Proc. nº 615/2010
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 20/10/2011
Descritores: - Declaração de remissão/quitação
- Reconvenção
I- A remissão consiste no que é vulgarmente designado por perdão de dívida.
II – A quitação (ou recibo, no caso de obrigação pecuniária) é a declaração do credor, corporizada num documento, de que recebeu a prestação.
III – O reconhecimento negativo de dívida é o negócio pelo qual o possível credor declara vinculativamente, perante a contraparte, que a obrigação não existe.
IV – O reconhecimento negativo da dívida pode ser elemento de uma transacção, se o credor obtém, em troca do reconhecimento, uma concessão; mas não o é, se não se obtém nada em troca, havendo então um contrato de reconhecimento ou fixação unilateral, que se distingue da transacção por não haver concessões recíprocas.
V – A remissão de créditos do contrato de trabalho é possível após extinção das relações laborais.
VI- Improcede a reconvenção deduzida na contestação com vista á devolução das importâncias em dinheiro pagas a título de gorjetas com base no enriquecimento sem causa, se tais somas foram entregues como modo de comporem a parte variável do salário e que fazem parte integrante.
Proc. N. 615/2010
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
I- Relatório
A, com os demais sinais dos autos, moveu contra a STDM acção de processo comum de trabalho pedindo a condenação desta no pagamento da indemnização no valor de Mop$ 1.368.480,00, correspondente aos descansos semanais, feriados obrigatórios e não gozados desde o início da relação laboral até ao seu termo.
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Na contestação, a ré STDM suscitou as excepções de prescrição e de remissão, defendeu-se por impugnação e deduziu reconvenção contra a autora.
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No despacho saneador, o tribunal de 1ª instância julgou prescritos os créditos até 16/09/1989, não se pronunciou sobre a excepção de remissão e nada disse sobre a reconvenção.
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A STDM recorreu, então, do saneador na parte em que não conheceu da remissão invocada, mas a fls. 428 veio desistir do recurso (desistência que fora já homologada por despacho de fls. 438).
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Os autos prosseguiram os seus normais trâmites, vindo a final a ser proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente e a ré absolvida do pedido. Absolveu também a autora do pedido reconvencional.
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É dessa sentença que agora vem interposto o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações a autora apresentou as conclusões seguintes:
A - O Pedido Reconvencional formulado teria que ter sido indeferido, por falta de cumprimento dos requisitos previstos no art. 17º do Código de Processo de Trabalho, sendo o Despacho que o admitiu nulo - cfr. art. 417º, nº 4 e 571º, nº 1 alínea b) do C.P.C..
B - O MMº Juiz ad quo, por que o pedido reconvencional não cabe dentro do âmbito do Processo Comum de Trabalho interposto, nem em nada se relaciona com os Direitos e Deveres da A. e a relação laboral estabelecida com a ora recorrida, deveria tê-lo desentranhado e remetido para os meios comuns, sendo incompetente para o julgar - cfr. art. 17º do C.P.T. e 30 e ss. do C.P.C, com o que a Sentença está ferida da nulidade prevista no art. 571º, nº 1 alínea d) do C.P.C..
C - Ao caso sub judicio apenas se pode aplicar o R.J.R.T. da R.A.E.M., uma vez que o mesmo não contém lacuna que deva ser integrada, não se podendo fundar a Sentença recorrida no art. 854º do Código Civil - art. 3º do D.L. 39/99/M e art 6º, nº 3, 8º, 9º do C.C. e 25º e 33º do R.J.R.T.
D - De acordo com o disposto no art. 33º do Decreto-Lei nº 84/89/M, de 03 de Abril, os direitos dos trabalhadores a créditos laborais, designadamente a salários por trabalho efectivamente prestado, são inalienáveis e irrenunciáveis.
E - Ao não aplicar ao caso concreto a norma do art. 33º do R.J.R.T., a Douta Sentença recorrida sofre de nulidade - art. 571º, nº 1 alínea d) do C.P.C..
F - Os créditos laborais dos trabalhadores da R.A.E.M. não têm um tratamento diferenciado, i.e., indisponíveis na vigência do contrato de trabalho e disponíveis após essa vigência.
G - Uma tal intepretação, no sentido da sua disponibilidade após a cessação da relação laboral, não resulta nem da letra da Lei, nem do seu espírito, nem das circunstâncias efectivas e históricas em que foi criada.
H - Bem como violaria o Princípio da Igualdade, pois os direitos dos trabalhadores nas mesma circunstâncias da recorrente têm vindo a ser acauteladas pelos Tribunais da R.A.E.M., existindo sobre a questão Jurisprudência Assente.
I - A “Declaração” assinada pela recorrente não constitui, por falta de todos os legais requisitos e por violação do art. 33º do R.J.R.T. uma remissão ou renúncia abdicativa, sendo nula e de nenhum efeito.
J - A “Declaração” assinada pela recorrente é vaga e imprecisa, sendo certo que os requisitos do art. 854º do C.C., sem conceder, são a existência de um direito e não a mera hipótese de existência ou probabilidade de existência do mesmo, e a certeza, pela concretização, do direito a que se renúncia, quer pela sua especificação exacta, quer pelo reconhecimento da sua existência, o que não acontece in casu.
L - A “Declaração” da recorrente e documentos constantes dos autos, reportam-se a um “prémio de serviço” e não a um qualquer direito efectivado, não representando, ainda, a perda de um valor pecuniário/patrimonial, por si só e sem contrapartida.
M - Ainda, para que se dê a remissão/renúncia consensual do direito, nos termos do art. 854º do C.C., é condição essencial o consentimento do devedor na remissão, que inexiste nesta concreta situação.
N - Ninguém pode dar quitação de um crédito que ignora e cuja titularidade nem sequer lhe é reconhecida, donde, não existindo qualquer remissão/renúncia abdicativa da recorrente aos seus créditos laborais e não sendo permitido retirar qualquer efeito liberatório de uma “Declaração” viciada, está a Decisão recorrida ferida de nulidade - cfr. arts. 854º, 239º e 240º do C.C. e art. 571º, nº 1 alíneas b) e d) do C.P.C..
O - Uma vez mais sem conceder, a “Declaração” e demais documentos que postulam a Decisão recorrida, padecem de erro vício - art. 240º do C.C. - uma vez que a recorrente foi levado a assiná-los pela, então, DSTE e pela R, recorrida, que não ignoravam estar a induzir em erro a recorrente/ declarante, conforme tempestivamente alegou, sendo que tais factos não foram apurados.
P - Atento o inderrogável Princípio do Favor Laboratoris, elaborado atentas as especificidades do Direito de Trabalho e a necessidade de proteger o trabalhador, encontrando-se a solução jurídica que lhe seja mais favorável, uma vez que é a parte débil em qualquer relação laboral, deve sempre entender-se a “Declaração” sub judicio como declaração retratável - na senda da Jurisprudência da R.A.E.M., sob pena de violação do art. 6º do D.L. nº 24/89/M, de 3 de Abril.
Q - Sem conceder, mesmo que a “Declaração” assinada tivesse feito surgir o contrato de remissão de dívida, de acordo com as normas imperativas dos arts. 6º e 2º, alínea d) do R.J.R.T., não podia este surtir qualquer efeito, pois é, em concreto, muitíssimo desfavorável à recorrente, devendo ser considerado ineficaz.
R - A Douta Sentença recorrida é nula por violação do disposto no art. 571º, nº 1 alíneas b) e c) do Código de Processo Civil.
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Em contra-alegações a STDM formulou as seguintes conclusões:
1- O(A) Autor(a) e ora Recorrente celebrou um negócio jurídico de Remissão de Créditos, em 5 de Agosto de 2003.
2- Este negócio jurídico de remissão de créditos (que abrangeu créditos de carácter laboral e também de outros eventuais), foi subscrito e acordado quase 1 ano após o termo de toda e qualquer relação laboral, contratual, negocial ou outra entre a ora R./Recorrida e o(a) ora A./Recorrente.
3- De facto, em 31 de Dezembro de 2002, terminou a relação de trabalho entre as partes aqui em litígio.
4- Tal negócio abolitivo, remissivo, revogatório e extintivo dos créditos, foi feito livre, conscientemente, de boa fé e rendeu cerca de MOP $44.522,67 ao(à) Autor(a), ora Recorrente.
5- Pelo que se não aplicam aos presentes autos os normativos invocados pelo(a) Recorrente, ou sejam, as normas dos artigos 33º do RJRT de 1989, nem as normas dos artigos 1º, 5º e 6º do mesmo RJRT de 1989, nem por outro lado existe qualquer violação por parte do Tribunal recorrido que implique o preenchimento das hipóteses legais previstas nas alíneas b) e / ou d), ambas do número 1 do artigo 571 º do CPC.
