(Tradução)
Crime de injúria qualificado
Exercício do direito de queixa
Levantamento do auto de notícia pelo próprio ofendido
Sumário
Quando o pessoal de qualquer autoridade competente notou pessoalmente a ocorrência do “actos ilícitos de injúria” e levantando, por isso, o respectivo “auto de notícia”, “o direito de queixa” só se considera exercido quando se exprime de modo não ambíguo no “auto de notícia” ou nos autos a sua vontade da efectivação da responsabilidade por tais actos de injúria. O “auto de notícia” lavrado pelo mesmo não pode substituir o acto de “apresentação da queixa” exigida pela lei e produzindo o efeito suficiente para que o Ministério Público tenha legitimidade para promover o processo penal em relação a este crime semi-público.
Acórdão de 19 de Junho de 2003
Processo n.º 202/2002
Relator: Choi Mou Pan
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
Nos autos do Processo n.º PSM-089-02-1, o Ministério Público acusou o arguido (A) da prática de:
um crime de injúria p. e p. pelo artigo 175º do C.P.;
um crime de injúria qualificado p. e p. pelo artº 178º do C.P..
Realizado julgamento, decidiu o Juiz o seguinte:
Condenar o arguido (A) pela prática de um crime de injúria qualificado p. e p. nos termos dos artºs 175º e 178º do C.P. na pena de 45 dias de prisão, com a suspensão da sua execução por um período de um ano.
Com esta decisão não se conformou, recorreu o arguido para este Tribunal de Segunda Instância, com a seguinte motivação:
1. Em 27 de Agosto de 2002, tendo proferido o Tribunal Judicial de Base decisão no prcedimento processual em epígrafe, condenou o recorrente (A) pela prática de um crime de injúria qualificado p. e p. nos termos dos artºs 175º e 178º do C.P. na pena de 45 dias de prisão, com a suspensão da sua execução por um período de um ano.
2. Nos termos do artigo 182.º do Código Penal, o procedimento penal pelo crime de injúria qualificado depende de queixa.
3. Porém, dos materiais constantes dos autos resultaram que nunca o ofendido apresentou qualquer queixa, pelo que o início do respectivo procedimento penal violou as disposições do artigo 182.º do Código Penal e do artigo 238.º n.º 3 do Código de Processo Penal.
4. Nestes termos, o tribunal não tem competência para conhecer oficiosamente da presente causa, o que já constituiu uma nulidade insanável nos termos dos artigos 21.º e 106.º al. e) do Código de Processo Penal.
5. Se assim não se entenda, na medida em que não se registou queixa no auto de notícia, violando o disposto no artigo 238.º n.º 3 in fine, o que constituiu irregularidades descritas no artigo 110.º do Código de Processo Penal.
6. Aliás, a sentença recorrida violou o disposto no artigo 355.º n.º 2 do Código de Processo Penal.
7. Tendo em consideração este preceituado, na fundamentação da sentença penal não basta mencionar as pessoas que foram ouvidas sobre os factos. Impõe-se ao tribunal, ainda, e no mínimo, uma exposição, ainda que concisa, dos motivos que fundamentam os factos provados e não provados. (cfr. Ac. RL de 1997/05/21 PROC0008313, in http://www.dgsi.pt/).
8. Porém, no que diz respeito à fundamentação sobre os factos provados e não provados só se menciona na sentença recorrida que “com base nos factos criminosos constantes da acusação, nos depoimentos prestados por testemunhas na audiência de julgamento e outras provas documentais constantes dos autos, o tribunal formou o seu juízo de facto.”
9. A sentença recorrida refere-se apenas aos tipos de provas, não se encontra o mínimo fundamento quanto à obtenção dos factos provados e não aprovados, não sendo suficientes apenas a referência da inquirição de testemunha ou o processamento conforme os documentos constantes dos autos.
10. Assim sendo, nos termos do artigo 360.º al. a) do Código de Processo Penal, a sentença recorrida constituiu nulidade por ter violado o artigo 355.º n.º 2 do Código de Processo Penal.
