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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso penal
N.° 18 / 2003

Recorrente: A







1. Relatório
Por acórdão do Tribunal Judicial de Base de 4 de Abril de 2003, o recorrente A foi condenado pela prática de um crime de tráfico de drogas previsto e punido pelo art.° 8.°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 5/91/M na pena de 8 anos e 9 meses de prisão e 10,000 patacas de multa ou em alternativa de 66 dias de prisão.
   Inconformado com a decisão, o arguido recorreu para o Tribunal de Segunda Instância. Pelos seus acórdãos de 12 de Junho de 2003 e de 10 de Julho seguinte proferidos no processo n.° 107/2003, foram julgados improcedentes o pedido de renovação de prova e posteriormente o recurso.
   Vem agora o arguido recorrer para o Tribunal de Última Instância, formulando as seguintes conclusões da motivação:
“1. É admissível o presente recurso para essa Alta Instância.
   2. Imputa o recorrente ao Acórdão explicitado pelo Tribunal de Segunda Instância o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art.º 400.°, n.º 2, al. a) do C.P.Penal), e da contradição insanável da fundamentação (art.º 400.°, n.º 2, al. b) do C.P.Penal).
   3. Imputa-lhe ainda o vício da nulidade por falta de fundamentação e erro de direito quanto à dosimetria da pena.
   4. Deu-se por provado que o arguido destinava “tal produto” a cedência a amigos sem se identificar um acto de cedência nem se procedeu à distinção de qual o produto que destinava a ceder, já que houve dois momentos diferentes em que o estupefaciente cannabis lhe foi apreendido: o primeiro na rua (cerca de 4,517 gramas) e o segundo na sua residência (10,625 gramas).
   5. Concluiu o Tribunal a quo não assistir razão ao ora recorrente ao apontar o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada uma vez que o crime de tráfico de estupefaciente verifica-se independentemente de se ter ou não apurado a quem o agente o vendeu, em que quantidades, a que preço e quantas vezes.
   6. Contudo, a questão que se coloca nos presentes autos não diz respeito tanto ao passado (a quem ele vendeu ou cedeu) mas sim e sobretudo relativamente ao futuro, isto é, a quem e quando o recorrente iria vender o estupefaciente.
   7. O Tribunal a quo não pode simplesmente considerar verificado o tipo do crime de tráfico de estupefaciente baseado numa intenção futura, que ainda não se verificou, sem o mínimo de suporte factual quanto ao que o leva a tirar tal conclusão.
   8. Haveria, pois, que discriminar que situações futuras seriam essas, designadamente a que amigos e em que ocasiões o recorrente iria ceder droga, ou que probabilidade haveria de tal acontecer no futuro imediato para assim conferir a certeza mínima necessária à decisão de direito.
   9. Igualmente se discute a questão da falta de distinção entre qual, do produto apreendido, o recorrente destinava a ceder a terceiros, em relação à qual o Tribunal a quo vem apenas dizer que “pela leitura dos factos provados, facilmente se alcança que o Tribunal, com a expressão “tal” se referia à droga no seu todo...”.
   10. Ora, o busílis desta discussão é exactamente porque da matéria provada não resulta cabalmente qualquer resposta à dúvida de qual dos apreendidos o Tribunal de Julgamento se refere pois a expressão “tal” tanto se pode referir a este como àquele, mas nunca a ambos, senão a palavra adequada seria “tais”.
   11. Mantendo-se a questão, que entendemos ser pertinente, dada a quantidade de estupefaciente apreendido em dois momentos distintos, do que poderá resultar a aplicação do art.º 8.º ou 9.º do DL n.º 5/91/M, incorreu por isso o Acórdão recorrido também ele no vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
   12. Concluiu o Tribunal de Primeira Instância ter o arguido praticado o crime de tráfico de estupefaciente dado ter detido e transportado “uma quantidade significativa de cannabis, substância abrangida pela Tabela I-C do DL 5/91/M”, não tendo justificado o que lhe permite retirar essa conclusão, sendo certo que tal quantidade não chegou a preencher duas vezes o conceito de quantidade diminuta de cannabis que a jurisprudência anteriormente fixou em 8 gramas.