6- Não existe, pois, nenhuma nulidade ou invalidade da douta Sentença recorrida, estando a mesma, aliás, profusamente bem fundamentada.
7- Por outro lado, não se verificou a singela e não concretizada alegação do(a) Recorrente, do preenchimento das hipóteses previstas nos artigos 239º e 240º, ambos do Código Civil, qualquer delas, isoladas ou conjuntamente.
8- E da parte do Mmo. TJB, não existiu, ao que entende a aqui Recorrida, nenhum erro de direito ao mandar aplicar à presente relação material controvertida o preceituado nos artigos 854º e seguintes do actual Código Civil, nem errada aplicação do número 1 do artigo 228º do mesmo CC.
9- Cessada a relação laboral há quase 1 ano, não se aplicam ao presente processo, quaisquer normas de índole laboral, porque desconexas da concreta situação de facto existente em 5 de Agosto de 2003.
10- É, neste sentido, desde logo, o muito bem fundado Acórdão do TSI, n.º 294/2007, de 19 de Julho de 2007.
11- Como é deslocada e errónea, a invocação do douto Acórdão do mesmo Tribunal ad quem, nº 270/2007, nem a «analogia das relações e situações jurídicas» o permite nos presentes autos.
12- Toda a Doutrina e a Jurisprudência em Portugal reconhece, valida, admite e aplica os negócios jurídicos de remissão de créditos, após ou além ou fora das relações de trabalho, como foi o caso dos presentes autos.
13- Pelo que deve ser mantida a integral procedência da excepção peremptória de remissão de créditos (laborais e contratuais), como doutamente decidiu o Mmo. Juiz a quo na douta Sentença de primeira instância.
14- De todo o modo deve confirmar-se pela segunda vez, a decisão que foi proferida pelo TJB, e que se traduziu na absolvição da R./Recorrida, nos termos e para os efeitos dos artigos 854º a 858º do Código Civil.
15- A excepção peremptória de remissão de créditos foi invocada pela Ré/Recorrida, nos artigos 18º a 34º e 244º a 301º da Contestação, também para lá se reenviando a argumentação, para todos os legais e devidos efeitos.
16- Deve o Mmo. Tribunal ad quem considerar válida, eficaz e legítima, tais remissão de créditos, titulada pelo Doc. n.º 1 com a Contestação.
17- O mencionado acordo remissivo ou negócio jurídico celebrado entre o(a) A./Recorrente e a ora Ré/Recorrida não foi, nem um acto tácito, não muito menos sequer um mero comportamento concludente, mas sim e expressamente um acordo reduzido a escrito, como é patente e explícito do teor do mesmo Doc. n.º 1 com a Contestação.
18- Mas podia ser até um acto tácito, como se sabe, olhando para a declaração de remissão e de renúncia do(a) Recorrente de não mais demandar extrajudicialmente e / ou judicialmente a aqui Recorrida, o que, manifestamente incumpriu,
19- Bem como já fora alegado pela ora Recorrida nos artigos acima referidos, da Contestação junta aos autos e cuja transcrição se evita por economia processual, mas para lá se remete para todos os efeitos.
20- Quando o(a) A./Recorrente assinou individualmente a sua declaração que titulou a remissão abdicativa, não tendo sido de todo compelido, constrangido, impedido ou de alguma forma condicionado por nenhuma entidade, dirigente ou pessoa ligada à Recorrida, fê-lo de forma livre, espontânea, terminante e consciente.
21- Ao remitir os seus créditos em 5 de Agosto de 2005 sabia que tinha terminado as suas relações com a Recorrida há cerca de 1 ano antes, em 31 de Dezembro de 2002.
22- O(A) ora Recorrente não assinou deste modo nenhum “documento vago, impreciso”, nem muito menos teve em mãos uma “Declaração Viciada”,
23- E, por outro lado, teve total liberdade em celebrar e subscrever, ou não, a remissão abdicativa, como aconteceu, de resto, com colegas seus, os quais, não foram despedidos, nem os seus contratos não foram renovados, e, desde logo, pelo facto da Recorrida não operar nos casinos, desde 31 de Março de 2002!
24- Nem tão pouco foi uma declaração vaga e imprecisa e sem o devido e total efeito liberatório, ao contrário do levantado pelo(a) ora Recorrente.
25- Quanto ainda à alegada vaguidade e imprecisão, referida pelo(a) Recorrente nas suas alegações de Recurso, diremos só que do teor do Doc. n.º 1 com a Contestação, está expresso preto no branco que:
26- “(...) recebido o valor referido, nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a STDM subsiste e, por consequência, nenhuma quantia é por mim exigível, por qualquer forma à STDM (...)”.
27- E que este valor pecuniário atribuído aos ex-trabalhadores da ora Recorrida foram-no a título de “compensação extraordinária de eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença de maternidade e rescisão por acordo do contrato de trabalho”. (em Chinês: “作為支付本人過往在“澳娛”任職期間一切假期(周假、年假、強制性假日及倘有之分娩假期)及協議終止與“澳娛”的僱傭關係等可能衍生權利的額外補償。”).
28- Por isso não é igualmente uma declaração assinada pela recorrente que não constitui, por falta de todos os legais requisitos e por violação do artigo 33º do R.J.R.T. uma remissão ou renúncia abdicativa, sendo nula e de nenhum efeito.
29- É válida, eficaz e vigente, produzindo os efeitos liberatórios ou do negócio obrigacional extintivo que é a remissão de créditos ou de dívidas.
30- Por isso, falecem de sentido e razão os indícios deixados pelo(a) Recorrente, nos vários excertos judiciais apresentados acima e ao longo das contra-alegações, que o Doc. n.º 1 com a Contestação não era válido ou nulo.
31- E nenhuma invalidade, ineficácia, inoponibilidade, inexistência ou irregularidade resulta do texto da declaração que titulou a remissão abdicativa, nem o(a) ora Recorrente sequer expôs uma só válida ideia sobre o assunto, nem na sua douta P.I., nem no seu douto Recurso para o TSI, o Mmo. Tribunal ad quem.
32- Vamos só expor alguma doutrina e jurisprudência, todos no sentido decidido pela Sentença recorrida, e já antes pela Ré/Recorrida: Refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, relatado pelo Desembargador Dr. Ferreira Marques, datado de 19 de Outubro de 2005, com o processo n.º 4301/2005-4, referido também acima, que: “(...) o legislador no art. 8º , n.º 4 da LCCT [a Lei de Cessação do Contrato de Trabalho, aprovada pela Lei n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro, agora revogada pelo Código de Trabalho, cujo artigo correspondente é o número 4 do artigo 394º Código de Trabalho de Portugal] não se limita a estabelecer uma presunção legal, isto é, a dizer que do estabelecimento da compensação pecuniária de natureza global se presume que nela foram incluídos e liquidados(...) O que ali se diz é: se as partes estabelecerem uma compensação pecuniária de natureza global e se não houver estipulação em contrário(...) [o que é exatamente o que se passa nos presentes autos novamente em crise!], deve entender-se que ficam liquidados todos os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua cessação.(...)”. (interpolados da Recorrida).
33- Tal negócio jurídico de remissão de créditos expressou, para além de outros dados relevantes, o seguinte, como aconteceu no presente litígio:
34- “Mais declaro e entendo que, recebido o valor referido. nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a STDM subsiste e, por consequência, nenhuma quantia é por mim exigível, por qualquer forma, à STDM, na medida em que nenhuma das partes deve à outra qualquer compensação relativa ao vínculo laboral.”.
35- Não houve nenhum trespasse, nenhuma alienação de empresa comercial, nem uma transferência forçada de trabalhadores, nenhuma cessão da posição contratual, não existe hoje nem em 2002 ou em 2003 uma sociedade dominante e uma outra «subsidiária» como se lhe refere o(a) Recorrente nas suas doutas alegações de Recurso.
36- E, mais importante que tudo, é que a declaração que consta dos presentes Autos, traduziu da parte do(a) ora Recorrente, uma vontade livre, esclarecida, terminante, decidida, espontânea e consciente, pelo que falece todo o chorrilho ou o conjunto de argumentos utilizados por estes no final das suas presentes alegações e nas conclusões, se nos for permitida a expressão.
37- Quanto ao termo da concessão da Recorrida, iniciada em 1962 e terminada em 31 de Março de 2002, a mesma é conhecida e pública, e existiam em 2003, três concessões autónomas de exploração do regime do jogo e aposta em casino, como acontece hoje.