11. Além disso, o recorrente recusou-se a assinar o auto de notícia, porém, não se mencionou no mesmo auto a razão da sua recusa de assinatura, pelo que foi violado o artigo 85.º n.º 3 do Código de Processo Penal.
12. Ademais, ao abrigo do artigo 28.º n.º 1 al. a) do Código de Processo Penal, devendo haver impedimento para o levantamento do referido auto de notícia pelo ofendido, porém, o facto de ter ocorrido é que o ofendido não pediu impedimento e lavrou o referido auto de notícia, pelo que o acto é nulo por força do artigo 30.º n.º 4 do Código de Processo Penal, aplicável “ex vi” do artigo 36.º do mesmo Código.
13. Se não assim se entenda (apenas se trata de uma suposição, não implica que o recorrente não concorda com a referida “nulidade insanável”), de acordo com o artigo 110.º do Código de Processo Penal, os vícios de que o auto de notícia padeceu já constituíram as irregularidades.
14. O recorrente não apresentou testemunha na altura em que foi detido no Corpo da Polícia da Segurança Pública, o que não implicou necessariamente que o recorrente não viesse apresentar testemunha para o julgamento, porém, a entidade que efectuou a detenção não informou ao detido que de acordo com o artigo 364.º n. 2 do Código de Processo Penal ele poderia ter esse direito no processo sumário.
15. A entidade que procedeu à detenção não cumpriu este disposto, constituindo o fundamento de nulidade declarada pelo tribunal (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.6.1995 proferido no processo n.º 0003853), se assim não se entenda, constituiu irregularidade conforme o artigo 110.º do Código de Processo Penal.
16. Por fim, o Ministério Público não interrogou sumariamente o arguido ao abrigo do disposto nos artigo 363.º n.º 2 e artigo 129.º do Código de Processo Penal, nem entregando o arguido ao juiz de instrução para ser interrogado nos termos do artigo 128.º do Código de Processo Penal (cfr. Código de Processo Penal de Macau, Anotado de Manuel Leal-Henriques e Simas-Santos, pág. 534), pelo que, o que constituiu outra irregularidade conforme o artigo 110.º do Código de Processo Penal.
17. Pelo exposto, foram violados os dispostos supracitados, constituindo fundamento da revogação da sentença recorrida nos termos do artigo 400.º n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Penal.
18. Sem capacidade económica, vem o recorrente requerer a dispensa total de preparos e custas judiciais.
Respondeu o Ministério Público ao recurso, concluindo, em síntese, o seguinte:
1. A lei não obsta ao modo da manifestação da vontade de queixa, que é válido quando feita pelo modo quer expresso quer tácito.
2. Não exclui o vício da irregularidade aquando do levantamento do auto, porém, vício esse que nesta fase deve ser considerado como um acto processual válido.
3. Não se encontra na sentença nenhum vício que causa a nulidade.
Entendendo que não são suficientes os fundamentos do recurso, deve manter a sentença proferida pelo tribunal “a quo”.
O Digno Procurador adjunto junto desta instância emitiu o seu douto parecer jurídico, cujo teor é o seguinte:
“No caso sub judice, o recorrente foi acusado da prática de crime de injúria qualificado p. e p. nos termos dos artºs 175º e 178º do C.P., entendendo que se trata de um “crime semi-público”, cujo procedimento penal depende de queixa (cfr. o artigo 182.º do Código Penal), porém, nunca o titular do direito de queixa dos autos (o ofendido (B)) apresentou qualquer queixa, pelo que a iniciação do respectivo procedimento penal violou as disposições do artigo 182.º do Código Penal e do artigo 238.º n.º 3 do Código de Processo Penal, não tem por isso o Tribunal competência para conhecer oficiosamente da presente causa.
Todavia, não podemos deixar de referir que até hoje continua a ser objecto de polémica a natureza do crime supracitado, dado que a Lei n.º 6/97/M dispõe no seu artigo 37.º al. e) que como crime público o crime de injúria contra agente ou funcionário investido de autoridade pública, tendo o Ministério Público a legitimidade para promover o processo penal e não depende de queixa apresentada pela parte.
