Processo n.º 88/2011 Data do acórdão: 2011-10-20
(Autos de recurso penal)
Assuntos:
– processo contravencional
– art.° 386.o, n.° 2, do Código de Processo Penal
– momento de apresentação da defesa
– insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
– art.o 85.o, n.o 5, da Lei do Trânsito Rodoviário
– contravenção
– infracção administrativa
– excesso de velocidade
– art.o 98.o da Lei do Trânsito Rodoviário
– condutor do veículo
– art.o 85.o, n.o 1, alínea 2), da Lei do Trânsito Rodoviário
– regras de trânsito
– in dubio pro reo
S U M Á R I O
1. O art.o 386.o, n.o 2, do vigente Código de Processo Penal reza que o arguido, em processo contravencional, deve apresentar a defesa em audiência.
2. Não se verifica o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada a que alude o 400.o, n.o 2, alínea a), do CPP, quando não se vislumbra qualquer lacuna no apuramento da matéria de facto que constitui o objecto do processo.
3. Segundo o art.o 85.o, n.o 5, da vigente Lei do Trânsito Rodoviário (LTR), o proprietário do veículo responde subsidiariamente pelo pagamento das multas que forem devidas pelo autor da infracção administrativa, sem prejuízo do direito de regresso contra este, salvo quando haja utilização abusiva do veículo.
4. Entretanto, esta norma não se aplica à contravenção, mas sim à infracção administrativa.
5. Tendo em conta que a matéria de facto então dada por provada na sentença recorrida não consegue apontar que foi o arguido o condutor dos três veículos dos autos no momento da ocorrência dos correspondentes três actos de condução com excesso de velocidade, mas sim tão-só consegue apontar que os três veículos em questão, possuídos pelo arguido como dono de uma empresa de compra e venda de veículos de segunda mão, chegaram a circular com excesso de velocidade, e enquanto o tribunal a quo já investigou todo o tema probando objecto do mesmo processo (o que impossibilita qualquer solução de reenvio do processo para novo julgamento), só resta a hipótese legal de absolver, por força do princípio de in dubio pro reo, o arguido das três contravenções por que vinha condenado em primeira instância.
6. Isto porque conforme o art.o 85.o, n.o 1, alínea 2), da LTR, são responsáveis pelas contravenções os condutores, quando se trate de infracção às regras de trânsito, sendo certo que o art.o 98.o da LTR contém exactamente regras de trânsito sancionatórias do “excesso de velocidade”, então tidas por violadas pelos tais veículos possuídos pelo arguido.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 88/2011
(Autos de recurso penal)
Recorrente:
A, dono da empresa “B”
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com a sentença proferida a fls. 58 a 59v dos autos de Processo Contravencional n.o CR4-10-0472-PCT do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), por força da qual ficou condenado como autor de uma contravenção p. e p. principalmente pelo art.o 98.o, n.o 1, da vigente Lei do Trânsito Rodoviário (LTR), de uma contravenção p. e p. principalmente pelo art.o 98.o, n.o 6, alínea 2), desta Lei, e ainda de uma contravenção p. e p. principalmente pelo art.o 98.o, n.o 6, alínea 1), da mesma Lei, veio o arguido dono A da empresa “B”, aí já melhor identificado, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância, para rogar a sua absolvição destas três contravenções, devido à alegada violação, por parte do Tribunal a quo, do disposto no art.o 85.o, n.o 5, da LTR, no art.o 1.o (atinente ao princípio da legalidade) do vigente Código Penal (CP), nos art.os 49.o, n.o 2 (relativo ao princípio da presunção de inocência), e 321.o (referente ao princípio da investigação) do vigente Código de Processo Penal (CPP), acompanhada do também assacado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (cfr. o teor da motivação do recurso, a fls. 71 a 77 dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso, respondeu o Ministério Público (a fls. 81 a 82v) no sentido de manutenção do julgado, por entender não padecer a decisão recorrida das ilegalidades apontadas pelo recorrente.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 91 a 93), pugnando pelo reenvio do processo para novo julgamento, devido à materialmente entendida verificação do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, e com audiência de julgamento já feita nesta Segunda Instância, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Com pertinência à solução do recurso, é de atender aos seguintes elementos coligidos do exame dos autos:
O Departamento de Trânsito do Corpo de Polícia de Segurança Pública entendeu que a empresa “B” era responsável pelos três actos de condução automóvel com excesso de velocidade, respeitantes ao veículo automóvel MH-65-XX em 4 de Agosto de 2009 (às 18:07), ao veículo automóvel MK-66-XX em 13 de Julho de 2009 (às 03:49) e ao veículo automóvel MI-91-XX em 14 de Abril de 2009 (às 15:13), respectivamente (cfr. o teor de fls. 3, 5, 7, 8, 14, 16, 19 e 20 dos presentes autos).
