), pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de 1 crime de “falsificação de documento”, p. p. pela alínea a) do n.° 1 do art. 244° e alínea a) do art. 243°, ambos do C.P.M., na pena de 1 ano de prisão suspensa na sua execução por 2 anos; (cfr., fls. 822 a 822-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Inconformado com o assim decidido, a arguida recorreu.
Motivou para concluir nos termos seguintes:

“C) A douta decisão do tribunal a quo condenou a arguida na pena de um ano (1) de prisão, suspensa pelo período de dois (2) anos, pela prática do crime de falsificação de documento, pp. Pelo art.° 244.°, n.° 1, al. a) do Código Penal.
D) Os factos prendem-se, em síntese, com a troca de turnos entre colegas de trabalho, os quais, por indicação superior (do imediato chefe hierárquico, primeiro arguidos nestes autos), assinavam a respectiva escala de turnos original, i.e., sem reflectir a alteração de turno verificada.
E) Contudo, no caso dos autos, não só se verifica a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Território, como não se verifica, em termos de resultado, qualquer prejuízo. Igualmente, não se verificou a obtenção de qualquer benefício ilegítimo. Nenhum dos co-arguidos, trabalhadores do mesmo serviço, prestou menos horas de trabalho do que as devidas.
F) Constitui benefício ilegítimo toda a vantagem que se obtenha através do acto de falsificação o do acto de utilização do documento falso. Ora, a troca de turnos não foi efeito (i.e., não foi obtida através ) da pretensa falsificação da escala do horário de trabalho!
G) Pelo que é de concluir não estarem verificados os elementos do tipo de crime falsificação de documento, consignados no citado art.° 244.°, n.° 1 do Código penal.
H) Ademais, a falsidade em documentos é punida quando se tratar de uma declaração de facto falso, mas não de todo e qualquer facto falso, apenas aquele que for juridicamente relevante, isto é, aquele que é apto a constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, pág. 683, §26).
I) A assinatura por parte dos trabalhadores da escala original, em horários nos quais não trabalharam por terem efectuado troca de turnos com colegas, não configura, por isso, um ilícito criminal. Quando muito relevaria para efeitos disciplinares, que não criminais.
J) Portanto, e salvo o devido respeito, a decisão a quo errou na qualificação jurídica dos factos, incorrendo no mesmo vício já consubstanciado na acusação. Ademais,
K) Como declarado por todos os arguidos indistintamente, a recorrente não teve qualquer consciência da ilicitude do facto, porquanto limitou-se a seguir as instruções do seu chefe, seguindo método que já era praticado no serviços mesmo antes de nele ingressar.
L) Efectivamente, a troca de turnos era uma prática instituída e que vinha de antes, dos tempos em que ainda não havia, sequer, qualquer tabela ou escala para assinar.
M) Os trabalhadores achavam que a aludida tabela ou escala era um mero pró-forma: o importante era que efectivamente prestassem o número de horas de trabalho devido - convicção reforçada pelo facto de seguirem as instruções do respectivo chefe.
N) Agiam, portanto, no cumprimento de uma ordem superior que julgavam legítima. Nunca a recorrente representou que fosse ilícito, muito menos criminal!
O) Termos em que sempre deveria a recorrente ter sido absolvida, se mais não fosse, por via da verificação da causa de exculpação prevista no art.° 16.° n.° 1 do Código Penal, sendo certo, ainda, que não é o mesmo crime punível a título de negligência.
Todavia, por último,
P) Mesmo a manter-se a pena de prisão aplicada, julga-se, porém, que deve o período de suspensão de dois anos ser reduzido para o mínimo legal de um ano.
Q) Efectivamente, para além do quadro supra desenhado, acresce que a recorrente é primária, o dolo é inexistente ou insignificante, os requisitos de prevenção geral e especial estão alcançados, a censurabilidade da conduta é mínima, pelo que o mínimo legal previsto no n.° 5 do art.° 48.° do Código Penal tem aqui pleno cabimento”; (cfr., fls. 851 a 862).