Mesmo que se entenda o crime acima mencionado como um “crime semi-público”, não podemos acompanhar a posição do recorrente.
Antes de tudo, a não apresentação da queixa por parte do titular do direito de queixa é uma questão que influencia directamente se o Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, que não tem nada a ver com a jurisdição do tribunal como o que defende o recorrente.
Por outro lado, dispõe o artigo 38.º n.º 1 do Código de Processo Penal que: “Quando o procedimento penal depender de queixa, é necessário que a pessoa com legitimidade para a apresentar dê conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo.” Por outras palavras, a efectivação da responsabilidade penal do arguido depende necessariamente da queixa apresentada pelo titular do direito de queixa, queixa essa que se traduz em dar conhecimento do facto criminoso ao Ministério Público.
Face a isto, o exercício ou não do direito de queixa reside essencialmente em dar conhecimento do facto criminoso ao Ministério Público, por outras palavras, a essência do acto de queixa prende-se com o “dar conhecimento” do facto ao Ministério Público para que este promova o processo criminal, dado que o acto de “dar conhecimento” já em si implica que o arguido tem vontade de efectivação da responsabilidade penal do arguido, salvo na situação em que o ofendido, depois de ter dado conhecimento do facto criminoso ao Ministério Público, manifestou que não pretendeu efectivar a responsabilidade penal e renunciando ao direito de queixa.
No caso vertente, sendo o próprio ofendido um agente policial, emitiu verbalmente ao arguido um mandado de detenção depois de ter sentido injuriado e lavrando auto de notícia sobre o facto em causa, informando ao recorrente que é constituído como arguido. Assistiu posteriormente à audiência de julgamento realizada no Tribunal Judicial de Base, na altura nunca manifestou a sua desistência da efectivação da responsabilidade criminal do recorrente. Com base dos depoimentos prestados pelo ofendido e por outra testemunha, o crime de injúria qualificado praticado pelo recorrente foi julgado procedente, mesmo que ele próprio não confessasse que tinha injuriado o ofendido com palavrões.
Da situação reflectida pelos autos no que respeita aos actos feitos pelo ofendido, nomeadamente o levantamento do auto de notícia sobre o facto em causa, a remessa do mesmo auto para o Ministério Público e a prestação de depoimento perante o Tribunal, poderíamos presumir que o ofendido manifestasse sua vontade no sentido de pretender procedimento criminal contra o recorrente, apesar de esta vontade não ser manifestada pela forma explícita como a prestação de uma declaração de vontade de que “Pretendo efectivar a responsabilidade criminal”.
Como o que foi indicado pelo Procurado-adjunto na resposta à motivação do recurso, o modo da manifestação da vontade tanto pode ser expresso como tácito, ambos possuem os efeitos jurídicos idênticos. Por outro lado, no artigo 38.º do Código de Processo Penal não se restringe ao modo da manifestação da queixa.
Poderá dizer-se afirmativamente que, basta o ofendido dar conhecimento do facto ao Ministério Público através dos determinados actos para considerar apresentada a queixa, pois que estes actos podem fazer compreender claramente que o ofendido manifeste a sua vontade de efectivar a responsabilidade criminal. A apresentação ou não da queixa reside no facto de que se dê conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo penal e não sendo necessária a manifestação da sua vontade de efectivação da responsabilidade penal por escrito.
Pelo exposto, não podemos acompanhar o entendimento do recorrente de que o ofendido “nunca apresentou nenhuma queixa no processo penal”, nem podemos entender que é nulo o processo assim iniciado.
Tendo ainda o recorrente mencionado algumas situações que constituem as irregularidades.
Não podemos dizer que a queixa apresentada pelo ofendido não foi registada no auto como o que foi exigido no artigo 238.º n.º 3 do Código de Processo Penal, visto que esta disposição foi elaborada para a situação de que o titular do direito de queixa não é entidade que lavra o auto de notícia. Sem margem para dúvidas, essa situação irregular constitui apenas a irregularidade consagrada no artigo 110.º do Código de Processo Penal, que é aplicável a um sistema completamente diferente do da nulidade: o interessado deve arguir da irregulariedade logo depois esta foi praticada; ou se tal acto fosse praticado na ausência do interessado, poderia este arguir essa irregularidade no prazo de cinco dias logo notificado da participação em qualquer fase ou acto do procedimento processual, sob pena de ser considerada sanada a irregularidade.