   13. Segundo o Tribunal a quo nenhuma contradição insanável da fundamentação existe por esse motivo e ainda que se considere (o que admite) que essa quantidade possa não ser significativa, ainda assim andou bem o Colectivo.
   14. Permitimo-nos discordar de tal ilação já que esse foi o único motivo, conforme consta da fundamentação de direito constante do acórdão proferido pelo Tribunal de Primeira Instância, que o levou a concluir pela verificação in casu do crime de tráfico de estupefaciente.
   15. Se tal juízo de valor não é consentâneo com a quantidade efectiva de produto apreendido, que se resume a 15,142 gramas (o que é admitido pelo Tribunal a quo), o qual resulta da soma de duas apreensões de quantidades distintas, cremos estar perante verdadeira contradição insanável da fundamentação.
   16. Assim, verificados os vícios quanto à matéria de facto, deverá reenviar-se o processo para efeitos de reparação dos referidos vícios.
   17. Conexa com a questão da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada acima referida é a discussão sobre a falta de qualquer raciocínio manifesto no acórdão da primeira instância que lhe permita chegar à conclusão de que o arguido destinava a ceder a terceiros o produto apreendido, violando assim o art.º 355.°, n.º 2 do CPP, que exige a obrigatoriedade de uma motivação racional da convicção formada.
   18. Veio o Tribunal a quo dizer, numa perspectiva minimalista, que ao ora recorrente não assiste razão porque não há norma processual que exija ao julgador que “exponha pormenorizada e completamente todo o raciocínio lógico ou indique os meios de prova que se encontra na base de dar como provado ou não provado um determinado facto...”.
   19. Ora, também não é isso que se pede mas tão somente que à conclusão de que o arguido destinava a terceiros o apreendido se faça corresponder um ou mais factos que consubstanciem tal ilação de forma completa e concisa.
   20. Aquela conclusão refere-se apenas a uma intenção do arguido que o Tribunal não pode saber através do próprio (que não confessou) mas através de outra prova no processo. Se assim é, impunha-se que tal facto por detrás da conclusão fosse mencionado expressamente para que dúvidas não houvesse quanto à legalidade da fundamentação, quer de direito quer de facto.
   21. E tal questão torna-se ainda mais relevante quando se sabe ter o recorrente invocado ser apenas consumidor de cannabis.
   22. É verdade que a quantidade detida pelo agente é um facto relevante e indiciador de que poderia ser, eventualmente, para proporcionar a outrem: porém, não pode ser tal circunstância desacompanhada de outra que possa induzir o douto Tribunal a concluir que, efectivamente, se destinava tal substância à cedência a outrem.
   23. O que efectivamente veio a acontecer no presente caso, pois, para além da confissão do recorrente relativamente ao consumo de estupefaciente, existem outros factos indiciadores do consumo, e não do tráfico, que deveriam ter merecido reflexão por parte do Colectivo, mormente a existência de um cigarro de cannabis já meio fumado pelo arguido e que foi encontrado em sua casa.
   24. Entendendo o Tribunal a quo que não existe falta de fundamentação por essa via, violou assim o art.º 355.°, n.º 2 do CPP.
   25. Entendeu ainda o Tribunal a quo que, apesar de faltarem as indicações sumárias da contestação no acórdão da primeira instância, tal tem apenas por consequência a irregularidade e não a nulidade do acórdão, e não tendo aquela sido arguida no prazo legal, deverá considerar-se sanada.
   26. Contudo, in casu, não é a falta de indicação sumária das conclusões da contestação que releva mas sim a falta de ponderação e análise da contestação e dos argumentos e factos nela indicados.
   27. Independentemente de qualquer perspectiva minimalista ou maximalista, os princípios do contraditório e do in dubio pro reu impõem indubitavelmente que o Colectivo analise e pondere os argumentos apontados pela defesa e lhes dê resposta, ainda que desfavorável.
   28. Uma análise perfunctória do acórdão da primeira instância permite facilmente concluir que nunca aquele tribunal teve em devida conta os argumentos expendidos pela defesa nem tão pouco se referiu, em qualquer momento, à contestação por aquela apresentada.