*

Em resposta diz o Exmo. Magistrado do Ministério Público:

“1- O crime de falsificação de documento prevista no art.° 244° n.° 1 a) do Código Penal de Macau, pressupõe que o agente necessita de actuar com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Território, OU de obter para si OU para outra pessoa beneficio ilegítimo, fabricar
documento falso, falsificar OU alterar documento ou abusar da assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso.
2- “Constitui beneficio ilegítimo toda a vantagem (patrimonial ou não patrimonial) que se obtenha através do acto de falsificação ou do acto de utilização do documento falsificado.
3- Não se exige uma específica intenção de provocar um engano no tráfico jurídico, apenas aquando da prática do crime de falsificação, o agente deverá ter conhecimento que está a falsificar um documento ou que está a usar um documento falso, e apesar disto quer falsificá-lo. Ou seja, para que o agente actue dolosamente tem que ter conhecimento e vontade de realização do tipo, o que implica um conhecimento dos elementos normativos do tipo. Constituindo o documento um elemento normativo do tipo apenas se exige que o agente tenha sobre ele o conhecimento normal de um leigo de acordo com as regras gerais, não sendo necessário o conhecimento da noção juridica, maxime, da noção jurídico-penal." (cfr. Comentário Coimbrense do Código Penal, parte especial, Tomo II, Coimbra Editora, pago 685)
4- Há falsidade intelectual ou ideológico sempre que um documento não reproduz com verdade o evento que refere, isto é, quando apresenta uma desconformidade entre o que se declarou e o que se escreveu.(cf. Código Penal de Macau, Anotações Legislação avulsa Macau -1997, pag.720)
5- Conforme os factos provados nos autos, a recorrente apresenta urna desconformidade entre o que se declarou e o que se escreveu, agiu-se com intenção de obter para si beneficio ilegítimo, “a conveniência de trabalho”, uma vantagem não patrimonial, e falsidade essa põe em causa a fé pública, a segurança e a credibilidade dos documentos, no presente caso, o regime de inspecção da escala de serviço, causando prejuízo ao Território.
6- In casu, preencheu perfeitamente todos os elementos objectos e subjectivos que constituem o crime de falsificação de documento que a recorrente venha a ser condenado nos autos.
7- Não se verifica nenhum erro, pois, o que exige no nosso caso concreto é a recorrente que tenha sobre ela o conhecimento normal de um leigo de acordo com as regras gerais. Qualquer leigo sabe que quando está preencher e assinar na escala de serviço as horas de trabalho não correspondem à verdade está a falsificar um documento pois está apresentar uma desconformidade entre o que se declarou e o que se escreveu. A de mais, o dever de obediência hierárquica cessa quando conduz à prática de um crime.
8- Nos presentes autos, atendendo o percurso do tempo em que a recorrente tenha praticado o facto ilícito, isto é, no período entre 10 de Julho de 2005 a 19 de Novembro de 2007, mais de dois anos, o dolo intensivo e as consequências graves, as prevenções gerais e as prevenções especiais, revelam que a pena de prisão de um ano suspende pelo período de dois anos condenada à recorrente, seja adequada e suficiente as finalidades de punição.
9- Pelo que, o recurso deve ser rejeitado”; (cfr., fls. 867 a 872-v).

*

Em sede de vista, emitiu-se o douto Parecer que segue:

“Acompanhamos e subscrevemos as doutas considerações expendidas pela Exma Colega junto do tribunal “a quo” na sua “Resposta” constante de fls 867 a 872 v, as quais, por fastidioso, nos dispensaremos de reproduzir, sendo certo que as mesmas demonstram, clara e suficientemente, a falta de razão da recorrente, quer quanto à qualificação jurídica operada sobre os factos operados, que se apresenta correcta, quer quanto ao erro sobre a ilicitude, que se não vislumbra, quer, finalmente, quanto à medida concreta da pena, na vertente da duração do período de suspensão de execução da mesma, a qual se mostra justa e adequada.
Tudo razões por que, sem necessidade de maiores considerações ou alongamentos, somos a entender não merecer reparo o decidido, que haverá que manter, negando-se provimento ao presente recurso”; (cfr., fls. 911 ).