É óbvio que, no caso vertente, não tendo o recorrente arguido no prazo legal a irregularidade proveniente do levantamento do auto, o que fez com que o acto em causa se torna acto processual válido.
O recorrente entendeu que existiu nos autos a violação do artigo 85.º n.º 3 do Código de Processo Penal, na medida em que não há referência sobre a razão da recusa de assinatura do recorrente
Porém, o que a lei estipula que apenas no caso de “qualquer das pessoas cuja assinatura for obrigatória” não puder ou se recusar a prestá-la, declaram-se no auto essa impossibilidade ou recusa e o motivo que para elas tenha sido dado. Dispõe o artigo 226.º n.º 2 do Código de Processo Penal que: “O auto de notícia é assinado pela entidade que o levantou e pela que o mandou levantar”. Por outras palavras, não sendo necessária a assinatura do detido, nem sequer a razão da recusa da assinatura.
Mesmo admitido o ponto de vista de que é obrigatória a referência no auto do motivo da recusa da assinatura no mesmo auto, o que constitui apenas uma irregularidade e o recorrente não tinha arguido no prazo legal.
Tal razão é igualmente válida para a questão levantada pelo recorrente no que diz respeito a que não foi informado do direito da apresentação de testemunhas.
O recorrente formulou ainda uma questão de que o ofendido deve ter impedimento quanto ao levantamento do auto de notícia e entendendo que é nulo o acto em causa.
Não podemos acompanhar tal posição.
O artigo 36.º do Código de Processo Penal dispõe que o regime de impedimentos, recusas e escusas é aplicável extensivamente aos peritos, intérpretes e funcionários de justiça. São funcionários de justiça “os indivíduos titulares das categorias da carreira de oficial de justiça e do cargo de secretário judicial” (cfr. artigo 1.º do “Estatuto dos Funcionários de Justiça”), por outras palavras, os funcionários de justiça são os trabalhadores que prestam serviço nos órgãos judiciais e titulares das categorias da carreira de oficial de justiça estipulado pelo “Estatuto dos Funcionários de Justiça”, das quais não fazem parte os agentes policiais, razão pela qual o regime de impedimentos, recusas e escusas e as respectivas consequências estipulados pelo Código de Processo Penal não são aplicáveis aos agentes policiais, pelo que não pode chegar a conclusão de que vai conduzir à nulidade do acto por falta de impedimento do ofendido (agente da P.S.P.) quanto ao levantamento do auto de notícia.
Ademais, logo recebido o processo com arguido detido remetido pela entidade policial, o Ministério Público pode escolher uma das seguintes soluções previstas na lei: arquivamento do processo; remessa do processo para o tribunal para ser julgado em processo sumário; podendo ouvir o arguido detido sumariamente (o artigo 129.º do Código de Processo Penal); ou/e remessa do processo para o Juiz de Instrução Criminal para proceder ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido (o artigo 128.º do Código de Processo Penal).
Entendemos que o Ministério Público, depois de ter visto os materiais constantes dos autos e entendeu que se mostram preenchidos todos os requisitos previstos no artigo 362.º do CPP, pode remeter o processo para o tribunal para ser julgado em processo sumário e não sendo obrigatório interrogar sumariamente o arguido, tal como tem sido feito no Ministério Público. O arguido vai ser previamente interrogado antes da remessa do processo para o tribunal só quando o Ministério Público julgar necessário e conveniente, o que não viola nenhuma disposição legal.
Por fim, temos a seguinte opinião sobre a nulidade da sentença recorrida deduzida pelo recorrente:
De acordo com o artigo 366.º n.º 2 e o artigo 370.º n.º 7 do Código de Processo Penal, em processo sumário, “os actos e termos do julgamento são reduzidos ao mínimo indispensável ao conhecimento e boa decisão da causa.”; “a sentença pode ser proferida verbalmente e ditada para a acta”.