   29. Constando da mesma factos relevantes que poderiam alterar o decurso e desfecho do presente caso, impunha-se o respeito pela igualdade de armas entre a defesa e a acusação e que os factos por aquela apresentados fossem também discutidos e analisados pelo acórdão proferido pelo Tribunal Judicial de Base.
   30. Uma vez que na referida contestação o arguido e ora recorrente afirmou que era consumidor e não destinava a ceder a terceiros ao menos a maior parte do produto que lhe foi apreendido, tendo indicado factos precisos e determinados que corroboram a sua posição, cabia ao Colectivo analisá-los, concluindo pela sua prova ou não em sede de julgamento, já que foi inclusive ouvida uma testemunha de defesa.
   31. Pugnamos, por isso, pela tese já avançada pela jurisprudência desta RAEM, segundo a qual desde que, na contestação, o arguido não se limite a negar os factos que lhe são imputados, trazendo algo de novo à sua defesa, o não cumprimento pelo tribunal recorrido dessa exigência legal afecta a validade da sentença.
   32. Não entendendo assim o Tribunal a quo, é igualmente nulo o seu acórdão.
   33. A pena aplicada pelo Tribunal Judicial de Base e que o Tribunal a quo veio confirmar é manifestamente desproporcional face aos factos provados.
   34. Nomeadamente porque a quantidade de cannabis apreendida e que ele supostamente iria ceder a outrem não se pode considerar que seja substancial.
   35. Sendo quantidade diminuta a posse de 8 gramas, a que seria aplicável o crime p. e p. pelo art.º 9.°, n.º 1 do DL n.º 5/91/M, punível com pena de prisão que se situa entre 1 a 2 anos e possuindo o arguido um pouco menos do dobro daquela quantidade deveria proporcionalmente ser aplicada pena consentânea com os factos concretos.
   36. Parece ser francamente excessiva a aplicação ao ora recorrente da pena de 8 anos e 9 meses de prisão, tendo em conta algumas condenações verificadas nesta RAEM em que foi aplicada a mesma pena de prisão e em que os arguidos detinham quantidades muito superiores de estupefaciente (designadamente e a título de exemplo cfr. acórdão proferido nos autos de recurso com o processo n.º 97/2002 que correu pelo Tribunal de Segunda Instância, em que foi encontrada em poder de um dos arguidos a quantidade de 250 gramas de cannabis e com o outro 255,8 gramas, tendo um deles sido condenado na pena de 8 anos e 6 meses e o outro na pena de 6 anos e 10 dias por tráfico de estupefaciente).
   37. Embora seja sobejamente conhecido o entendimento uniforme dos nossos tribunais no sentido de que, na esteira do legislador, não faz distinção entre “drogas duras” e “drogas leves”, concede porém a jurisprudência que a graduação das penas aplicáveis ao tráfico tenha em conta a real perigosidade das respectivas drogas.
   38. Se, na verdade, a natureza do estupefaciente, no crime de tráfico de droga, não pode ter relevância para efeito de uma atenuação especial da pena, já não é indiferente para a individualização da pena.
   39. É certo que a cannabis sativa não é uma droga inofensiva; porém não tem o grande poder intoxicante da heroína e da cocaína, por exemplo, muito nocivas para a saúde dos consumidores, causas de forte habituação e de grande taxa de mortalidade.
   40. Assim, tudo ponderado, e por uma questão de justiça relativa sempre se impunha o abaixamento da pena aplicada para pena de prisão não superior a 4 anos de prisão, num patamar que se situaria entre a pena aplicável aos crimes previstos no art.º 9.º e no art.º 8.º do DL n.º 5/91/M, exigido pelo princípio da proporcionalidade das penas aos factos concretos, à ilicitude dos factos e às suas consequências, tendo em vista a reintegração do agente na sociedade.
   41. Não tomando em devida conta tais condicionalismos, incorreu a decisão recorrida em erro de direito ao violar a norma prevista no art.º 65.º do CP.”
   Pedindo que seja dado provimento ao recurso e, em consequência, proceder-se ao reenvio do processo para o Tribunal a quo para supressão dos vícios relativos à matéria de facto, anular-se o acórdão recorrido ou proceder ao abaixamento da pena aplicada para limite não superior a 4 anos de prisão efectiva.
   
