ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
1. Relatório
Por Acórdão proferido pelo Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base em 11 de Maio de 2012, B e A arguidos nos presentes autos, foram condenados, pela prática na forma consumada de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes p.p. pelo art.º 8.º n.º 1 da Lei n.º 17/2009, na pena de 7 anos e 6 meses de prisão e 8 anos de prisão, respectivamente.
Inconformados com a decisão, recorreram ambos para o Tribunal de Segunda Instância, que por sua vez decidiu negar provimento ao recurso do arguido B e julgou parcialmente procedente o recurso da arguida A, passando esta a ser condenada, como autora material e na forma tentada de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes p.p. pelo art.º 8.º n.º 1 da Lei n.º 17/2009, na pena de 4 anos de prisão.
Vem agora a arguida A recorrer para o Tribunal de Última Instância, formulando na sua motivação do recurso as seguintes conclusões:
1.ª Imputa a Recorrente ao douto Ac. recorrido erro de direito, sendo que a motivação do presente recurso se centra, essencialmente, na qualificação jurídica da apurada conduta da mesma; que entende configurar meros actos preparatórios, não podendo considerar-se que a Recorrente cometeu, em autoria e na forma tentada um crime de de tráfico de estupefacientes.
2.ª A infracção penal prevista no art.º 8.ª da Lei n.º 17/2009 constitui o que a doutrina tem apelidado de crime “exaurido”, “excutido” ou “de empreendimento”, em que o resultado típico se alcança logo com aquilo que surge por regra como realização inicial do iter criminis, tendo em conta o processo normal de actuação, envolvendo droga que se não destine exclusivamente a consumo, estando previstos na norma diferentes comportamentos, que podem ir de uma mera detenção à venda propriamente dita.
3.ª Não se exige, para preenchimento do tipo, o desenvolvimento da globalidade da acção projectada pelo agente; porém, a consumação exige que se dê por provada, pelo menos, uma das ocorrências ali referidas.
4.ª Face à factualidade apurada em julgamento e inserta nos “factos provados” do texto do Acórdão da Primeira Instância, não alterada pelo douto Ac. do TSI ora em impugnação, a Recorrente praticou meros actos preparatórios de execução de um crime que decidiu cometer por pressão de um indivíduo não devidamente identificado e que, à data, se encontrava na República Popular da China.
5.ª A Recorrente, tal como foi dado por provado pelos Excelentíssimos Julgadores da Primeira Instância e pelo Venerando do Tribunal de Segunda Instância, não pôde consumar o crime pelo qual veio a ser condenada, porque: (i) não havia droga na mala que lhe foi entregue pelo co-arguido no presente processo e, portanto, não chegou a recebê-la (ou detê-la) e (ii) não pôde transportar para a China a mala sem droga, por ter sido interceptada pela polícia.
6.ª Aceita-se que a natureza de crime de perigo abstracto do crime do art.º 8.º da Lei n.º 17/2009 se traduz numa antecipação da tutela penal, independentemente da efectiva lesão da multiplicidade de bens jurídicos em causa (reconduzidos ao bem geral “saúde pública”), punindo-se os primeiros actos de execução do agente, não se exigindo, para preenchimento do tipo, o desenvolvimento da globalidade da acção projectada pelo agente, mas exigindo-se que se dê por provada, pelo menos, uma das ocorrências referidas na norma.
7.ª No caso e nessa perspectiva, a Recorrente, só, teria consumado o crime de tráfico de droga se, efectivamente, ainda que impedida de transportar a droga de Macau para a China Continental (conforme planeado entre ela e o tal C), a tivesse recebido em Macau e a tivesse detido ainda que por breves instantes.
8.ª A consumação do crime de tráfico de droga teria que se dar por efectiva se a Recorrente tivesse recebido a droga em Macau (detendo-a ilicitamente) mesmo que a intenção da Recorrente fosse transportá-la para a China.
9.ª Atenta a natureza de crime de perigo abstracto do crime de tráfico de droga e estando previstos na norma sancionatória diferentes comportamentos, que podem ir de uma mera detenção à venda propriamente dita, conclui-se que não é possível a figura da tentativa, uma vez que esta ocorre quando há actos de execução e estes são aqueles que, nos termos das alíneas do n.º 2 do art.º 21.º do Código Penal preenchem um elemento constitutivo de um tipo legal de crime.