Partindo da realidade do caso vertente, o Juiz proferiu sentença logo após o conhecimento da causa, a qual foi proferida verbalmente e registada no auto da audiência de julgamento. Face a esta situação, torna-se difícil exigir ao Juiz a optimização quanto à elaboração da sentença, o mais importante prende-se com o preenchimento da exigência mínima da lei.
Na sentença recorrida, enumerou o Juiz os factos provados, os quais correspondem perfeitamente aos factos constantes do auto de notícia (no processo sumário, é permitida ao Ministério Público a leitura do auto de notícia para substituir a acusação), e demonstram que não há outros factos a assinalar. Posteriormente, indicou ainda as provas que serviram para formar a convicção do tribunal: “Com base nos factos criminosos constantes da acusação, nos depoimentos prestados por testemunhas na audiência de julgamento e outras provas documentais constantes dos autos, o tribunal formou o seu juízo de facto”.
Entendeu o recorrente que: “na fundamentação da sentença penal não basta mencionar as pessoas que foram ouvidas sobre os factos. Impõe-se ao tribunal, ainda, e no mínimo, uma exposição, ainda que concisa, dos motivos que fundamentam os factos provados e não provados”. “A sentença recorrida refere-se apenas aos tipos de provas, não se encontra o mínimo fundamento quanto à obtenção dos factos provados e não aprovados, não sendo suficientes apenas a referência da inquirição de testemunha ou o processamento conforme os documentos constantes dos autos.”
No caso sub judice, entendemos que não existe a questão da insuficiência da fundamentação da decisão, especialmente quando ponderados a situação concreta deste caso, os factos acusados que foram aprovados, o grau da clareza do factos assentes, os factos confirmados pelo Tribunal mesmo que o recorrente não os confessasse, tudo isto demonstra que não podemos concordar com a opinião do recorrente.
É óbvio que, perante a atitude negativa mantida pelo recorrente, o tribunal admitiu os depoimentos prestados pelos dois testemunhas, sintetizando os documentos constantes dos autos para confirmar que foram provados os factos acusados. Quanto a admissão ou não da credibilidade do depoimento da testemunha, é uma questão do próprio âmbito da convicção livre do juiz, é difícil exigir o juiz a justificar porque acredita as provas da determinada testemunha. Nomeadamente, perante nós o ofendido e a testemunha são agentes policiais e a ocorrência teve lugar na altura em que exerciam as funções, a admissão do depoimento é muito natural; ao contrário, se os depoimentos por eles prestados não serviram para os fundamentos da decisão, situação essa que há-de ser justificada necessariamente.
Entendemos no caso sub judice que, após a sintética das circunstâncias acima mencionadas, podemos compreender perfeitamente as razões essenciais da formulação da convicção do tribunal e não há necessidade de recorrer a outras explicações.
Por outra banda, o assento judicial também entendeu que constitui nulidade da sentença referida no artigo 360.º al. a) do Código de Processo Penal apenas na situação da falta inteira (e não na situação da insuficiência) das razões de facto e de direito que servem para os fundamentos da sentença e não podendo exigir ao tribunal a apreciação crítica das provas.
Se, no caso concreto, for possível conhecer as razões essenciais da convicção a que chegou o tribunal, pela enumeração dos factos provados e não provados e pela indicação dos meios de prova utilizados, torna-se desnecessária a outra explicação, designadamente no que diz respeito a origem ou a razão dos factos dados como assente. (cfr. os acórdãos do Tribunal de Última Instância de 20/3/2002 e de 18/7/2001 proferidos no Processo Penal n.° 3/2002 e no Processo Penal n.° 9/2001)
Pelo exposto, entendemos que é improcedente o recurso interposto e devendo negar provimento ao recurso”
Corridos os vistos legais a todos os juízes que constituem o Tribunal Colectivo, realizou-se a audiência e decidindo, após a votação, o seguinte:
Os factos dados como assente pelo Tribunal “a quo” são os seguintes:
Pelas 11h37m do dia 27 de Agosto de 2002, altura em que dois agentes policiais exerciam as suas funções da detectação da velocidade na Avenida de Amizade perto da nova Plataforma do Grande Prémio, o arguido conduziu o motociclo pesado de matrícula MD-XX-XX, veio perguntar ao agente policial (B) sobre o limite de velocidade em vigor em Macau, este respondeu que “de acordo com o Código da Estrada de Macau, a velocidade máxima em Macau geralmente é de 60km/h.” Na altura os dois agentes policiais descobriram que o arguido foi acusado da infracção relativa ao excesso da velocidade estipulada pelo Código da Estrada, na altura em que este conduziu um automóvel ligeiro de matrícula ME-XX-XX no mesmo local pelas 10h47m do mesmo dia.