*

Passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados os factos seguintes:

“O arguido B trabalhou na Obra Social do CPSP em 2001, e foi promovido a chefe da repartição recreativa e cantina daquela organização em 2003, responsável principalmente pelo tratamento dos assuntos quotidianos e elaboração da lista de turnos (escala) dos trabalhadores das cantinas da repartição recreativa, situada na Rua de Afonso de Albuquerque e de a situada nas Portas do Cerco. Por volta de 2004, o registo de presenças dos tais trabalhadores faz-se pelo sistema de assinatura de folhas, nas quais os mesmos obrigaram-se a preencher a hora de ida e saída do serviço e assinar para efeitos de ser verdade. As folhas de presença foram confirmadas por chefe (arguido B) e apresentadas depois à apreciação superior (Vd. as fls. 217 a 378 e 420 a 569 dos autos). Todos os dias, o arguido B foi à cantina situada nas Portas do Cerco para verificar a presença dos trabalhadores e tratar dos trabalhos quotidianos.
O arguido B autorizou privativamente a substituição de trabalho entre os trabalhadores: sem prejuízo do funcionamento da repartição recreativa e cantina, o trabalhador que pretendeu mudar do turno só precisou de notificar oralmente B. Além disso, o arguido B pediu os trabalhadores para preencherem as folhas de presença de acordo com o horário de trabalho indicado na escala e assinarem, mas o substituto não pôde assinar nas folhas de presença naquele dia.
Em 6 de Julho de 2005, a arguida C exerceu função de auxiliar através do contrato de serviços no departamento subordinado à Obra Social do CPSP, trabalhou principalmente na cantina situada nas Portas do Cerco até 28 de Outubro de 2008, dia em que foi demitida. Durante o período em que trabalhou na organização em causa, a arguida C saiu por muitas vezes do posto de trabalho para entrar no Interior da China durante 20 de Julho de 2005 e 22 de Dezembro de 2007, mas a mesma, conforme a indicação do arguido B, preencheu e assinou nas folhas o registo de presença que não correspondeu à hora verdadeira de ida e saída do serviço (vd. as folhas da presença constantes das fls. 217 a 378 e 420 a 569 dos autos, e, vd. as fls. 620 a 621 dos autos o documento feito pelo CPSP de acordo com as informações dadas pelo posto fronteiriço de Zhuhai da República Popular da China). A arguida C foi ao Interior da China na hora de trabalho acima referida para comprar comidas, fazer compras e divertir-se.
Em 3 de Julho de 1996, a arguida A exerceu função de adjunta na cantina subordinada à Obra Social do CPSP através do contrato de serviços, trabalhou principalmente na cantina situada nas Portas do Cerco, até 28 de Outubro de 2008 em que foi demitida. Durante o período em que trabalhou na organização em causa, a arguida A saiu por muitas vezes do posto de trabalho para entrar no Interior da China durante 10 de Julho de 2005 e 19 de Novembro de 2007, mas a mesma, conforme a indicação do arguido B, preencheu e assinou nas folhas o registo de presença que não correspondeu à hora verdadeira de ida e saída do serviço (vd. as folhas da presença constantes das fls. 217 a 378 e 420 a 569 dos autos, e, vd. a fls. 622 dos autos o documento feito pelo CPSP de acordo com as informações dadas pelo posto fronteiriço de Zhuhai da República Popular da China). A arguida A foi ao Interior da China na hora de trabalho acima referida para fazer compras e divertir-se.
Em 6 de Julho de 2005, a arguida E exerceu função de auxiliar no departamento subordinado à Obra Social do CPSP através do contrato de serviços, trabalhou principalmente na repartição recreativa, até 28 de Outubro de 2008 em que foi demitida. Durante o período em que trabalhou na organização em causa, a arguida E saiu por muitas vezes do posto de trabalho para entrar no Interior da China durante 31 de Março de 2006 e 6 de Abril de 2007, mas a mesma, conforme a indicação do arguido B, preencheu e assinou nas folhas o registo de presença que não correspondeu à hora verdadeira de ida e saída do serviço (vd. as folhas da presença constantes das fls. 217 a 378 e 420 a 569 dos autos, e, vd. a fls. 623 dos autos o documento feito pelo CPSP de acordo com as informações dadas pelo posto fronteiriço de Zhuhai da República Popular da China). A arguida E foi ao Interior da China na hora de trabalho acima referida para fazer compras e divertir-se.
Em 4 de Julho de 1996, o arguido F exerceu função de adjunto na Obra Social do CPSP através do contrato, trabalhou principalmente na cantina, até 28 de Outubro de 2008 em que foi demitido. Durante o período em que trabalhou na organização em causa, o arguido F saiu por muitas vezes do posto de trabalho para entrar no Interior da China durante 14 de Junho de 2005 e 31 de Dezembro de 2007, mas o mesmo, conforme a indicação do arguido B, preencheu e assinou nas folhas o registo de presença que não correspondeu à hora verdadeira de ida e saída do serviço (vd. as folhas da presença constantes das fls. 217 a 378 e 420 a 569 dos autos, e, vd. a fls. 624 a 625 dos autos o documento feito pelo CPSP de acordo com as informações dadas pelo posto fronteiriço de Zhuhai da República Popular da China). O arguido F foi ao Interior da China na hora de trabalho acima referida para fazer viagens e divertir-se.
Em 1 de Março de 2001, o arguido G exerceu função de auxiliar na cantina subordinada à Obra Social do CPSP através do contrato de serviços, trabalhou principalmente na repartição recreativa, até 28 de Outubro de 2008 em que foi demitido. Durante o período em que trabalhou na organização em causa, o arguido G saiu por muitas vezes do posto de trabalho para entrar no Interior da China durante 24 de Novembro de 2005 e 25 de Dezembro de 2007, mas o mesmo, conforme a indicação do arguido B, preencheu e assinou nas folhas o registo de presença que não correspondeu à hora verdadeira de ida e saída do serviço (vd. as folhas da presença constantes das fls. 217 a 378 e 420 a 569 dos autos, e, vd. a fls. 626 dos autos o documento feito pelo CPSP de acordo com as informações dadas pelo posto fronteiriço de Zhuhai da República Popular da China). O arguido G foi ao Interior da China na hora de trabalho acima referida para fazer compras e divertir-se.
Em 6 de Dezembro de 1995, o arguido H exerceu função de auxiliar na cantina subordinada à Obra Social do CPSP através do contrato de serviços, até 28 de Outubro de 2008 em que foi demitido. Durante o período em que trabalhou na organização em causa, o arguido H saiu por muitas vezes do posto de trabalho para entrar no Interior da China durante 18 de Agosto de 2005 e 25 de Dezembro de 2007, mas o mesmo, conforme a indicação do arguido B, preencheu e assinou nas folhas o registo de presença que não correspondeu à hora verdadeira de ida e saída do serviço (vd. as folhas da presença constantes das fls. 217 a 378 e 420 a 569 dos autos, e, vd. a fls. 627 dos autos o documento feito pelo CPSP de acordo com as informações dadas pelo posto fronteiriço de Zhuhai da República Popular da China). O arguido H foi ao Interior da China na hora de trabalho acima referida para fazer compras e divertir-se.
Os 7 arguidos agiram de forma livre, voluntária, consciente e com dolo, com intenção de adquirir para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, elaboraram os registos de presença que não correspondem às horas de trabalho verdadeiras.
Os 7 arguidos sabiam perfeitamente que as tais condutas eram proibidas e punidas por lei.