10.ª Face à factualidade dada por provada nas duas Instâncias, a Recorrente não podia ter sido condenada, como autora e na forma tentada, por um crime de tráfico de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, porquanto, a mesma não ofereceu, não pôs à venda, não vendeu, não distribuíu, não cedeu, não comprou, ou por qualquer título não recebeu, não transportou, não importou, não exportou, não fez transitar ou ilicitamente deteve qualquer planta, substância ou preparado compreendidos nas tabelas I a III anexas à Lei n.º 17/2009.
11.ª Para fundamentar a tentativa, seria necessário que a conduta da Recorrente se exteriorizasse em actos que contenham eles próprios um momento de ilicitude, não estando os actos da Recorrente dotados de idoneidade e de inequivocidade, certo sendo que os actos de preparação – vinda a Macau e hospedagem num hotel de Macau – por si só não são puníveis; também, o facto de ter recebido a mala das mãos do 1.º arguido no processo – da qual não é co-autora porque não houve qualquer acordo prévio entre ambos – não pode ter relevância para enquadrar a sua conduta na figura da tentativa impossível punível.
12.ª Sem desprimor pela actuação dos Agentes de investigação no sentido de tudo fazerem para interromper o circuito da droga transportada pelo 1.º arguido, sempre se dirá que houve uma precipitação, sem justificação, pois estando a Recorrente num hotel e estando mais do que um Agente de investigação presente, nem sequer o receio de fuga da Recorrente pôde justificar tal acto precipitado e com consequências legais: a impossibilidade de condenar a Recorrente por um crime de tráfico de droga, na forma tentada, por falta de objecto.
13.ª Receber uma mala contendo roupas e não contendo qualquer substância psicotrópica, para a generalidade das pessoas configuraria uma situação manifestamente impossível de detenção de droga por parte da Recorrente.
14.ª Se essa Alta Instância vier a considerar que, no caso em apreço, apesar da carência de objecto, a tentativa aparece como punível, não pode a Recorrente deixar de requerer que a pena fixada pelo Venerando Tribunal de Segunda Instância, ora recorrido, seja reduzida, porque se mostra extremamente desproporcionada.
15.ª Constitui jurisprudência uniforme de que ao Tribunal de Última de Instância, como Tribunal especialmente vocacionado para controlar a boa aplicação do Direito, não cabe imiscuir-se na fixação da medida concreta da pena, desde que não tenham sido violadas vinculações legais – como por exemplo, a dos limites da penalidade – ou regras da experiência, nem a medida da pena encontrada se revele completamente desproporcionada, o que no caso acontece.
16.ª A determinação da medida judicial ou concreta da pena, nos termos do artigo 65.º do Código Penal, é feita em função da culpa, tomando-se em conta as exigências de prevenção de futuros crimes e as demais circunstâncias do n.º 2 daquele preceito que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, certo sendo que as exigências de prevenção geral definem o limite mínimo da pena e a culpa o limite máximo criando, assim, a moldura dentro da qual se hão-de fazer sentir as exigências de prevenção especial ou de ressocialização.
17.ª O Acórdão recorrido não valorou qualquer circunstância no plano das causas atenuantes gerais, no momento de proceder à determinação da medida judicial ou concreta da pena.
18.ª A Recorrente pede que tal pena não seja superior a 1 ano e 6 meses de prisão.
19.ª A douta decisão recorrida violou as normas: (i) do art.º 8.º da Lei n.º 17/2009 e o art.º 22.º, n.º 3, do Código Penal, ao ter condenado a Recorrente pelo crime de tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, na forma tentada; (ii) a norma do do art.º 20.º do Código Penal de Macau por não a ter aplicado e (iii) o princípio da proporcionalidade das penas.
Respondeu o Ministério público, terminou a sua resposta com as seguintes conclusões:
1. Nos termos dos artigos 20.º e 21.º do Código Penal, há actos preparatórios quando forem feitas preparações para o cometimento dum crime mas não for praticado qualquer acto de execução referido no artigo 21.º, n.º 2, por outras palavras, são actos preparatórios aqueles que, a fim da preparação do cometimento dum crime, praticados antes dos actos de execução. Segundo o artigo 20.º, salvo disposição em contrário, os actos preparatórios não são puníveis.