Disse o arguido ao guarda (B): “Em Taiwan instalam-se em todas as estradas os sinais de limite de velocidade para alertar os condutores, não sei o que está a fazer seu grupo de “係”人 (traduzível para português: filhos da puta )”. O guarda em causa advertiu ao mesmo que não falasse palavrões grosseiros, porém, o arguido não o ligou e continuando a injuriar o mesmo com palavrões: “你班“撚”樣不應該咁樣做,是你哋做得不對” (traduzível para português: seu grupo de caralho não deve fazer isso, quem cometeu o erro sois vós).
O agente policial (B) sentiu-se injuriado, emitindo ordem de detenção contra o arguido. Na altura em que o arguido foi levado para a esquadra policial, este continuou a injuriar os outros guardas presentes no local: 你班“撚”樣咁樣對我” (traduzível para português: Seu grupo de caralho tratou-me dessa maneira!”
O arguido agiu de modo consciente, livre e voluntário
Bem sabendo que tal conduta é proibida e punida pela lei.
Entretanto, foi também provada a seguinte situação individual da arguida:
O arguido (A) é um operário de água e electricidade, auferindo um rendimento mensal de cerca de MOP 3.000,00.
Fica a seu cargo um menor.
O arguido tem como habilitações literárias o 3.º ano do ensino primário.
Segundo o CRC, o arguido é primário.
Factos não provados: não há nada por assinalar.
***
Com base nos factos criminosos constantes da acusação, nos depoimentos prestados por testemunhas na audiência de julgamento e outras provas documentais constantes dos autos, o tribunal formou o seu juízo de facto.
Eis as questões de direito que foram formuladas no presente recurso:
1. Modo da queixa do ofendido
2. Levantamento do auto na audiência de julgamento
3. Vício da sentença
Não obstante, das três questões acima mencionadas, a questão do vício da sentença envolve-se no julgamento do tribunal “a quo” e na forma de revisão de sentença, sendo a questão da queixa uma questão prévia que tem de ser apreciada com preferência, ainda que, se for procedente esta parte do recurso, influenciará o conhecimento das outras questões.
No que toca à questão de queixa, entende o recorrente que o processo penal não pode iniciar-se devido à falta da vontade explícita da apresentação da queixa do ofendido nos autos.
Aqui não está em causa a aplicação do artigo 37.º da Lei n.º 6/97/M1, acolhemos as pretensões do recorrente e do Ministério Público de que o facto acusado ao arguido pode ser considerado um crime de injúria qualificado previsto pelos artigos 175.º e 178.º do Código Penal, e ao abrigo do disposto no artigo 182.º o processo penal relacionado com este crime só pode iniciar-se quando existe a queixa.
O Ministério Público deduziu na sua resposta que o modo de queixa tanto pode ser expresso como tácito. O artigo 209.º n.ºs 1 e 2º do Código Penal e o artigo 38.º do C.P.P. não estipulam restrições quanto ao modo de queixa. Apesar de não ter contido no “auto de notícia” e nos autos a clara manifestação da vontade do ofendido quanto a apresentação da queixa, o recorrente veio a ser constituído arguido em flagrante delito e o agente policial que procedeu à detenção é o próprio ofendido, razão pela qual o acto do ofendido demonstra concretamente o exercício do seu direito de queixa, ainda que durante a audiência do julgamento o ofendido não tinha manifestado a sua vontade da renúncia à queixa, pelo que pugnando pela improcedência do recurso.