E foram provados ainda:
Arguido B:
- Aposentado, auferindo mensalmente cerca de MOP$17.000,00, tendo em seu cargo a sua esposa.
- O arguido possui como habilitações literárias o 4.º ano do ensino secundário.
- Segundo o registo criminal, o arguido é delinquente primário.
Arguida C:
- Empregada de mesa, auferindo mensalmente cerca de MOP$4.000,00, tendo em seu cargo o marido e filho.
- A arguida possui como habilitações literárias o 3.º ano do ensino primário.
- Segundo o registo criminal, a arguida é delinquente primária.
Arguida A:
- Empregada de mesa, auferindo mensalmente cerca de MOP$7.000,00, tendo em seu cargo os pais.
- A arguida possui como habilitações literárias o 3.º ano do ensino primário.
- Segundo o registo criminal, a arguida é delinquente primária.
Arguida E:
- Vendedora, auferindo mensalmente cerca de MOP$9.500,00, tendo em seu cargo três filhos.
- A arguida possui como habilitações literárias o 6.º ano do ensino primário.
- Segundo o registo criminal, a arguida é delinquente primária.
Arguido F:
- Aposentado, auferindo mensalmente cerca de MOP$15.000,00, tendo em seu cargo a sua esposa.
- O arguido alegou que nunca tinha frequentado nenhum curso.
- Segundo o registo criminal, o arguido é delinquente primário.
Arguido G:
- Guarda aposentado, auferindo mensalmente cerca de MOP$13.000,00, tendo em seu cargo a sua esposa.
- O arguido possui como habilitações literárias o 5.º ano do ensino primário.
- Segundo o registo criminal, o arguido é delinquente primário.
Arguido H:
- Aposentado, auferindo mensalmente cerca de MOP$16.000,00, tendo em seu cargo a sua esposa.
- O arguido possui como habilitações literárias o ensino primário completo.
- Segundo o registo criminal, o arguido é delinquente primário.
*
Factos não provados:
Não há outros factos constantes da Acusação que sejam importantes para o julgamento e aguardem por comprovação”; (cfr., fls. 894-v a 901-v).