2. Segundo os factos reconhecidos pelo Tribunal a quo, a recorrente, induzida por um indivíduo conhecido por C que permanece no interior da China, deslocou-se a Macau do interior da China à espera das drogas que o outro arguido B trouxe para Macau de Malásia, a fim de levá-las para o interior da China e entregá-las a C; em 1 de Maio de 2011, a recorrente, sob instruções de C, chegou ao átrio do hotel da ocorrência da causa e levou do outro arguido a maleta de cor cinza prata que tinha sido apreendida pelo pessoal da PJ e que tinha contido anteriormente as drogas em causa.
3. É conhecido por todos que o tráfico transfronteiriço de drogas é geralmente feito por várias pessoas, consistindo em vários vectores que formem uma cadeia de crime. A recorrente agiu de forma livre, voluntária e consciente ao praticar, juntamente com o outro arguido e os indivíduos cujas identidades são incertas, através do acordo de vontade e da comunicação, o tráfico transfronteiriço de drogas. Esse acto não é preparatório, porque já se cometeu o acto de tráfico de estupefaciente.
4. Mesmo entenda que dos factos reconhecidos pelo Tribunal a quo não resulta o acordo da comparticipação entre a recorrente e outrem, seria, sem dúvida, acto de execução o acto da recorrente de levar a maleta bem sabendo que esta tinha contido drogas, porque esse acto não só foi preparatório para o futuro cometimento de crime, mas já preencheu os elementos constitutivos do crime imputado. A recorrente não conseguiu obter as respectivas drogas apenas porque a intervenção por parte policial, que tinha retirado estas da maleta, pelo que a sua conduta preenche os elementos de tentativa.
5. A conduta da recorrente absolutamente não é tentativa impossível, porque o facto de que a maleta em causa já não tinha drogas não se trata duma situação que o homem comum consegue prever de forma evidente e razoável.
6. Quando recorreu para o TUI, a recorrente deduziu uma nova questão – medida da pena, que não deve ser julgada; caso assim não se entenda, tendo o acórdão recorrido fixado a pena de 4 anos de prisão para o crime de tráfico de estupefaciente (tentativa), não viola nenhuma vinculação legal nem se revela manifestamente desproporcionada, pelo que deve ser mantido.
Nesta instância, o Ministério Público mantém a posição já assumida na resposta à motivação do recurso.
Foram corridos vistos.
2. Os Factos provados
Nos autos foram apurados, em síntese, os seguintes factos:
– No dia 1 de Maio de 2011, cerca das 20:30 horas, o 1.o arguido, que acabou de chegar a Macau através do voo n.o AK56 proveniente de Kuala Lumpur da Malásia, foi interceptado pelo pessoal da Polícia Judiciária na zona de levantamento de bagagens no Aeroporto Internacional de Macau, na sequência do que foi descoberto que o arguido trouxe consigo, no interior de uma bagagem, um total de 479,64 gramas líquidos de Heroína, a ele entregue previamente naquele país por um indivíduo de identidade não apurada mas conhecida por “D”, para ser transportada a Macau e entregue depois a outro indivíduo a ser indicado por tal “D”;
– Depois de detido policialmente, o arguido, em colaboração com a Polícia de Macau, entrou em contacto com tal “D” por via de SMS de telemóvel, tendo esse “D” exigido ao arguido que se deslocasse a um hotel para entregar tal bagagem a uma senhora conhecida por “E” (que veio a ser a 2.a arguida);
– A 2.a arguida, sob instrução dada por um indivíduo no Interior da China, com identidade não apurada mas conhecido por “C”, veio a Macau em 30 de Abril de 2011 para efeitos de receber a droga supra referida no dito hotel para depois levar a droga ao tal “C” no Interior da China;
– No dia 1 de Maio de 2011, às 23:00 horas e tal, a Polícia Judiciária levou o 1.o arguido ao salão do tal hotel, para proceder à entrega da droga à arguida nos termos indicados pelo “D”;
– Às 23:14 horas do mesmo dia, a arguida chegou ao salão do hotel conforme a instrução dada pelo “C”, e levou, do arguido, tal bagagem (que entretanto já não continha a droga, por ter sido previamente retirada pela Polícia), na sequência do que foi interceptada pelo pessoal da Polícia Judiciária;
– Os dois arguidos agiram livre, voluntária e conscientemente, sem autorização legal, e apesar de saberem que a sua conduta era proibida e punível por lei;
– Os dois arguidos são delinquentes primários em Macau;
– O 1.o arguido declarou trabalhar como operário de construção civil, com quinhentos dólares americanos de rendimento mensal, com curso universitário completo, e com os pais a seu cargo;
– A 2.a arguida declarou trabalhar como tesoureira, com três mil renminbis de rendimento mensal, e com curso secundário elementar completo.