O Ministério Público decidiu enviar o expediente em questão do Departamento de Trânsito ao TJB, para instauração do correspondente processo contravencional (cfr. o despacho exarado no canto superior direito de fl. 2 dos autos).
Segundo a acta da audiência de julgamento realizada no assim instaurado Processo Contravencional n.o CR4-10-0472-PCT do 4.o Juízo Criminal do TJB, subjacente à presente lide recursória (cfr. o teor de fls. 57 e seguintes dos autos):
– o Ministério Público imputou ao dono A da empresa “B” a prática de uma contravenção p. e p. principalmente pelo art.o 98.o, n.o 1, da LTR, de uma contravenção p. e p. principalmente pelo art.o 98.o, n.o 6, alínea 2), desta Lei, e ainda de uma contravenção p. e p. principalmente pelo art.o 98.o, n.o 6, alínea 1), da mesma Lei;
– interrogado depois na mesma sede, o arguido A (ora recorrente) negou a prática dos factos respeitantes às ditas contravenções, e defendeu que antes da ocorrência desses factos imputados, já tinha vendido os veículos automóveis em questão a outrem.
A final, foi proferida a sentença condenatória do arguido nas referidas três contravenções, com base na seguinte matéria de facto (descrita a fl. 58 dos autos):
– como factos provados:
– em 14 de Abril de 2009, cerca das 15:13 horas, o veículo automóvel ligeiro MI-91-XX possuído pelo arguido (como dono da empresa “B”) estava a circular na Estrada de Pac On da Taipa à direcção da Ponte da Amizade, à velocidade de 72 Km/hora;
– em 13 de Julho de 2009, cerca das 03:49 horas, o veículo automóvel ligeiro MK-66-XX possuído pelo arguido estava a circular na Ponte da Amizade à direcção de Macau, à velocidade de 110 Km/hora;
– em 4 de Agosto de 2009, cerca das 18:07 horas, o veículo automóvel ligeiro MH-65-XX possuído pelo arguido estava a circular na Ponte da Amizade à direcção da Taipa, à velocidade de 98 Km/hora;
– o arguido chegou a assinar com terceiros os acordos de compra e venda dos veículos automóveis MI-91-XX, MK66-XX e MH65-XX, mas sem realização do registo da transferência da propriedade desses veículos;
– o arguido tem curso secundário completo, e dedica-se à compra e venda de veículos de segunda mão;
– tem por rendimento mensal vinte mil patacas, e precisa de sustentar os pais, a esposa e uma filha;
– e como facto não provado: nenhum.
Em sede da fundamentação da sua decisão condenatória, considerou o Mm.o Juiz a quo (a fl. 58v dos autos) que:
– é obrigatório, nos termos dos art.os 5.o, n.o 2, e 1.o, n.o 1, do Decreto-Lei n.o 49/93/M, de 13 de Setembro, o registo da transferência da propriedade de veículos automóveis, com vista à identificação dos respectivos proprietários, pelo que os acordos, apresentados pelo arguido à apreciação do tribunal, de compra e venda dos veículos em questão nos autos, só produzem efeitos obrigacionais, e não importam a transferência da propriedade;
– e atento o disposto no art.o 85.o, n.o 5, da LTR, e não tendo o arguido conseguido fornecer prova de que os actos de condução com excesso de velocidade em questão não tenham sido praticados por ele próprio, é de julgar como provados (com base nas fotografias constantes dos autos relativas ao excesso de velocidade, nas velocidades em questão e em demais factos objectivos) os actos de excesso de velocidade, com consequente condenação do arguido como autor das três contravenções em causa, nos termos do art.o 85.o, n.o 5, da LTR.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Por uma questão de lógica sequencial das ilegalidades apontadas no recurso, é de conhecer primeiro do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude o art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do CPP.
Em obediência ao art.o 386.o, n.o 2, do CPP, em processo contravencional, o arguido “deve apresentar a sua defesa em audiência”.
In casu, segundo a versão fáctica sustentada pelo Departamento de Trânsito do Corpo de Polícia de Segurança Pública, com base na qual o Ministério Público imputou ao arguido, como dono da empresa “B”, a prática das três contravenções em questão, esta empresa era responsável pelos correspondentes três actos de condução automóvel com excesso de velocidade, enquanto o arguido defendeu na audiência em primeira instância que os três veículos em causa, antes da ocorrência dos factos de condução com excesso de velocidade, já tinham sido vendidos.