Do direito

3. Vem a arguida A (XXX) recorrer da decisão que a condenou pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de 1 crime de “falsificação de documento”, p. p. pela alínea a) do n.° 1 do art. 244° e pela alínea a) do art. 243° do Código Penal.

Vejamos se lhe assiste razão.

Diz, em síntese, a ora recorrente que:

–– “os factos prendem-se, em síntese, com a troca de turnos entre colegas de trabalho, os quais, por indicação superior (do imediato chefe hierárquico, primeiro arguido nestes autos), assinavam a respectiva escala de turnos original, i.e., sem reflectir a alteração de turno verificada”.

–– “não só não se verifica a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Território, como não se verifica, em termos de resultado, qualquer prejuízo. Igualmente, não se verificou a obtenção de qualquer benefício ilegítimo. Nenhum dos co-arguidos, trabalhadores do mesmo serviço, prestou menos horas de trabalho do que as devidas”, e que,

–– “pelo que é de concluir não estarem verificados os elementos do tipo de crime falsificação de documento, consignados no citado art.° 244.°, n.° 1 do Código penal”.

Em frontal oposição, afirma o Exmo. Magistrado do Ministério Público que:

“Não se exige uma específica intenção de provocar um engano no tráfico jurídico, apenas aquando da prática do crime de falsificação, o agente deverá ter conhecimento que está a falsificar um documento ou que está a usar um documento falso, e apesar disto quer falsificá-lo. Ou seja, para que o agente actue dolosamente tem que ter conhecimento e vontade de realização do tipo, o que implica um conhecimento dos elementos normativos do tipo. Constituindo o documento um elemento normativo do tipo apenas se exige que o agente tenha sobre ele o conhecimento normal de um leigo de acordo com as regras gerais, não sendo necessário o conhecimento da noção jurídica, maxime, da noção jurídico-penal.” (cfr. Comentário Coimbriense do Código Penal, parte especial, Tomo II, Coimbra Editora, pago 685)”

“Há falsidade intelectual ou ideológico sempre que um documento não reproduz com verdade o evento que refere, isto é, quando apresenta uma desconformidade entre o que se declarou e o que se escreveu.(cf. Código Penal de Macau, Anotações Legislação avulsa Macau -1997, pag.720)”

“Conforme os factos provados nos autos, a recorrente apresenta uma desconformidade entre o que se declarou e o que se escreveu, agiu-se com intenção de obter para si beneficio ilegítimo, “a conveniência de trabalho”, uma vantagem não patrimonial, e falsidade essa põe em causa a fé pública, a segurança e a credibilidade dos documentos, no presente caso, o regime de inspecção da escala de serviço, causando prejuízo ao Território”.