- Ambos os arguidos não são residentes de Macau.
3. O direito
São as seguintes questões suscitadas pela recorrente no presente recurso:
- Se se deve qualificar a conduta da recorrente como meros actos preparatórios da prática do crime de tráfico de droga, não sendo portanto punível;
- Se se deve enquadrar a conduta da recorrente na figura de tentativa impossível, não punível por inexistência manifesta do objecto essencial à consumação do crime; e
- Se se deve proceder à redução da pena concreta.
1. Actos preparatórios e actos de execução
Alega a recorrente que, face à factualidade apurada nos autos, ela praticou meros actos preparatórios de execução do crime imputado, que não pode ser consumado porque não havia droga na mala que lhe foi entregue pelo arguido.
Ora, é consabido que o Código Penal de 1886 definia, no seu art.º 14.º, os actos preparatórios como “os actos externos conducentes a facilitar ou preparar a execução do crime, que não constituam ainda começo de execução”, mas não continha uma definição de actos de execução.
Por sua vez, a lei penal ora vigente em Macau não dá uma noção de actos preparatórios, mas sim a noção de actos de execução (n.º 2 do art.º 21.º do Código Penal de Macau).
Daí decorre que os actos preparatórios são agora delimitados por via de exclusão, devendo entender como tais aqueles actos do iter criminis que já estão para além da resolução de realizar o tipo-de-ilícito, mas não cabem ainda na previsão do referido n.º 2 do art.º 21.º, que tem o seguinte teor:
Artigo 21.º
(Tentativa)
1. Há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se.
2. São actos de execução:
a) Os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime;
b) Os que forem idóneos a produzir o resultado típico; ou
c) Os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos indicados nas alíneas anteriores.
No caso vertente, resulta da matéria de facto provada o seguinte:
O 1.º arguido B, já detido, colaborou com a Polícia de Macau e entrou em contacto com “D”, indivíduo que lhe tinha entregue droga para ser transportada a Macau e entregue depois a outro indivíduo a ser indicad.
E esse “D” exigiu ao arguido que se deslocasse a um hotel para entregar a bagagem que continha droga a uma senhora conhecida por “E”, que veio a ser apurada como a 2.a arguida ora recorrente.
Por sua vez, a 2.a arguida, sob instrução dada por um indivíduo no Interior da China, conhecido por “C”, veio a Macau em 30 de Abril de 2011 a fim de receber a droga supra referida no dito hotel para depois levá-la para o Interior da China e entregar a tal “C”.
E no dia 1 de Maio de 2011, às 23:00 horas e tal, a Polícia Judiciária levou o 1.o arguido ao salão do hotel, com a referida bagagem, para proceder à entrega da droga à 2.a arguida nos termos indicados pelo “D”.
Às 23:14 horas do mesmo dia, e conforme a instrução dada pelo “C”, a 2.a arguida chegou ao salão do hotel, onde recebeu do 1.o arguido tal bagagem, que já não continha a droga, por ter sido previamente retirada pela Polícia.
Ora, face à factualidade acima descrita, afigura-se não haver dúvidas que se está já fora do âmbito dos actos preparatórios, já que a conduta da recorrente não se limitou na vinda a Macau e na hospedagem no hotel, mas sim foi muito mais longe: ela foi ao encontro com o 1.o arguido, teve contacto com ele e recebeu do mesmo a bagagem que continha inicialmente a droga, tudo conforme o combinado e o bem planeado.