38- Do processo público de extinção do objecto negocial principal da STDM, S. A., ora Recorrida, dir-se-á em resumo e para além do já vertido acima:
i) A STDM, S. A., ora Recorrida, deixou de estar habilitada a explorar o sector do jogo na RAEM a partir de 1 de Abril de 2002 por caducidade do Contrato de Concessão anteriormente celebrado com o Governo do Território de Macau;
ii) A Sociedade de Jogos de Macau assinou com o Governo da RAEM um Contrato de Concessão de exploração dos jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino, na sequência da atribuição de uma das concessões previstas com a entrada em vigor da Lei n.º 16/2001, de 24 de Setembro de 2001;
iii) A Sociedade de Jogos de Macau obrigou-se, entre outras coisas, a explorar os jogos de fortuna e azar nos casinos, adquirindo a sua propriedade (excepto a do “Casino Lisboa”);
iv) A Sociedade de Jogos de Macau não adquiriu, no negócio jurídico celebrado com a Recorrida, STDM, S.A.,quaisquer licenças, alvarás ou autorizações administrativas de que esta última era beneficiária enquanto anterior titular da concessão;
A Sociedade de Jogos de Macau, que aqui não é parte litigante, sensível à estabilidade social e laboral da RAEM, prometeu contratar os antigos funcionários da STDM, S.A., a ora Recorrida, caso ganhasse uma das licenças de Jogo em concurso;
v) A mesma Sociedade de Jogos de Macau, com a total concordância do Governo da RAEM, e mesmo com o seu incentivo, e com o objectivo de cumprir a promessa (ainda que não vinculativa) aludida no parágrafo anterior, desenhou um modelo de contratação dos cerca de cinco mil trabalhadores anteriormente ao serviço da Ré e Recorrida, evitando que os mesmos entrassem numa situação de desemprego;
vi) A Recorrida, resulta excessivo e abusivo o entendimento que considera terem sido transmitidos para a Sociedade de Jogos de Macau pela STDM, S.A., ora Recorrida, os elementos constitutivos da ora Recorrida, porquanto tem o(a) Recorrente de conceder ser o objecto social da STDM, S.A., bem mais do que aquilo que, presumivelmente e por referência à ausência de qualquer fundamentação ou demonstração do(a) Autor(a) e ora Recorrente nas suas alegações de Recurso, quer, de novo, agora demonstrar;
vii) A Ré e ora Recorrida terminou a exploração dos casinos em 31 de Março de 2002, pelo que os negócios jurídicos de remissão de créditos são válidos, eficazes, vigentes e produzem o efeito extintivo das obrigações, nos termos dos artigos 854º a 858º do Código Civil (e equivalente aos artigos 863º do CC de 1966).
39- O argumento e o raciocínio retirado deste artigo 33º do RJRT de 1989 (ou do anterior, equivalente, artigo 35º do RJRT de 1984) “prova demais”, pelo simples facto do artigo em causa não pressupor nem vedar qualquer negócio de remissão de créditos fora da relação laboral ou para além de urna relação de subordinação ou de temor reverencial.
40- E não estamos em frente a urna cedência de créditos, proibida.
41- Um credor, como foi o caso do(a) Recorrente, que, quase 1 ano após o termo da relação contratual e laboral, de uma forma livre, esclarecida, consciente e responsável - como foi o caso - se declarou e se considerou ressarcido, compensado e devidamente indemnizado de todos os montantes que deva por lei receber, ao celebrarem os referidos negócios jurídicos, tomam estes plenamente válidos e conformes com a Lei, o Direito e a Ordem Jurídica.
42- Ainda que o(a) Recorrente tivesse assinado, como afirma, uma “declaração absolutamente vaga e imprecisa”, veja--se o seguinte excerto Jurisprudencial de Portugal, que corrobora a Recorrida e todo o douto entendimento do Mmo. Tribunal recorrido: “II - No direito das obrigações, a remissão de créditos tem natureza contratual, mas o consenso contratual não tem de constar de documento escrito. III - O documento emitido pelo trabalhador, após a cessação do contrato de trabalho, declarando ter recebido determinada importância monetária por conta da cessação do contrato e que lhe foram liquidados todos os direitos que a lei lhe confere e que nada mais tem a reclamar ou a exigir da empresa consubstancia uma declaração de quitação e uma declaração abdicativa de outros eventuais créditos emergentes do contrato” - Tribunal da Relação do Porto - «Boletim de Sumários de Acórdãos» - n.º 11, sumário nº 1781, Recurso de Apelação n.º 419/00 – 4ª Secção - de 22 de Maio de 2000, cujo relator foi o Senhor Desembargador Sousa Peixoto.
43- Ainda neste sentido, veja-se o que diz, por exemplo, a melhor Doutrina: “(…) Ao dizer que é esse o entendimento que deve ser dado à compensação pecuniária global, na falta de estipulação em contrário, isto é, na falta de outro significado atribuído pelos outorgantes, a lei está, obviamente, a proibir que se possa dar--lhe outro, através de prova de que as partes deixaram de fora ou não quiseram que a compensação abrangesse este ou aquele crédito ou este ou aquele tipo de créditos. Este é, aliás, o entendimento que melhor se coaduna com o pensamento legislativo, que com esta solução visou alcançar a certeza e segurança jurídicas e evitar litígios posteriores ao acordo de cessação do contrato, liquidando-se definitivamente as relações de trabalho por acerto de contas (cfr. Acs. do STJ, de 25.09.96, de 24.02.1992, de 26.05.93, de 16.04.97 e Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 12ª ed., p. 523 e 524).” - do Dr. António de Lemos Monteiro Fernandes, na sua obra “Direito do Trabalho”, 12.ª edição, Coimbra, 2004.
44- Só para concluir a resenha jurisprudencial, veja-se, sem embargo do já exposto acima nas presentes contra-alegações de Recurso: “(...) Assim, tendo as partes nesse acordo estipulado uma compensação de natureza global, entende-se que na mesma foram incluídos e liquidados todos os créditos já vencidos à data da cessação do contrato ou exigíveis em virtude dessa cessação, por não existir, no texto do acordo, estipulação em contrário(art. 8º , n.º 4 da LCCT). Ao contrário do que sustenta a A., concordamos com a jurisprudência e com a doutrina que sustenta que este dispositivo legal consagra uma presunção iuris et de jure, e que, por definição, não admite prova em contrário, ou seja. prova de que não (oram incluídos na compensação os créditos vencidos na data da cessação do contrato.(...)” - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19 de Outubro de 2005, 4ª Secção, já acima referido (o sublinhado e o itálico são ambos do original da douta decisão, também disponível no mesmo sítio da internet, em www.dgsi.pt).
45- Devendo, forçosamente, concluir-se que, tendo a renúncia ou a remissão abdicativa do(a) Autor(a) e ora Recorrente, sido feita quase 1 anos depois de extintos os vínculos entre as partes ora desavindas, esta remissão de créditos é totalmente válida à luz da legislação vigente (artigo 854º do CC).
46- O(A) Recorrente, enquanto simples credor da Recorrida, sem, portanto, qualquer relação de subordinação com esta, assinou e subscreveu a Declaração junta como Docs.n.º 1 e 2 da Contestação, que titulou a citada Remissão de Créditos de uma forma individual, autónoma, livre, consciente, terminante, decidida e espontânea.
47- O(A) aqui Recorrente, limitou-se a afirmar, alegando, que os créditos são indisponíveis, que se violou o princípio do mais favorável e da Igualdade, mas concerteza não desconhecerá que fora e para além das relações de trabalho os créditos são remissíveis, não se verificando nas alegações a indicação de qualquer invalidade que implique que se desconsidere o negócio obrigacional extintivo que consubstancia uma excepção material ou peremptória que extingue todos os direito sem juízo ou fora dele do(a) ora Recorrente.
48- Para além da remissão abdicativa, o(a) Recorrente, recebeu também uma compensação pelo trabalho prestado em dias de descanso semanal, férias anuais e feriados obrigatórios, por mor do processo de contravenção laboral n.º 1476/2002, concluído em 2003.
49- Seria, aliás, gravoso para a certeza e segurança jurídicas, se passados cerca de 7 anos de ter o(a) ora Recorrente acordado, então como uma mera credora de um negócio obrigacional extintivo, voltasse agora, “atrás com as suas palavras”, cerca de 8 anos depois de terminada a relação jurídica de trabalho entre a Recorrida e o(a) Autor(a), e invocasse a nulidade total da Declaração remissiva.
50- Traduzindo-se numa malograda tentativa de um ilegítimo enriquecimento sem causa.
51- De facto, pergunta-se: como é que se pode pedir à Ré e ora Recorrida cerca de MOP $1.368.480,00, conforme a sua douta P.I.?
52- Por isso, e tendo em conta o referido negócio obrigacional extintivo e a excepção material, ambas deduzidas pela aqui Recorrida, a mesma deverá continuar a ser integralmente absolvida do pedido e mantendo-se ou confirmando-se, sempre e constantemente, a sentença recorrida, posta agora em crise pelo presente douto Recurso.