   
   O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal de Segunda Instância emitiu a resposta que consiste essencialmente em:
   - Os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de contradição insanável da fundamentação já foram apreciados pelo Tribunal de Segunda Instância que foram julgados inverificados.
   - A decisão formou-se caso julgado por falta de impugnação depois de ser devidamente notificada.
   - É bastante a fundamentação da decisão da primeira instância.
   - A indicação das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal permitiu conhecer as razões essenciais da convicção a que chegou o Tribunal.
   - Dos factos provados resulta, sem margem para dúvidas, que os factos da contestação foram objecto de investigação e consideração.
   - A pena imposta ao recorrente deve ter-se como justa e equilibrada.
   Concluindo, a final, que deve ser negado provimento ao recurso.
   
   
   A Magistrada do Ministério Público junto deste Tribunal de Última Instância emitiu o parecer que, em síntese, consiste em:
   I- Quanto à insuficiência para a decisão de matéria de facto provada e contradição insanável da fundamentação.
   Na sua motivação, o recorrente continua a alegar pela existência de vícios de insuficiência para a decisão de matéria de facto provada e contradição insanável da fundamentação para justificar o recurso agora interposto para o TUI. No entanto, como se refere, e bem, na resposta do nosso Exm. Colega, constante a fls. 286 a 293, sobre estas questões, já se formou caso julgado formal, por terem sido apreciado no Acórdão (preliminar) do TSI, através da via de recurso.
   Na sua motivação, o recorrente imputa ao Tribunal a quo incorrer em tal vício, quando entende que se pode verificar o crime (consumado) de tráfico de droga, “independentemente de se ter ou não apurado a quem o agente o vendeu, em que quantidades, a que preço e quantas vezes.”, dado que “não pode simplesmente considerar verificado o tipo do crime de tráfico de estupefaciente baseado numa intenção futura”, por o Tribunal ainda não se verificou, “designadamente a que amigos e em que ocasiões o recorrente iria ceder a droga”.
   Da leitura simples desta disposição legal (art.° 8.°, n.º l do DL n.º 5/91/M), fácil é concluir que detenção na sua posse de “cannabis” para ceder a outrem, integra, indubitavelmente, o ilícito criminal p. e p. pelo art.° 8.º, n.º l do citado DL, sendo desnecessário apurar a quem vai ceder ou vender e a que preço, desde a quantitativo detido é superior ao consumo diário médio de um indivíduo de três dias, que, conforme jurisprudência uniforme de tribunais de Macau, corresponde a um valor total de 6 a 8 gramas.
   
   Quanto ao vício da contradição insanável da fundamentação, o recorrente veio invocar “se o juízo de valor não é consentâneo com a quantidade efectiva de produto apreendido, que se resume a 15,142 gramas (o que é admitido pelo Tribunal a quo), o qual resulta da soma de duas apreensões de quantidades distintas, cremos estar perante verdadeira contradição insanável da fundamentação”.
   Da leitura ao Acórdão recorrido, não podemos deixar de concluir pela inexistência da “contradição” alegada.
   Pelo contrário, a conclusão daí tirada não podia ser outra senão aquela que o Tribunal a quo chegou na parte de confirmar o Acórdão da primeira instância, tudo corre de forma lógica, racional e coerente, não havendo “contradição” mínima prevista no art.° 400.º, n.º 2, al. b) do CPPM.
   
   II- Quanto à arguida falta de fundamentação no Acórdão recorrido
   Na sua motivação do recurso, o recorrente ainda insiste pela falta de fundamentação no Acórdão da lª instância, alegando que o Tribunal a quo, entendendo que não existia falta da fundamentação, como se alegou na motivação do recurso interposto para a 2ª instância, violou, assim, o art.° 355.º, n.º 2 do CPPM.
   Como se sabe, a jurisprudência uniforme dos tribunais de Macau assume a posição de que, nesta matéria, há que afastar uma perspectiva maximalista - devendo ter-se em conta, sempre, os ingredientes trazidos pelo caso concreto.
   No caso em apreço, o Tribunal julgador expôs os factos provados e não provados, enunciando os factos concretos. Indicou ainda as provas que serviram para formar a sua convicção (fls. 160v, 161 e 161v dos autos). Tal indicação, permite aos sujeitos processuais e ao tribunal superior conhecer as razões essenciais da convicção a que chegou o Tribunal e proceder ao exame do processo lógico ou racional, pelo que deve considerar-se bastante e suficiente.
   Em suma, com a indicação dos factos provados e não provados, bem como das provas que serviram para formar a sua convicção, o Tribunal satisfaz as exigências da lei quanto à fundamentação da sentença.
   Assim, o Acórdão recorrido, na parte em que se considera inexistência da falta de fundamentação no Acórdão da 1ª instância, não violou o disposto no art.° 355.º, n.º 2 do CPPM, não gerando a nulidade da sentença.
   