No caso sub judice, o arguido foi condenado pela prática de um crime de injúria qualificado p. e p. nos termos dos artºs 175º e 178º do C.P. na pena de 45 dias de prisão, com a suspensão da sua execução por um período de um ano.
Dispõem os artigos 175.º, 178.º e 182.º do Código Penal os seguintes:
“Artigo 175.º (Injúria)
1. Quem imputar factos a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, ou lhe dirigir palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.
2. Tratando-se da imputação de factos é correspondentemente aplicável o disposto nos n.os 2, 3 e 4 do artigo anterior.
Artigo 178.º (Agravação)
As penas previstas nos artigos 174.º, 175.º e 177.º são elevadas de metade nos seus limites mínimo e máximo se a vítima for uma das pessoas referidas na alínea h) do n.º 2 do artigo 129.º, no exercício das suas funções ou por causa delas.
Artigo 182.º (Queixa e acusação)
O procedimento penal pelos crimes previstos no presente capítulo depende de acusação particular, excepto nos casos previstos nos artigos 178.º e 181.º, em que é suficiente a queixa.
Dos autos, nomeadamente do auto de notícia resultaram que não constam a pretensão clara do ofendido quanto à efectivação da responsabilidade penal do arguido, nem a sua manifestação da desistência da não efectivação.
A questão ora em causa reside em saber se se considera feita a “queixa” depois efectuados a ordem de detenção, o levantamento do “auto de notícia” e a remessa do mesmo para o Ministério Público.
Dispõe o artigo 105.º do Código Penal que:
“1. Quando o procedimento penal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.”
No processo envolvido em crime semi-público, o Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal somente quando tem queixa apresentada pelo ofendido, tal como já foi estabelecido nos art.ºs 37º e 38º do C.P.P.M.
“Artigo 37.º (Legitimidade)
O Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos artigos seguintes.
Artigo 38.º (Legitimidade em procedimento dependente de queixa)
1. Quando o procedimento penal depender de queixa, é necessário que a pessoa com legitimidade para a apresentar dê conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo.
2. Para o efeito previsto no número anterior, considera-se feita ao Ministério Público a queixa dirigida a qualquer outra entidade que tenha a obrigação legal de a transmitir àquele.
3. A queixa é apresentada pelo titular do direito respectivo ou por mandatário munido de poderes especiais.
Relativamente à detenção em flagrante delito do arguido envolvido em crime semi-público, estipula o artigo 238.º do C.P.P. que:
“1. Em caso de flagrante delito por crime punível com pena de prisão, ainda que com pena alternativa de multa:
a) Qualquer autoridade judiciária ou entidade policial procede à detenção;
b) Qualquer pessoa pode proceder à detenção, se uma das entidades referidas na alínea anterior não estiver presente nem puder ser chamada em tempo útil.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, a pessoa que tiver procedido à detenção entrega imediatamente o detido a uma das entidades referidas na alínea a), a qual redige auto sumário da entrega e procede de acordo com o estabelecido no artigo 242.º
3. Tratando-se de crime cujo procedimento dependa de queixa, a detenção só se mantém quando, em acto a ela seguido, o titular do direito respectivo o exercer, devendo a autoridade judiciária ou a entidade policial levantar ou mandar levantar auto em que a queixa fique registada.
4. Tratando-se de crime cujo procedimento dependa de acusação particular, não há lugar a detenção em flagrante delito, mas apenas à identificação do infractor.”