53- Em suma, e para concluir, falece o não alegado e não provado de que se não teria aplicado ao caso, a norma do artigo 33º do RJRT, a única norma aplicável ao caso, segundo refere, invocando não existir Lacuna da Lei (?), e como ainda improcede a invocada “ausência de fundamentação” ou a “omissão de pronúncia” ou o “excesso de pronúncia” implicitamente alegados, a final, pelo(a) Recorrente, ao vir invocar a violação das normas das alíneas b) e d), ambas alíneas do número 1 do artigo 571º do CPC.
54- Devendo absolver-se a Recorrida do pedido do(a) Autor(a) e ora Recorrente, mantendo a douta decisão recorrida, salvo melhor entendimento, Juízo e opinião.
55- Não só não houve erro-vício, como não houve violação do artigo 33º do RJRT de 1989, como não se tratou de “uma declaração absolutamente nula e de nenhum efeito”, nem, muito menos as decisões de Jurisprudência expostas parcialmente - como se referiu acima - referem o que o(a) Recorrente lhes imputa,
56- Bem pelo contrário, todas elas, reafirmando a validade e a eficácia dos acordos ou negócios jurídicos de remissão de créditos, como o caso dos Autos.
57- Acima, de resto, tratou-se de duas dessas decisões, ou excertos, o que não reproduzimos, novamente, aqui, por tautológico.
58- Aliás, e por outro lado, importante para a questão das gratificações ou “gorjetas”, referidas também nas alegações de Recurso, o TUI só, e sempre, decidiu a favor da Recorrida, ou seja, em 21 de Setembro de 2007 e em 22 de Novembro de 2007, o TUI, afirmou, decidiu e assentou, que o salário diário dos croupiers não inclui, nem se mistura, nem corresponde, àquelas prestações não da recorrida mas dos clientes, que são as liberalidades de terceiro ou as doações remuneratórias - Acórdãos n.os 28/2007 e 29/2007 do TUI.
59- Portanto, não fazendo as gratificações dos clientes dos casinos parte do salário diário do(a) Autor(a), em função da sua comparência ao serviço e do trabalho efectivamente prestado (artigos 28º e 29º do RJRT de 1984 e, depois, artigos 26º e 27º do actual RJRT de 1989) bem elevada, e calculada, esteve a quantia monetária recebida por mor do acordo de remissão de dívidas, como defendeu a ora Recorrida, e confirmou o Mmo. Tribunal recorrido.
60- Portanto faleciam, também, aqui as quantias peticionadas pelo(a) A., como falecem os argumentos de que a quantia recebida pelo(a) Recorrente não teria qualquer efeito extintivo e remissivo.
61- Quanto à validade da declaração que extinguiu os direitos do(a) Autor(a) Agosto de 2003, não resistimos a transcrever do Tribunal Constitucional Português, uma pequena parte do Acórdão n.º 600/2004, proferido em 12 de Outubro de 2004, e disponível no Diário da República n.º 277, págs. 17618 e 17619, da 2.ª Secção, relatado pelo Senhor Conselheiro Paulo Cardoso Correia da Mota Pinto e decidido por unanimidade, no processo n.º 797/2003: “(...) Não se vê, porém, como é que a possibilidade de o credor remitir a dívida por contrato com o devedor, nessas condições (isto é, por ocasião da cessação do contrato, ou, mais precisamente: antes de operar a caducidade do contrato de trabalho mas para produzir efeitos depois desta), possa contender com o direito à “retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade”, consagrado na alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição, mesmo admitindo que, nos termos do igualmente invocado artigo 17.º da Lei Fundamental, o regime de direitos, liberdades e garantias lhe seja aplicável. Aliás, o já referido regime do n.º 4 do artigo 8.º da Lei de Cessação do Contrato de Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 64-A/89, correspondente ao artigo 394º, n.º 4, do Código de Trabalho, (aprovado pela Lei n.º 99/03, de 27 de Agosto, em vigor desde 1 de Dezembro de 2003) contém, no que importa, uma estatuição de efeitos semelhantes à que ora está em causa, e nunca foi julgado inconstitucional. (...)”.
62- Portanto, os Tribunais das Ordens Jurídicas de Macau e de Portugal, como os Dois Códigos Civis de 1966 e de 1999, validam totalmente o acordo celebrado entre a Recorrida e o(a) Recorrente.
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A STDM também apresentou recurso subordinado, em cujas alegações concluiu:
1- Sem prejuízo de melhor entendimento e Juízo, deve proceder o Pedido Reconvencional deduzido pela Ré, aqui Recorrente Subordinada, conhecendo-se dos pedidos ínsitos na mesma nos respectivos artigos 324º e seguintes da Contestação e Reconvenção,
2- Em especial, sobre a reconvenção: o locupletamento sem causa do(a) Reconvindo(a) à custa da Ré e Recorrente Subordinada, em MOP $4.813.986,00, que traduz o valor das luvas, gratificações, prémios irregulares ou gorjetas que o(a) aqui Recorrido(a) Subordinado(a) recebeu e que,
3- De uma forma repetida e excessiva, procura agora no presente pleito, enriquecer-se novamente à custa da Ré e aqui Recorrente Subordinada, ao peticionar uma quantia pecuniária por pretensa falta de descansos semanais, anuais e feriados obrigatórios,
4- Descurando-se o facto essencial de ter auferido um elevadíssimo rendimento ao longo dos anos em que prestou serviço e foi funcionário(a) ou empregado da Ré e Recorrente Subordinada,
5- Desde logo, por mor das luvas, gratificações ou gorjetas prestadas pelos clientes e distribuídas pela Ré e aqui a Recorrente Subordinada.
6- O Mmo. Juiz a quo considerou não estarem preenchidos os fundamentos do instituto “enriquecimento sem causa” previstos no Código Civil.
7- Importa referir, desde logo, que houve revelia operante do(a) A. e ora Recorrido(a) Subordinado(a), pois, uma vez notificado(a) para responder, contestar, impugnar a Reconvenção em sede de resposta à Contestação, manteve o silêncio.
8- Tal silêncio tem a comi nação dada pelo número 1 do artigo 32º do CPT, isto é, consideram-se reconhecidos os factos articulados pelo autor e é logo proferida sentença, julgando a causa conforme for de direito.
9- Em consequência, todos os factos alegados nos artigos 3240 e seguintes da Contestação e Reconvenção deveriam ter sido considerados reconhecidos e, em consequência, provados.
10- O Tribunal a quo não se pronunciou sobre tal revelia operante em relação à Reconvenção da ora Recorrente Subordinada, a qual é uma contra-acção, que deve seguir os mesmos termos de uma petição inicial.
11- O(a) Recorrido(a) Subordinado(a) deveria ter sido condenado(a) de preceito no Pedido Reconvencional.
12- A causa para o enriquecimento do(a) ora Recorrido(a) Subordinado(a) e o consequente empobrecimento da Recorrente Subordinada assentava na renúncia expressa daquele(a) primeiro à remuneração em dias de descanso (semanal, anual e feriados obrigatórios).
13- Apenas por ter aceitado não ser remunerado(a) durante a relação laboral, a R., ora Recorrente Subordinada, permitiu ao(à) A., ora Recorrido(a) Subordinado(a), participar no esquema das gorjetas entregues pelos Clientes da Ré.
14- Isto é, a causa deixou de existir no momento em que a acção foi intentada, passando, no entendimento da Recorrente Subordinada, o(a) A./Reconvindo(a)/Recorrido(a) Subordinado(a) a estar obrigado(a) a restituir o indevidamente recebido a título de gorjetas.
15- Ao receber parte das gorjetas, cuja causa para o seu recebimento era o facto de não ser remunerado(a) nos seus dias de descanso, parece forçoso concluir que o(a) Recorrido(a) Subordinado(a) enriqueceu à custa do empobrecimento da Ré, ora Recorrente Subordinada, quando intentou a presente acção.
16- Não é só quando não há causa para as deslocações pecuniárias que o instituto do “enriquecimento sem causa” pode ser invocado - como parece inferir-se daquilo que doutamente refere a douta Sentença recorrida - mas também quando a causa para essa deslocação deixa de existir.
17- Assim sendo, requer-se a V. Exas do Tribunal ad quem o conhecimento da Reconvenção e dos pedidos nela ínsitos, seguindo-se os demais termos do processo.
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Cumpre decidir.