E, recentemente, perante situação próxima, decidiu este T.S.I, absolver o arguido pelo mesmo crime; (cfr., Acórdão de 15.12.2009, Processo n.° 999/2009).

Como decidir?

Pois bem, o art. 243°, al. a) dá-nos a noção de “documento” como sendo, v.g., “a declaração corporizada em escrito…, inteligível para a generalidade de pessoas, …, que permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto jurídico relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão, quer posteriormente (…)”.

Sabido é também que o documento tem três funções que constituem simultaneamente os elementos constitutivos da noção jurídico-penal de documento: a função “representativa”, isto é, o documento é uma representação de um pensamento humano; a função “probatória”, isto é, o documento é apto para a prova de um facto juridicamente relevante (isto é, de um facto com o efeito de constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica); e a função de “garantia”, isto é, o documento é uma declaração com identificação do emitente (pessoa física ou jurídica).

Pode ser “intencional”, ou seja, ter sido criado ab initio com a função probatória, ou ser “ocasional”, isto é, ter adquirido essa função posteriormente à sua criação.

Por sua vez, não se confunde com a coisa em que o documento se corporiza, isto é, o escrito, o registo em disco, a fita gravada ou qualquer outro meio técnico.

A lei distingue portanto, o documento propriamente dito, no sentido incorpóreo de declaração, e o documento impropriamente dito, no sentido de coisa que corporiza a declaração; (cfr., v.g., Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal”, pág. 669).

Face ao assim exposto, cremos que inegável é reconhecer-se que a mencionada “escala de turnos” onde a ora recorrente assinava e assim assinalava a sua comparência e presença ao serviço constitui um “documento” para efeitos do C.P.M.”; (cfr., art. 243°).

Com efeito, ao assinar, e assim assinalar a sua presença na “escala” em questão, presta a recorrente uma “declaração corporizada por escrito”, que, por sua vez, era também “idónea para provar facto jurídico”: (precisamente), a “presença da declarante”.

Nos termos do art. 244° do mesmo C.P.M.:

“1. Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Território, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo,

a) fabricar documento falso, falsificar ou alterar documento ou abusar da assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso,

b) fizer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante, ou

c) usar documento a que se referem as alíneas anteriores, fabricado, falsificado ou alterado por outra pessoa, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

2. A tentativa é punível”.

Prevêem-se assim casos de falsificação “material”, “intelectual” e “uso de documento falso”.

Verifica-se a falsificação ou falsidade “material” quando o documento é total ou parcialmente forjado ou quando se alteram elementos constantes de um documento já existente.

E verifica-se falsificação ou falsidade “intelectual” (ou ideológica) quando o documento não reproduz com verdade aquilo que se destina a comprovar. Aqui, o documento é inverídico, e tanto é inverídico o documento que é diferente do declarado, como o documento que embora conforme com a declaração, incorpora um facto falso juridicamente relevante.

Ora, atento o preceituado e o atrás exposto, cremos que inegável é também que, atenta a conduta provada da ora recorrente, fez a mesma “constar falsamente de documento facto juridicamente relevante”, ou seja, cometeu aquilo a que se apelida de “falsificação intelectual ou ideológica”, pois que aquela deu lugar à integração no documento, (“escala”), de uma declaração “distinta” daquela que foi prestada, (a sua presença).

Nesta conformidade, e certo sendo igualmente que provado está que – assim como os outros arguidos dos autos – “agiram de forma livre, voluntária, consciente e com dolo, com intenção de adquirir para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, elaboraram os registos de presença que não correspondem às horas de trabalho verdadeiras”, e que “sabiam perfeitamente que tais condutas eram proibidas por lei”, quid iuris?

Ensina-nos a maioria da doutrina que os bens jurídicos protegidos pela incriminação com o crime em questão são a segurança e a credibilidade na força probatória de documento destinado ao tráfico jurídico, e que, no caso da conduta da ora recorrente, (que integra a alínea b) – e não a) – do n.° 1 do art. 244°), no que respeita ao “grau de lesão dos bens jurídicos protegidos”, é 1 “crime de perigo abstracto”.