Na realidade, a bagagem que a recorrente recebeu deveria conter a droga, se não fosse a intervenção da Polícia, que deteve o 1.o arguido e retirou da bagagem a droga.
E a actuação da recorrente, conforme a instrução dada pelo “C”, tem como finalidade receber a droga que o 1.o arguido trouxe para Macau e levá-la para o Interior da China.
É de salientar que a conduta dolosa da recorrente faz parte de todo o processo desencadeado entre os países e zonas diferentes e manobrados por um grupo composto por várias pessoas, directa ou indirectamente ligadas entre si, com vista ao tráfico transfronteiriço da droga.
E mesmo que não se tenha provado o acordo prévio entre a ora recorrente e o 1.o arguido, certo é que a recorrente agiu conforme uma prévia combinação do grupo, integrando-se a sua conduta numa actuação conjunta com uma única finalidade de tráfico da droga.
Está assim verificada uma das situações em que os actos devem ser qualificados como de execução, e não meros preparatórios, que é precisamente a prevista na al. c) do n.º 2 do art.º 21.º do CPM.
A conduta da recorrente faz esperar que, se não se verificassem circunstâncias imprevisíveis, a recorrente teria recebido já a droga e tudo teria passado como ilicitamente planeado.
Não merece censura a qualificação jurídica operada pelo Tribunal a quo.
2. Tentativa impossível
Nos termos do art.. 22.. n.. 3 do Código Penal de Macau, “a tentativa não é punível quando for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objecto essencial à consumação do crime”.
Refere-se à figura chamada tentativa impossível.
Repare-se que só existe tentativa impossível não punível quando for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objecto essencial à consumação do crime, pelo que a inidoneidade do meio ou a carência do objecto, salvo nos caso em que são manifestas, não constituem obstáculo à punibilidade da tentativa.
E a inidoneidade do meio ou a carência do objecto não devem ser aferidas através daquilo que o agente representa, mas sim através das regras da experiência comum ou da causalidade adequada, portanto objectivamente, segundo o critério da generalidade das pessoas.1
Por outras palavras, a tentativa não é punível só naqueles casos em que a inidoneidade do meio ou a inexistência do objecto seja clara e manifestamente perceptível para a generalidade das pessoas.
No ensinamento do Prof. Figueiredo Dias, “como indiscutivelmente resulta do preceito citado, a nossa lei equipara em geral e em princípio a tentativa inidónea à tentativa idónea: salvo quando a inaptidão dos meios ou a carência do objecto sejam manifestas, a tentativa continua a ser punível apesar de a realização do facto estar irremediavelmente destinada a não se consumar”.
E “a tentativa impossível será punida se, razoavelmente, segundo as circunstâncias do caso e de acordo com juízo ex ante, ela era ainda aparentemente possível ou não era já manifestamente impossível”.2
Ainda no entendimento de Faria Costa, o verdadeiro cerne da punibilidade da tentativa reside na avaliação da perigosidade referida no bem jurídico, sendo certo que nesta hipótese, em boas contas, o bem jurídico não existe: o que há é uma aparência de bem jurídico e neste sentido pareceria que a tentativa impossível, quando não fosse manifesta a inexistência do objecto, também não deveria ser punível, pois que falta o bem jurídico. Todavia, tem de se fazer apelo, neste ponto, a uma ideia de normalidade – segundo as aparências – que se baseia num juízo ex ante de prognose póstuma. É que, entende-se, dado o circunstancialismo em que o agente autuou, o desvalor da acção merece ser punido não obstante não existir o bem jurídico. E merece-o porque denotou perigosidade em relação a um bem jurídico, ainda que este assuma a forma de mera aparência. Mas mesmo que assim se não entenda, é correcto dizer-se que o Direito Penal, ao visar primacialmente a protecção de bens jurídicos precipitados no tipo legal, não pode esquecer, do mesmo passo, que a norma incriminadora – na sua dimensão de determinação – também proíbe as condutas que levam à violação ou perigo de violação daqueles bens jurídicos.3
Voltamos ao caso concreto.
Defende a recorrente que, não contendo a bagagem a droga, é manifesta a inexistência do objecto essencial à consumação do crime de tráfico ilícito de estupefacientes, alegando que receber uma mala contendo roupas e não qualquer substância psicotrópica configuraria, para a generalidade das pessoas, uma situação manifestamente impossível de detenção de droga por parte da recorrente.