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II- Os factos
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
Nestes autos foi dada por assente a seguinte factualidade:
a) O A. trabalhou para a R. entre 04.04.1963 e 25.07.2002 inicialmente como Assistente de Clientes e após 1984 como croupier.
b) Como contrapartida da actividade que exercia na R., o A. durante o período referido em A), recebeu, uma quantia fixa diária e outra variável resultante das gorjetas entregues pelos clientes da R. as quais eram por esta reunidas, contabilizadas e distribuídas.
c) Entre os anos de 1989 e 2004, o A. recebeu ao serviço da R. os seguintes rendimentos anuais:
1989 – MOP$243.720,00
1990 – MOP$295.500,00
1991– MOP$307.340,00
1992 – MOP$323.040,00
1993 – MOP$312.620,00
1994 – MOP$329.180,00
1995 – MOP$327.420,00
1996 – MOP$306.400,00
1997 – MOP$295.980,00
1998 – MOP$281.980,00
1999 – MOP$254.780,00
2000 – MOP$269.480,00
2001 – MOP$262.140,00
2002 – MOP$228.300,00
2003 – MOP$286.541,00
2004 – MOP$344.369,00
d) O A. prestou serviços em turnos, conforme os horários fixados pela entidade patronal.
e) A ordem e o horário dos turnos são os seguintes:
- 1º dia: das 15.00 ás 19.00 horas e das 23.00 às 03.00 horas do dia seguinte;
- 2º dia: das 11.00 ás 15.00 horas e das 19.00 às 23.00 horas;
- 3º dia: das 07.00 ás 11.00 horas e das 03.00 às 07.00 horas do dia seguinte;
f) Em 05 de Agosto de 2003 o A. apôs a sua assinatura no documento de fls. 367 do qual consta: “Eu, (...) recebi, voluntariamente (...) a quantia de MOP$44.522,67 (...), da STDM, referente ao pagamento de compensação extraordinária de eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença de maternidade e rescisão por acordo do contrato de trabalho, decorrentes do vínculo laboral com a STDM. (...) entendo que, recebido o valor referido, nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a STDM subsiste e, por consequência, nenhuma quantia é por mim exigível, por qualquer forma, à STDM, na medida em que nenhuma das partes deve à outra qualquer compensação relativa ao vínculo laboral.”
g) A quantia fixa diária referida em B) de 02.09.1980 até ao final da relação laboral de MOP$20,00;
h) A A. nunca gozou de descansos semanais;
i) Sem que, por isso, a R. lhe tenha pago qualquer compensação salarial ou disponibilizado outro dia de descanso por cada dia em que prestou serviço;
j) A A. trabalhou para a R. nos feriados obrigatórios;
k) Sem que a R. lhe tenha pago qualquer compensação salarial;
l) O A. gozou os seguintes dias sem remuneração:
1996: 1 dia,
2000: 6 dias
m) Desde 03.09.1989 o A. gozou 30 dias de descanso remunerados por ano.
Uma vez que nestes autos já foi proferida decisão quanto á matéria da prescrição resta-nos apreciar as seguintes questões:
1. Quais as consequências jurídicas da declaração da A. referida em f);
2. Se a parte auferida pela A. composta pelas gorjetas pagas pelos clientes da R. são consideradas como fazendo parte do salário pago pela R. ao A.;
3. Se a A. gozou os dias de descanso semanal e feriados obrigatórios remunerados a que tivesse direito e em caso negativo se foi compensado pelo trabalho prestado nesses dias, ou se tal não aconteceu, qual o valor da indemnização a que possa ter direito;
4. Dos juros moratórios pedidos;
5. Do direito da Ré a receber da A. os montantes pagos à A. a título de gorjetas.
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III- O Direito
Introdução
Depois da desistência pela STDM, do recurso interposto do despacho saneador, subsistem duas censuras jurisdicionais à sentença final: o principal/independente da autora; o subordinado, da STDM.
No primeiro, ataca-se a decisão ali tomada no que concerne à validade e eficácia da declaração que a recorrente assinou – segundo a qual, com o recebimento de determinada quantia ali mencionada, nenhuma outra tinha a receber da STDM (facto f), da matéria assente).
No segundo, visa-se acometer a sentença no que respeita à decisão tomada sobre o pedido reconvencional, em que a ora recorrente pretendia o recebimento das quantias pagas a título de gorjetas.
Analisemos o primeiro.
*
1- A sentença serviu-se de um acórdão do TUI, tirado em 30/07/2008, no Processo nº 27/2008, de que transcreveu a parte com interesse para o caso, e concluiu que a autora, com a referida declaração, não tinha o direito que invocou.
A recorrente conhece bem o teor deste aresto dada a transcrição que dele foi feito na sentença. Ainda assim, não nos dispensamos de fazer a mesma transcrição, para que, numa abordagem integral da questão, se chegue à melhor compreensão da solução.
O acórdão do TUI diz:
“A remissão é o contrato pelo qual o credor, “com a aquiescência do devedor”, renuncia ao poder de exigir a prestação devida, afastando definitivamente da sua esfera jurídica os instrumentos de tutela do seu interesse”1.
E acrescenta ANTUNES VARELA, “o interesse do credor a que a obrigação se encontra adstrita não chega a ser satisfeito, nem sequer indirecta ou potencialmente.
A obrigação extingue-se sem haver lugar a prestação2”.
A remissão consiste no que é vulgarmente designado por perdão de dívida3.
Aliás, remitir significa perdoar.
Ora, não parece ter sido isto que sucedeu, em face da declaração da autora.
A autora declarou que recebeu a prestação, que quantificou. E reconheceu mais nada ser devido em relação à relação laboral que já se tinha extinguido.
Mas não quis perdoar a totalidade ou mesmo parte da dívida, ou pelo menos não é isso que resulta da declaração, nem foi alegado ter sido essa a sua intenção.
Parece, portanto, tratar-se de quitação ou recibo, que é a declaração do credor, corporizada num documento, de que recebeu a prestação, prevista no art. 776.º do Código Civil.
Explicam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA4 que a “quitação é muitas vezes, como Carbonnier (Droit civil, 4, 1982, n.º 129, pág. 538) justamente observa, não uma simples declaração de recebimento da prestação, mas a ampla declaração de que o solvens já nada deve ao accipiens, seja a título do crédito extinto, seja a qualquer outro título (quittance pour solde de tout compte)”.
Poderá, desta maneira, a quitação, ser acompanhada de reconhecimento negativo de dívida, que é, na lição de ANTUNES VARELA5, o negócio “pelo qual o possível credor declara vinculativamente, perante a contraparte, que a obrigação não existe.
...
O reconhecimento negativo de dívida, assente sobre a convicção (declarada) da inexistência da obrigação, não se confunde com a remissão, que é a perda voluntária dum direito de crédito existente”.
Claro que o reconhecimento negativo da dívida pode dissimular uma remissão, mas para isso há que alegar e provar o facto, o que não aconteceu.
Explica VAZ SERRA6 nos trabalhos preparatórios do Código Civil de 1966, que “o reconhecimento negativo propriamente dito distingue-se da remissão, pois, ao passo que, nesta, existe apenas a vontade de remitir (isto é, de abandonar o crédito), naquele, a vontade é a de pôr termo a um estado de incerteza acerca da existência do crédito”.
E, como ensina o mesmo autor, noutra obra dos mesmos trabalhos preparatórios, a remissão não é de presumir, “dado que, em regra, a quitação não é passada com essa finalidade”7.
O reconhecimento negativo da dívida pode, de outra banda, “ser elemento de uma transacção, se o credor obtém, em troca do reconhecimento, uma concessão; mas não o é, se não se obtém nada em troca, havendo então um contrato de reconhecimento ou fixação unilateral, que se distingue da transacção por não haver concessões recíprocas”8 9.
Mas a transacção preventiva ou extrajudicial não dispensa “uma controvérsia entre as partes, como base ou fundamento de um litígio eventual ou futuro: uma há-de afirmar a juridicidade de certa pretensão, e a outra negá-la”10.
Mas nem da declaração escrita, nem das alegações das partes no processo, resulta tal controvérsia.
Em conclusão, afigura-se-nos mais preciso qualificar a declaração da autora como uma quitação acompanhada de reconhecimento negativo de dívida.
Seja como for, trate-se de quitação, de remissão ou de transacção, os efeitos são semelhantes, já que, como se verá, se está perante direitos disponíveis, uma vez que a relação laboral já havia cessado, pelo que a consequência é a inexistência do direito de crédito contra a ré.
4. Insusceptibilidade de cessão de crédito de salário. Impossibilidade de renúncia a salário. Vícios da vontade
Nas alegações de recurso para o TSI, a autora veio defender que o art. 33.º do RJRL não permite a cedência de créditos, por força do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador. E os trabalhadores estiveram sempre sob alçada económica e disciplinar da ré, já que a B controla a C, pelo que a autora não teve uma vontade livre e esclarecida quando assinaram as declarações.
Mas a declaração de quitação não constitui qualquer cedência de créditos (a quem?).