Como ensina Eduardo Correia, (in “Direito Criminal”, I, pág. 288), a incriminação da falsificação de documento procura garantir a «segurança no tráfico jurídico» contra a «colocação neste do documento falso».
Doutra banda, para Figueiredo Dias e Costa Andrade, (in “Direito Penal - Questões Fundamentais”, pág. 23), «o que o crime de falsificação protege é a verdade intrínseca do documento enquanto tal».

E, por sua vez, Helena Moniz, notando que tradicionalmente se considerava ser a fé pública - sentimento geral de confiança nos actos públicos - o bem jurídico tutelado, acentua que se evoluiu depois para a verdade da prova e conclui, (em clara consonância com Eduardo Correia), a favor da «segurança e credibilidade do tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental» (in “Comentário Conimbriense”, II, pág. 679 a 680).

Ora, mostrando-se de acompanhar tal entendimento, cremos pois que a conduta provada da ora recorrente integra, na totalidade, os elementos objectivos e subjectivos do crime em questão, ou seja, o de “falsificação” p. e p. no art. 244°, n.° 1 al. b) (e não a)) do C.P.M., importando assim, e porque observado o contraditório (em audiência) alterar a qualificação jurídica pelo T.J.B. operada.
Por sua vez, não se mostra de dar por verificada, a alegada “situação” a que se refere o art. 16°, n.° 1 do C.P.M., (cfr., concl. O), pelo que importa agora ver da adequação da pena.

–– Da “pena”.

Como se viu, ao dito crime cabe a pena de prisão até 3 anos ou pena de multa que, no caso, é de 10 a 360 dias; (cfr., art. 45°, n.° 1 do C.P.M.).

Nos termos do art. 40° do C.P.M.

“1. A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

2. A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.

3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”.

Por sua vez, estatui o art. 64° do citado Código que:

“Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

E, preceitua também o art. 65° do mesmo Código

“1. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção criminal.

2. Na determinação da medida da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

b) A intensidade do dolo ou da negligência;

c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

3. Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da determinação da pena”.
Aqui chegados vejamos.

Entendeu o Mmo Juiz do T.J.B. que adequada seria a pena de prisão, (em detrimento da de multa), fixando-a em 1 ano, e acabando por decretar a suspensão da sua execução por 1 período de 2 anos.

Será de alterar o assim decidido?

Cremos que de sentido negativo deve ser a resposta.

Com efeito, a pena de prisão de 1 ano mostra-se justa e adequada às necessidades de prevenção criminal que se impõem face ao tipo de crime em causa.

Aliás, tanto quanto resulta das conclusões pela recorrente apresentadas, a mesma não contesta a pena e a sua medida, pedindo apenas a redução do período de suspensão da sua execução.

E, aí, atento o estatuído no art. 48°, n.° 5 do C.P.M. – que prescreve que “o período de suspensão é fixado entre 1 e 5 anos a contar do trânsito em julgado da decisão” – bem se vê também que excessivo não é o período de 2 anos pelo Tribunal a quo fixado.

Tudo visto, resta decidir.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, e alterando-se oficiosamente a qualificação jurídico-penal efectuada, nega-se provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente com taxa de justiça de 6 UCs.

Macau, aos 20 de Outubro de 2011
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa (Vencida nos termos da declaração de voto em anexo)

Processo nº 430/2011 (Autos de recurso penal)
Data: 20/10/2011


Declaração de voto

Vencida por seguintes razões:

Não concordo com a decisão condenatória da arguida recorrente pela prática de um crime de falsificação de documento, p.p. pelo art.244º nº1 al.b) do Código Penal, por entender que a declaração feita pela arguida na folha de presença não é idónea para constituir, modificar ou extinguir a relação jurídica que a mesma vinha a manter com a entidade patronal, ideia esta melhor desenvolvida no acórdão do TSI, do processo penal nº 999/2009, de 15 de Dezembro de 2009.

Assim sendo, merecia o recurso provimento e devia a arguida ser absolvida do referido crime.


A Segunda Adjunta

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Tam Hio Wa


Proc. 430/2011 Pág. 36

Proc. 430/2011 Pág. 35