Não se nos afigura que assim seja.
Repare-se que a falada “generalidade das pessoas” não se deve referir às pessoas normais colocadas nas situações normais e sem qualquer conhecimento das circunstâncias concretas, mas sim colocadas na mesma situação em que se encontra a recorrente, ciente que iria receber uma bagagem contendo no seu interior a droga.
Na realidade, todo o circunstancialismo do nosso caso concreto aponta para a possibilidade, razoável segundo juízo ex ante, de a recorrente vir a receber e deter a droga, fazendo assim consumar o crime.
Não se revela manifestamente perceptível a inexistência do objecto.
Assim sendo, improcede também a questão suscitada pela recorrente.
3. Medida concreta da pena
Insurge-se ainda a recorrente contra a medida concreta da pena, pretendendo a redução para uma pena não superior a 1 ano e 6 meses de prisão.
Nos termos do art.N 40. n. 1 do Código Penal de Macau, a aplicação de penas visa não só a reintegração do agente na sociedade mas também a protecção de bens jurídicos.
E ao abrigo do art.º 65.º do Código Penal de Macau, a determinação da medida da pena é feita “dentro dos limites definidos na lei” e “em função da culpa do agente e das exigências de prevenção criminal”, tanto de prevenção geral como de prevenção especial, atendendo a todos os elementos pertinentes apurados nos autos, nomeadamente os elencados no nr 2 do artigo.
No caso sub judice, o crime praticado pela recorrente, na forma tentada, é punível com a pena de 7 meses e 6 dias de prisão a 10 anos de prisão.
Não resultam dos autos quaisquer circunstâncias que militem a favor da recorrente, com excepção de ser delinquente primária.
A recorrente negou a prática dos factos, declarando não ter conhecimento da existência da droga na bagagem que recebeu.
Destaca-se o peso líquido de heroína apreendida nos autos, a intensidade de dolo da recorrente e o alto grau de ilicitude dos factos, revelados pela forma como foi realizado o crime, com todos os passos bem planeados.
A recorrente, sendo residente do interior da R.P.C., deslocou-se a Macau com propósito de receber uma quantidade elevada de Heroína, com peso líquido de 479.64 gramas, para depois levar para o Interior da China.
Tudo aponta para o dolo intenso da recorrente e a gravidade dos factos ilícitos.
No que tange às finalidades da pena, são prementes as exigências de prevenção geral, impondo-se prevenir a prática do crime em causa, com carácter transfronteiriço, que põe em risco a saúde pública e a paz social.
Tudo ponderado, não se afigura excessiva a pena de 4 anos de prisão concretamente aplicada à recorrente.
E tal como tem entendido este Tribunal, “Ao Tribunal de Última Instância, como Tribunal especialmente vocacionado para controlar a boa aplicação do Direito, não cabe imiscuir-se na fixação da medida concreta da pena, desde que não tenham sido violadas vinculações legais – como por exemplo, a dos limites da penalidade – ou regras da experiência, nem a medida da pena encontrada se revele completamente desproporcionada”4, pelo que se não se estiver perante essas situações, como é no caso vertente, o Tribunal de Última Instância não deve intervir na fixação da dosimetria concreta da pena.
É de concluir pela manifesta improcedência da pretensão da recorrente.
4. Decisão
Face ao expendido, acordam em rejeitar o recurso por ser manifestamente improcedente.
Nos termos do art.º 410.º n.º 4 do Código de Processo Penal de Macau, é a recorrente condenada a pagar 4 UC.
Custas pela recorrente, com a taxa de justiça fixada em 4 UC.
Macau, 14 de Dezembro de 2012
Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
1 Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado e Comentado, 16.ª edição, p. 125 e 126.
2 J. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª edição, p.713 a 716.
3 Cfr. Faria Costa, Jornadas de Direito Crimina, CEJ, p. 165.
4 Acórdãos do TUI, de 23-1-2008, 19-9-2008, 29-4-2009 e 28-9-2011, nos Processos n.ºs 29/2008, 57/2007, 11/2009 e 35/2011, respectivamente.
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20
Processo n.º 74/2012