Acresce que a cedência de créditos só está vedada enquanto durar a relação de trabalho e esta já se tinha extinguido quando foi emitida a quitação.
Por outro lado, ainda que tivesse havido renúncia a créditos, ou seja remissão, ela seria possível porque efectuada após extinção da relação de trabalho.
É o que defende a generalidade da doutrina. Escreve PEDRO ROMANO MARTINEZ11:
“Relacionada com a irredutibilidade12 encontra-se a impossibilidade de renúncia, de cessão, de compensação e de penhora da retribuição. Estas limitações, excepção feita à penhora, só têm sentido na pendência da relação laboral; cessando a subordinação jurídica, o trabalhador deixa de estar numa situação de dependência, que justifica a tutela por via destas limitações”.
Quanto à alegação de que a autora não teve uma vontade livre e esclarecida quando assinou a declaração, a mesma é irrelevante nesta fase, já que a autora não alegou no momento próprio factos integradores de vícios da vontade.
5. Normas convencionais e declarações negociais. O princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador
O Acórdão recorrido considerou que o art. 6.º do RJRL não permitia o acordo das partes pelo qual a autora, trabalhadora, declarasse remitir a dívida para com a ré, tendo esta declaração violado o princípio de tratamento mais favorável dos trabalhadores.
E acrescentou o mesmo Acórdão, referindo-se ao princípio de tratamento mais favorável, ele “deve ser tido pelo menos também como farol de interpretação da lei laboral, sob o qual o intérprete-aplicador do direito deve escolher, na dúvida, o sentido ou solução que mais favorável se mostre aos trabalhadores no caso considerado, em virtude do objectivo de protecção do trabalhador que o Direito do Trabalho visa prosseguir”.
Na feliz síntese de BERNARDO LOBO XAVIER13 “o princípio do tratamento mais favorável, no plano da hierarquia das normas, significa que as normas de mais alto grau valem como estabelecendo mínimos, podendo ser derrogadas por outras subalternas, desde que mais favoráveis para o trabalhador. No plano da interpretação, na dúvida sobre o sentido da lei, deverá eleger-se aquele que seja mais benéfico para o trabalhador. Na aplicação no tempo, aplicar-se-ão imediatamente todas as regras do trabalho, no pressuposto de que, havendo um constante progresso social, as novas normas são mais favoráveis para o trabalhador, conservando este, ainda, as regalias adquiridas à sombra de anterior legislação”.
O art. 6.º do RJRL dispõe o seguinte:
“Artigo 6.º
Prevalência de regimes convencionais
São, em princípio, admitidos todos os acordos ou convenções estabelecidos entre os empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos ainda que disponham de modo diferente do estabelecido na presente lei, desde que da sua aplicação não resultem condições de trabalho menos favoráveis para os trabalhadores do que as que resultariam da aplicação da lei”.
Esta norma prevê que as normas convencionais, estipuladas entre empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos, podem afastar o regime das normas legais desde que o regime convencional não seja menos favorável para os trabalhadores do que o regime legal.
Assim, e em primeiro lugar, as normas convencionais de que fala o preceito são normas relativas ao regime do trabalho, para vigorarem enquanto durar a relação laboral.
O acordo dos autos entre a autora e a antiga entidade patronal não é integrado por normas, isto é, não constituem nenhuma regulamentação normativa atinente às condições de trabalho. São antes declarações negociais, pelas quais a autora declara ter recebido as quantias devidas pela relação laboral já extinta e nada mais ter a receber da antiga entidade patronal.
Parece, portanto, que o art. 6.º do RJRL nada tem que ver com a matéria em apreço.
Por outro lado, o art. 6.º do RJRL prescreve, na verdade, o princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, no que respeita à prevalência dos acordos sobre a lei, ao plano da hierarquia das normas.
Mas, no caso dos autos, embora exista um acordo entre partes (entre um ex-trabalhador e uma ex-entidade patronal) não existe nenhuma lei mais favorável ou menos favorável aos trabalhadores ou a ex-trabalhadores, pelo que não se vislumbra, qualquer aplicação do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, na vertente que o art. 6.º do RJRL consagra, que é o da prevalência dos acordos sobre a lei.
Há, é certo, outras vertentes do mesmo princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, por exemplo, no art. 5.º, n.º 1 do RJRL, que é o da manutenção das regalias adquiridas sobre o regime constante do RJRL.
Mas, no caso em apreço não está em causa nenhuma alteração de regime convencional para um regime legal, pelo que a vertente do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, constante do art. 5.º, n.º 1 do RJRL, não aproveitaria à autora.
O Acórdão recorrido invoca, ainda, em abono da sua tese o art. 60.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M, de 14 de Agosto, que institui o regime aplicável à reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho e doenças profissionais.
Tal preceito, no seu n.º 2 fere com a nulidade os actos e os contratos que visem a renúncia aos direitos estabelecidos naquele diploma. Ora, nem nos autos está em causa qualquer acidente de trabalho ou doença profissional, nem a quitação operou qualquer renúncia a direitos da autora.
O art. 60.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M é, pois, inaplicável.
Em suma, a autora não tem o direito que invocou, pelo que a acção estava condenada ao insucesso”.
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Como se vê, está ali tudo dito; seja pela remissão, seja pela quitação, o declarante assumiu livremente nada mais ter a receber do beneficiário da declaração, devendo considerar-se realizadas todas as prestações derivadas da relação laboral.
Trata-se de uma posição que temos, de resto, já subscrito noutros recursos em que o aqui relator foi adjunto. Veja-se, por exemplo, o Ac. do TSI de 28/07/2011, Proc. nº 318/2010, ou nº 316/2010. Olhemos, rapidamente, para o que no primeiro deles se disse:
“…O que verdadeiramente caracteriza o contrato de remissão é a renúncia do credor ao poder de exigir a prestação que lhe é devida pelo devedor. Ao contrário do que acontece com o cumprimento (em que a obrigação se extingue pela realização da prestação devida) e ao contrário do que acontece na consignação, na compensação e na novação (em que o interesse do credor é satisfeito, não através da realização da prestação devida, mas por um meio diferente), na remissão, tal como na confusão e na prescrição, o direito de crédito não chega a funcionar. O interesse do credor a que a obrigação se encontra adstrita não chega a ser satisfeito, nem sequer indirecta ou potencialmente e, todavia, a obrigação extingue-se.
O direito romano admitia a acceptilatio (remissão de uma obrigação verbal, mediante reconhecimento de se ter recebido a prestação, remissão que extinguia o crédito ipso jure), o pactum de non petendo (convenção pela qual o credor prometia ao devedor que não faria valer o crédito, definitiva ou temporariamente, contra todos - pactum in rem - ou contra determinada pessoa - pactum in provissem, produzindo o pacto o efeito de atribuir uma exceptio contra o crédito) e o contrarius consensus (convenção pela qual se extinguia toda uma relação obrigacional, derivada de um contrato consensual, o que só era possível se nenhuma das partes tinha ainda cumprido.
Pode-se dizer, num certo sentido, que, hoje, na remissão, - artigo 854ºdo Código Civil - extinguindo-se a obrigação, o interesse do credor não se satisfaz, nem sequer indirecta ou potencialmente.
Mas mesmo que, ainda porventura por algum excesso de rigor formal, se considerasse que o documento em causa não pudesse ser qualificado de remissão, por se entender ser necessário que a declaração nele contida tivesse carácter remissivo, isto é, que a parte tivesse declarado que renunciava ao direito de exigir esta ou aquela concretizada prestação, não se deixará de estar sempre perante uma declaração de quitação em que se consideravam extintos, por recíproco pagamento, ajustado e efectuado nessa data, toda qualquer compensação emergente da relação laboral, o que vale por dizer que todas as obrigações decorrentes do contrato de trabalho tinham sido cumpridas.
Como diz Leal Amado, uma quitação com aquela amplitude é, sem dúvida, uma quitação sui generis, uma vez que os credores não se limitaram a atestar que receberam esta ou aquela prestação determinada. Ao declarar que recebia as compensações a determinado título e que mais nenhum direito subsistia, por qualquer forma, nada devendo reciprocamente, atestaram que receberam todas as prestações que lhe eram devidas. E essa forma de quitação, por saldo de toda a conta, não deixa de ser admitida em direito.
Perante isto, em vez de se perguntar se o autor renunciou ao direito às prestações que eventualmente lhe seriam devidas em consequência da cessação da relação laboral, perguntar-se-á se essas prestações já se mostram realizadas ou se se mostram extintas, sendo que a resposta a esta última questão, tida como relevante, é seguramente afirmativa, perante a clareza daquela afirmação.
Na verdade, como inequivocamente decorre do teor do documento, os direitos abrangidos pela declaração emitida são os emergentes da relação contratual de natureza profissional que entre A. e Ré se manteve até àquela data”.