Sabe-se que na nossa lei penal se restringe à intervenção dos poderes públicos nas sanções dos crimes semi-públicos, a efectivação da responsabilidade por actos criminosos depende da “queixa” do ofendido que serve como pressuposto, queixa essa que tem de ser exprimida de modo claro e não ambíguo, pelo titular do direito de “queixa”. Não podemos concordar com que a manifestação tácita da vontade do ofendido pode considerar-se exibida a “queixa”, nomeadamente no caso envolvido no bem jurídico de um agente policial que tem direito ao exercício destes poderes públicos. Maia Gonçalves citou acórdão do Tribunal da Relação do Porto no “Código Penal Português – Anotado e Comentado”, o qual indica: “um auto de notícia lavrado por imposição legal não pode servir como exercício do direito de queixa.” 2
O acórdão que citou o referido caso (tido aqui meramente como doutrina jurídica) entende que quando o pessoal de qualquer autoridade competente notou pessoalmente a ocorrência dos “actos ilícitos de injúria” e levantando o respectivo “auto de notícia”, “o direito de queixa” só se considera exercido quando se exprime de modo não ambíguo no “auto de notícia” ou nos autos a sua vontade da efectivação da responsabilidade por tais actos de injúria.
Não podemos concordar com que a exigência da manifestação de vontade expressa não é uma formalidade importante. Sabemos que o acto de “acusação” ou “queixa” é levado a cabo pelo agente policial em causa por ordem (inclusive norma legal) do outro (seu superior), em vez da sua própria vontade, pelo que o “auto de notícia” lavrado pelo mesmo não pode substituir o acto de “apresentação da queixa” exigida pela lei, e produzindo o efeito suficiente para que o Ministério Público tenha legitimidade para promover o processo penal em relação a este crime semi-público.
Ademais, não se encontra em todos os autos a manifestação expressa do ofendido quanto à intenção da efectivação da responsabilidade por actos de injúria praticados pelo arguido. Termos em que o Ministério Público não tem legitimidade para promover o procedimento criminal, nem existem condições para proceder ao procedimento criminal contra o arguido.
Pelo que, deve anular todo o processo penal contra o arguido e julgar procedente o recurso.
Resolvida esta questão, não há necessidade de discutir as restantes.
Pelo exposto, acordam neste Tribunal Colectivo em julgar procedente o recurso interposto pelo arguido (A), declarando nulo o presente processo penal e anulando, em consequência, toda a acusação e a respectiva sentença.
Sem custas.
Fixam-se em MOP$1,500.00 como honorário ao ilustre patrono oficioso que assistiu à audiência de julgamento deste processo e MOP$300.00 como honorário ao ilustre patrono oficioso que assistiu à leitura da sentença, a cargo do Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Choi Mou Pan (Relator) – Lai Kin Hong –
José M. Dias Azedo (vencido nos termos da declaração que segue)
表決落敗聲明
本人因不贊同上述的判決而落敗,該判決認為由於本案的被害人沒有提出告訴,裁定檢察院沒有正當性對嫌犯(上訴人)提起刑事程序,並因此駁回對嫌犯的起訴。
事實上,所涉及的並不是原審法官所認定的事實,(毫無疑問,嫌犯確實觸犯一項澳門《刑法典》第175條和第178條所規定及處罰之侮辱罪),本人認為基於被害人的“身份”(一名治安警察局警員),上述罪行帶有“公罪”性質 — 這已在7月30日的第6/97/M號法律第37條e項的規定中明確表明,在此意義上,參見本中級法院合議庭《裁判匯編》2002年第2卷第175頁及續後數頁附隨於第89/2000號案件的2000年7月13日合議庭裁判的表決聲明。
但是,即使不這樣理解,本人認為拘留命令以及隨後實況筆錄的製作不能不是被害人擬對嫌犯提起刑事程序意願的清晰表達,在法律效力方面等同於其告訴權的行使,因此,(這就是本案所發生的情況),應把澳門《刑法典》第182條的條件視為證實,以認同檢察院對該案具有促進本訴訟程序的正當性(參見澳門《刑法訴訟法典》第37條和第38條)。
澳門,2003年6月19日。
José M. Dias Azedo(司徒民正)
1 Quanto a esta questão, já procedimos respectivamente à discussão no recurso n.º 1257 de 17 de Fevereiro de 2000 e no recurso n.º 89/2000 de 13 de Junho de 2000.
2 Ac. RP de 5/12/1984, in Col. Jur., IX, tomo 5, p.283; cfr. Maia Gonçalves, ob. cit., p. 407.
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