Foram estas duas versões fácticas que formaram, sem mais nem menos, o objecto probando do subjacente processo contravencional.
Quanto à versão fáctica sustentada pela Acusação, o Mm.o Juiz a quo deu por provado que os mesmos três veículos possuídos pelo arguido (como dono da empresa “B”) chegaram a circular com excesso de velocidade.
E sobre a versão fáctica apresentada pela Defesa, o Mm.o Juiz a quo deu por provado que o arguido chegou a assinar com outrem acordos de compra e venda dos três veículos, mas sem respectivos registos da transferência da propriedade.
Deste quadro das coisas, não se vislumbra qualquer lacuna no apuramento da matéria de facto que então constituiu o objecto do processo contravencional subjacente à presente lide recursória. Não se verificam, pois, o esgrimido vício do art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do CPP, nem qualquer violação ao princípio da investigação.
Passa-se a decidir agora da alegada violação do art.o 85.o, n.o 5, da LTR.
Da fundamentação da sentença recorrida, decorre que o Mm.o Juiz a quo decidiu em condenar o arguido nas três contravenções imputadas, com base na norma do art.o 85.o, n.o 5, da LTR, segundo a qual “O proprietário do veículo responde subsidiariamente pelo pagamento das multas que forem devidas pelo autor da infracção administrativa, sem prejuízo do direito de regresso contra este, salvo quando haja utilização abusiva do veículo”.
Contudo, tal como entendeu, e mui perspicazmente, a Digna Procuradora-Adjunta no seu parecer, não deve o Tribunal recorrido ter aplicado esta norma para fundar o seu juízo condenatório, porquanto os três actos de condução automóvel com excesso de velocidade em causa nos subjacentes autos são contravenções, e não infracções administrativas.
Procede, pois, a arguida violação do art.o 85.o, n.o 5, da LTR, embora por fundamentos materialmente diversos dos alegados a este respeito pelo recorrente.
Em consequência do acima constatado erro de direito na aplicação do art.o 85.o, n.o 5, da LTR, e tendo em conta que a matéria de facto então dada por provada na sentença recorrida não consegue apontar que foi o arguido o condutor dos três veículos dos autos no momento da ocorrência dos três actos de condução com excesso de velocidade, mas sim tão-só consegue apontar que os três veículos em questão, possuídos pelo arguido (como dono da empresa “B”), chegaram a circular com excesso de velocidade, e enquanto o Tribunal a quo já investigou todo o tema probando objecto do mesmo processo (o que impossibilita qualquer solução de reenvio do processo para novo julgamento), só resta a hipótese legal de absolver, por força do princípio de in dubio pro reo, o arguido das três contravenções por que vinha condenado, isto porque conforme o art.o 85.o, n.o 1, alínea 2), da LTR, são responsáveis pelas contravenções os condutores, quando se trate de infracção às regras de trânsito, sendo certo que o art.o 98.o da LTR contém exactamente regras de trânsito sancionatórias do “excesso de velocidade”.
E vistas as coisas neste prisma, violou realmente a decisão condenatória ora impugnada o princípio da presunção de inocência, por o Tribunal recorrido ter invertido o ónus da prova, quando afirmou na fundamentação da sua sentença que o arguido não conseguiu fornecer prova de que os actos de condução com excesso de velocidade em causa não tenham sido praticados por ele próprio.
Com o acima concluído, já não se torna necessária a apreciação da questão de violação do princípio da legalidade.
Termos em que há que proceder o pedido de absolvição formulado na motivação do recurso, embora o arguido tenha decaído em alguma pate da sua fundamentação do recurso.
Em suma, é de revogar a decisão recorrida, sem custas nas duas Instâncias nem pelo Ministério Público (dada a isenção subjectiva deste) nem pelo recorrente, porque como ele acabará por ser absolvido de todas as contravenções por que vinha acusado, não se poderá considerar que foi ele quem deu causa à subjacente acção contravencional.
IV – DECISÃO
Nos termos expostos, acordam em julgar procedente o pedido formulado no recurso, absolvendo, por conseguinte, o recorrente arguido A, como dono da empresa “B”, das três contravenções imputadas no subjacente Processo Contravencional n.o CR4-10-0472-PCT do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base.
Sem custas em ambas as Instâncias.
Macau, 20 de Outubro de 2011.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)
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