Visto o que acaba de citar-se, estamos em condições de, sem mais escusados considerandos, concluir pela improcedência do recurso interposto pela recorrente/autora. Ou seja, as conclusões do recurso dão-se por improcedentes, nos termos das transcrições acima efectuadas, o que tanto serve para rechaçar a imputada nulidade ao julgado impugnado, como para contradizer a posição substantiva que a recorrente ali defende.
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2- É agora o momento de conhecer do recurso subordinado.
A sentença recorrida julgou improcedente a reconvenção e absolveu a autora do pedido respectivo. A recorrente entende, porém, que manutenção das gorjetas na esfera do trabalhador constitui um enriquecimento ilícito (art. 467º do CC) por parte deste.
É preciso começar por dizer que esta é questão de direito, cujo silêncio por banda do trabalhador contra quem foi oposta a reconvenção não gera qualquer efeito cominatório, pelo que se não aplica aqui o disposto no art. 32º do CPT.
Por outro lado, os argumentos da reconvinte/recorrente falecem totalmente, face àquela que tem sido a jurisprudência deste tribunal em matéria de composição do salário dos trabalhadores do casino em inúmeros processos contra a mesma recorrente, STDM.
Esta questão apenas mereceria outra mais detalhada análise, porventura em diferente perspectiva, se o problema substantivo tivesse outros contornos e se o TSI, estudando-os, não tivesse já feito um permanente trilho no mesmo sentido: o de que o salário daqueles trabalhadores envolve uma parte fixa e outra variável (as gorjetas).
Lembremos, por exemplo, o que dissemos no Ac. proferido no Proc, nº 128/2009, de 7/07/2011:
“…tal como o TSI tem defendido, o contrato em causa é de trabalho, porque reúne todas as características próprias deste.
Socorramo-nos do aresto lavrado no Ac. de 19/03/2009, Proc. nº 690/2007:
“Em face do artigo 1079.º do Código Civil, artigos 25º e 27º do anterior RJRL - cfr. artigos 1º, 4), 9º, 2), 57º da actual LRT, Lei 7/2008, de 12 de Agosto, em princípio não aplicável aos contratos findos, face à redacção do disposto no art. 93º -, art. 23°, n.º 3 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, art. 7º do Pacto sobre Direitos Económicos Sociais e Culturais e pela Convenção da OIT n.º 131, direitos que por essa via não deixam de ser tutelados pela própria Lei Básica no seu artigo 40º, decorre, face à factualidade apurada, que parece não restarem quaisquer dúvidas de que nos encontramos perante um verdadeiro e puro contrato de trabalho entre a autora e a ré, em que esta, mediante uma retribuição, sob autoridade, orientações e instruções daquela, começou a trabalhar na área de actividade ligada à exploração de jogos de fortuna ou azar”.
Concordamos com a posição e nada mais temos a acrescentar-lhe.
No que se refere ao valor do salário, pergunta-se: Será que ele apenas é constituído pela parte fixa ou também englobará a parte variável em resultado das gorjetas?
Também neste ponto estamos de acordo com a posição deste TSI, no sentido de que as gorjetas não foram sendo atribuídas a título de mera liberalidade. A liberalidade, em princípio, para assim ser entendida, não deveria ter sido atribuída com carácter de regularidade. E o que está demonstrado nos autos é, precisamente, o contrário.
Depois, não eram gorjetas que o trabalhador do casino guardava para si vindas directamente do cliente apostador. Se assim fosse, poderia dizer-se que o empregador a elas era totalmente alheio, que nenhuma interferência exercia nem na sua distribuição, nem no seu quantitativo e que, portanto, apenas pagava ao seu subordinado o valor remuneratório previamente determinado. Mas não. Eram somas de dinheiro que o trabalhador recebia, sim, mas que tinha que entregar à sua entidade patronal, de quem, posteriormente, apenas recebia uma parte. Locupletamento à custa alheia seria a situação se, tendo o jogador entregue pessoalmente o dinheiro ao trabalhador, a entidade patronal dela, sem mais, se apropriasse totalmente. Mais, haveria aí uma manifesta superioridade de parte a roçar a ilicitude se, contra a vontade do empregado, este fosse obrigado a abrir mão daquilo que o jogador voluntariamente lhe tinha dado. Nenhuma relação laboral assente numa base lícita toleraria tal atitude de ingerência na vida do trabalhador por parte do empregador se não tivesse havido entre ambos um acordo que permitisse a distribuição das gorjetas, que não haviam sido dadas a este, mas àquele. Só um modelo de distribuição pré-determinado confere licitude à acção do empregador. Mas, ao mesmo tempo que assim acontece, não podemos deixar de pensar que, afinal, a entidade empregadora tinha alguma margem de superioridade nessa relação, pois era ela quem geria o dinheiro e, posteriormente, o distribuía segundo um esquema para o qual nenhuma contribuição o trabalhador dera. Ou seja, há aqui assim uma atitude que é própria da supremacia do empregador e que revela bem que este não era um simples “guardador” ou mero “depositário” do dinheiro proveniente das gorjetas.
De resto, mal se compreenderia que qualquer trabalhador aceitasse trabalhar por tão poucas patacas diárias (a parte fixa), se não soubesse que, a elas, acresceria uma quantia bem mais razoável em resultado da distribuição da soma de todas as gorjetas recebidas por si e pelos restantes colegas do casino. Se o salário tem uma função social, que visa conferir dignidade de vida ao trabalhador e ao seu agregado familiar, e de que o empregador dos tempos modernos já não pode alhear-se, então parece que esta entrega permanente ao trabalhador de dinheiro recebido do jogador não pode deixar de ter um sentido remuneratório.
E neste quadro, todos – jogadores, trabalhadores e empregador - ficam bem. Os primeiros, porque satisfeitos, cumprem o seu desejo de generosidade e altruísmo (mas é questão que aqui não tem valor jurídico); os segundos, porque, ao cabo e ao resto, vêem devidamente compensado o resultado do seu trabalho; e o último, porque vê feliz e empenhado o seu empregado, a quem vai pagar com dinheiro que nem sequer sai do seu bolso.
E, já agora, não deixaria de ser contraditório e injusto, e por isso mal se perceberia, que a reclamada “unidade do sistema” consentisse que, para efeito de salário, a gorjeta assim distribuída ficasse de fora do conceito, enquanto para efeito tributário já passasse a ser considerada como “rendimento do trabalho variável” (cfr. art. 2º, Lei n. 2/78/M, de 25 de Fevereiro).
Tudo isso, para concluir que a composição do salário, através de uma parte fixa e outra variável, admitida pelo DL n. 101/84/M, de 25/08 (arts. 27º, n.2 e 29º) e pelo DL n. 24/89/M, de 3/04 (arts. 25º, n.2 e 27º, n.1) permite a integração das gorjetas na segunda.
É para nós, portanto, questão ultrapassada a de que o salário integra uma parte fixa e outra variável. Problema é como calculá-lo: se ao dia, se ao mês e qual o seu valor.
Verdade que o trabalhador recebia uma quantia fixa diária. Verdade também que nos dias em que não trabalhava não recebia remuneração. Mas, o certo é que, para estes casos, a questão está consolidada neste TSI em termos tais que deles não somos capazes de divergir. Veja-se, por exemplo, o que foi dito no Ac. de 14/09, no Rec. N. 407/2006:
“…a “quota-parte” de “gorjetas” a ser distribuída ao Autor, em montante definido unilateralmente pela Ré, integra precisamente o salário mensal do Autor, pois caso contrário e vistas as coisas à luz de um homem médio colocado na situação concreta do ora Autor, ninguém estaria disposto a trabalhar por conta da Ré em tantos anos seguidos nos seus casinos em horários de trabalho por esta fixados…ou seja, em horários de turnos necessariamente árduos para qualquer pessoa humana, se tivessem de ser cumpridos continuadamente em anos seguidos, sabendo entretanto, de antemão, que a prestação fixa do seu salário era de valor muito reduzido”.
E também o Ac. de 15/07/2010, Proc. n. 928/2010:
“…o qual o trabalhador estava obrigado a trabalhar por turnos de seguinte forma:
1º e 6º turnos: das 07h00 às 11h00, e das 03h00 às 07h00;
3º e 5º turnos: das 15h00 às 19h00, e das 23h00 às 003h00 do dia seguinte;
2º e 4º turnos: das 11h00 às 15h00, e das 19h00 às 23h00
Como se sabe, é por imposição legal e pelos termos do contrato de concessão para exploração dos jogos de fortuna e azar que os casinos têm de funcionar ininterruptamente durante 24 horas. Ora, se é compreensível e justificável a fixação dos turnos, nos termos que vimos supra, pela entidade patronal para fazer face à necessidade de assegurar o funcionamento contínuo legalmente imposto dos seus casinos, já custa perceber como é quê é possível os seus trabalhadores afectados aos casinos, em vez de auferirem um salário mensal, que é única forma de pagamento conciliável com a organização dos turnos durante 24 horas para assegurar a continuidade do funcionamento dos casinos, auferirem antes um salário diário determinado em função do número de dias de trabalho em que quis trabalhar e efectivamente prestou serviço. Na verdade, basta dar uma vista de olhos aos turnos fixados e à forma como os turnos estão organizados e distribuídos durante as 24 horas, em especial o 5º turno que se inicia às 23h00 num dia e termina às 03h00 de madrugada no dia seguinte, já se apercebe da impossibilidade prática de determinar o período de trabalho diário para efeitos de cálculo do alegado salário diário”.
Assim sendo, tal como este TSI tem admitido em casos similares, é de considerar que o salário era mensal, para cujo apuramento médio diário entrará o valor conjunto da parte fixa e da variável, tal como feito nos autos.
Neste sentido, entre os mais recentes, vejam-se os acórdãos proferidos nos Processos nºs 780/2007, de 31/03/2011, 423/2008, de 23/06, por exemplo”.
A causa para a percepção daqueles valores a título de gorjeta foi encontrada! A entrega daquele dinheiro aos trabalhadores do casino não foi feita a pretexto de mera liberalidade, é o que asseveramos. E até mesmo que fosse (mas não é, insiste-se), não pareceria ser mais do venire contra factum próprio a atitude da STDM em aparecer subitamente em reconvenção a pedir a devolução de uma importância em dinheiro de que a STDM livremente abrira mão.
A verdade é que se não fosse salário, também pensamos que em caso algum a STDM poderia vir pedir a devolução de algo que lhe não foi dado pelos jogadores afortunados, e portanto não era coisa sua, mas que, em vez disso, foi dado pelos jogadores para ser distribuído pelos trabalhadores. Quer dizer, até nesta perspectiva, sempre seriam importâncias que pertenceriam aos trabalhadores, pelo que nunca pela via reconvencional poderiam voltar à sua esfera.
É a posição que mantemos e que, por isso, torna impossível o preenchimento dos requisitos do enriquecimento sem causa.
Assim, improcedem as conclusões do recurso.
***
IV- Decidindo
Nos termos expostos, acordam em:
1- Negar provimento ao recurso independente interposto da sentença pela autora A, indo assim confirmada nessa parte;
2- Negar provimento ao recurso subordinado interposto da sentença pela STDM acerca da decisão ali tomada sobre o pedido reconvencional por si deduzido, a qual, assim, também nessa parte se confirma.
Custas pelos recorrentes na proporção do decaimento.
TSI, 20 / 10 / 2011
_________________________
José Cândido de Pinho
(Relator)
_________________________
Lai Kin Hong
(Primeiro Juiz-Adjunto) (com declaração de voto)
_________________________
Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
Processo nº 615/2010
Declaração de voto
Subscrevo apenas a parte do Acórdão que decidiu o recurso subordinado interposto pela Ré, já não acompanha, todavia, a a parte sobre a remissão da dívida, nos termos seguintes:
De facto, se é certo que, ao abrigo do disposto no art° 854° do Código Civil, o credor pode remitir a dívida por contrato com o devedor, não é menos verdade que existem restrições legais susceptíveis de invalidar o contrato de remissão, mesmo que este tenha sido celebrado de livre vontade entre ambos os contraentes.
Pois, sendo de natureza contratual que é, a remissão não pode deixar de se sujeitar ao regime geral de validade legalmente estabelecido para negócios jurídicos em geral.
Atendendo ao teor do contrato de remissão que se juntou aos autos, verifica-se que, justamente pelo negócio nele documentado, a autora, ora recorrente, abdicou de todos os créditos, ora peticionados na presente acção, alegadamente gerados a seu favor na execução do contrato de trabalho celebrado entre ela e a ré, em troca de um correspectivo, que se denomina “prémio de serviço”, no valor de MOP$44.522,67.
Confrontando-se este valor com o valor da totalidade dos créditos por ela peticionados na presente acção, vê-se logo que esse “prémio de serviço” fica muito inferior àquele valor peticionado, que é MOP$1.368.480,00, conforme se vê na petição inicial.
Ora, nos termos do disposto no art°6° do Decreto-Lei nº 24/89/M de 03ABR, interpretado a contrario, não são admitidos acordos ou convenções, estabelecidos entre os empregadores e trabalhadores, dos quais resultam condições de trabalho menos favoráveis para os trabalhadores do que as que resultariam da aplicação da lei.
Da leitura da petição inicial, verifica-se que os créditos pela autora ora recorrente reivindicados na presente acção são (alegados) créditos a seu favor resultantes do alegado incumprimento por parte da ré do mínimo das condições de trabalho estabelecidas nesse citado Decreto-Lei nº 24/89/M de 03ABR.
E facilmente se nota que o benefício que o “prémio de serviço” representa para a autora é claramente inferior ao benefício que lhe trará se a presente acção vier a ser julgada procedente tal qual como é peticionado.
Olhando sob outro prisma, o que a autora e a ré convencionaram no contrato de remissão traduz-se realmente num acordo sobre remunerações e compensações menos favorável para a autora, em comparação do que está estabelecido de acordo com o mínimo dos critérios legais.
Assim, dada a natureza imperativa da norma do art° 6° desse citado decreto, um contrato mediante o qual se convencionaram as condições de trabalho aquém do mínimo da protecção dos trabalhadores não pode deixar de ser julgado nulo, por força do disposto no art° 287° do Código Civil, nos termos do qual, salvo excepção expressa em contrário resultante da lei, são nulos os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo.
Tipo da situação essa que sucedeu exactamente no caso sub judice.
Contra esse entendimento nem se diga que in casu, com a cessação das relações de trabalho entre a autora e a ré, o objecto do contrato de remissão deixa de ser créditos integrantes das condições de trabalho, uma vez que a lei, ou seja, o citado art° 6°, visa assegurar aos trabalhadores o mínimo das condições de trabalho, nas quais estão naturalmente incluídas, entre outras, as remunerações e compensações a que os trabalhadores têm direito e que, pela própria natureza de prestações pecuniárias, mesmo após a cessação das respectivas relações de trabalho, não se extinguem nem perdem a dignidade da protecção jurídica, por força do princípio da protecção mínima consagrado no art° 6° do mesmo decreto.
Portanto, o facto de terem sido entretanto cessadas as relações de trabalho entre a autora e a ré nunca pode ser invocado como argumento válido para afastar os trabalhadores do âmbito da protecção mínima estabelecida no art° 6° do citado decreto-lei.
Assim, dado que foi celebrado contra uma norma imperativa, ao abrigo do disposto no art° 279° do Código Civil, deve ser declarado nulo o contrato de remissão, ora invocado pela ré como excepção peremptória, e em consequência julgar procedente o presente recurso determinando a revogação da decisão recorrida.
Eis as razões que me levaram a não acompanhar o presente Acórdão na parte que diz respeito à remissão da dívida.
RAEM,20OUT2011
O juiz adjunto
Lai Kin Hong
1 ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Coimbra, Almedina, Vol. II, Reimpressão da 7.ª ed. de 1997, 2001, p. 243.
2 ANTUNES VARELA, Das Obrigações..., II vol., p. 243.
3 LUÍS M. TELLES DE MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, Coimbra, Almedina, Vol. II, 4.ª ed., 2006, p. 219.
4 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Coimbra, Coimbra Editora, Vol. II, 3.ª ed, 1986, p. 40.
5 ANTUNES VARELA, Das Obrigações..., II vol., p. 252.
6 VAZ SERRA, Remissão, Reconhecimento Negativo da Dívida e Contrato Extintivo da Relação Obrigacional Bilateral, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 43, Julho de 1954, p. 82.
7 VAZ SERRA, Do Cumprimento como Modo de Extinção das Obrigações, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 34, Janeiro de 1953, p. 175.
8 VAZ SERRA, Remissão..., p. 82 e 83.
9 Transacção é o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões (art. 1172.º, n.º 1 do Código Civil).
10 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código..., II vol., p. 856.
11 PEDRO ROMANO MARTINEZ, Direito do Trabalho, Coimbra, Almedina, 2.ª ed., 2005, p. 597. No mesmo sentido, MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito do Trabalho, Coimbra, Almedina, 1997, p. 734 e BERNARDO LOBO XAVIER, Curso de Direito do Trabalho, Lisboa/São Paulo, Verbo, 2.ª ed, 1999, p. 405.
12 O autor está a referir-se ao princípio da irredutibilidade do salário.
13 BERNARDO LOBO XAVIER, Curso..., p. 255.
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