   Invoca o recorrente que o tribunal a quo apenas apreciou a questão da falta da indicações sumárias da contestação, mas não apreciou e decidiu a alegada questão de “falta de ponderação e análise da contestação e dos argumentos e factos nela indicados”.
   Basta simples leitura da Acórdão a quo, dos factos dados como assentes, sabe-se perfeitamente que, os factos da contestação foram já ponderados.
   Como se frisa na resposta à motivação dada pelo nosso Exm. Colega, constante a fls. 286 a 293, “Basta ter em conta, para tanto, que tais factos são substancialmente incompatível com os da acusação (que ficaram provados).” “Era ocioso – e, até, excrescente – por isso, concretizar matéria vertida na peça processual em análise.”
   No presente caso, o que afirmou o arguido, ora o recorrente, na contestação é que os produtos de cannabis apreendidos no bolso das calças no momento de detenção destinavam a ceder aos amigos e os produtos apreendidos na residência do recorrente eram para o seu próprio consumo.
   Dá o Tribunal do julgamento como provados, entre outros, os factos de “o arguido adquiriu o produto ... destinava ceder tal produto a outros amigos.” (cfr. fls. 161 dos autos).
   Pela exigência de processo lógico e racional, entendemos ser claro e notório que não há necessidade da expor, de forma concretizada, os factos substancialmente incompatíveis com os factos constantes nos dados provados.
   
   III- Da medida concreta da pena
   O recorrente ainda impugna o tribunal a quo quanto ao mantimento da pena que lhe foi imposta na decisão da 1ª instância, por entender ser uma pena severa.
   Obviamente que é uma pretensão infundada.
   No Acórdão da 1ª instância, o arguido foi condenado na pena de 8 anos e 9 meses de prisão e MOP$10,000 de multa ou, em alternativa desta, 66 dias de prisão subsidiária.
   O Acórdão do recurso, ora recorrido, mantém a pena fixada pela 1ª instância, por não se ver motivos para se afirmar ser a pena exagerada.
   Na determinação da pena concreta, conforme o art.º 65.° do CPM, dentro dos limites mínimo e máximo definidos por lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção criminal.
   E a moldura penal abstracta para o crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art.º 8.°, n.º 1 do DL n.º 5/91/M, é de 8 anos a 12 anos de prisão e multa de MOP$5,000.00 a MOP$700,000.00.
   No presente caso, o recorrente, a favor dele, não tem atenuação especial.
   Mas não confessou os factos e não se mostra arrependimento.
   Ainda, são prementes as exigências de prevenção criminal, quer geral, quer especial.
   De facto, o Tribunal, quando fixou a “quantum”, observa os critérios legalmente estabelecidos, por ter em consideração “a natureza e gravidade do crime praticado, a falta de confissão dos factos e o facto de o arguido não ser primário.”
   Assim, mostra-se perfeitamente justificada e equilibrada a pena concreta fixada, não se vê nenhuma censura a fazer.
   
   Sobre as condenações sofridas pelos traficantes de droga nos casos alegadamente semelhantes, apenas podemos dizer que a bondade da pena concretamente imposta não pode ser ajuizada e comparada com outros casos de tráfico de droga, uma vez que, como se refere acima, na fixação da pena concreta, não só se atenda meramente a natureza de crime, cuja moldura penal abstracta, mas tem em consideração também, que é obrigatório, a culpa e personalidade do agente, a forma de execução, as exigências de prevenção especial e geral, e todas as circunstâncias subjectivas e objectivas resultantes dos autos, que depuserem a favor e contra si , sob pena de violar a lei.
   
   O recorrente imputa ao Acórdão a quo, quando manter a pena concretamente aplicada pela 1ª instância, violar o “princípio de proporcionalidade das penas aos factos concretos, à ilicitude dos factos e às suas consequências ...”, devendo aplicar ao recorrente uma pena não superior a 4 anos de prisão, num patamar que se situaria entre a pena aplicável aos crimes previstos no art.ºs 9.º e 8.º do DL n.° 5/91/M, por a cannabis sativa não é uma droga inofensiva, mas sim “droga leve”.
   Trata-se, a nosso ver, de uma crítica infundada.
   O recorrente põe em causa a moldura abstracta do crime de tráfico de droga, questão essa que está relacionada com a política criminal e a própria lei penal, tem apenas a ver com a competência e atribuição do legislador, mas não dos órgãos judiciais.
   Como o próprio recorrente afirma que não faz distinção entre “droga duras” e “drogas leves”. De facto, entende o TUI, “Até uma alteração legislativa, a nossa política criminal sobre os crimes ligados à droga continua a ser de perseguição e punição severa, tendo em conta a sua grande perigosidade, alarme social e consequências muito negativas não só no âmbito pessoal e familiar mas também de toda a sociedade em geral.” (cfr. Ac. do TUI de 05/03/2003, pro. n° 23/2002)
   A pena que o recorrente considerar adequada e proporcional é muito abaixa ao limite da pena abstracta estabelecida na disposição em causa.
   Atenta os factos provados que integram crime de tráfico de droga p. e p. pelo art.° 8.º, n.º 1 do DL n.º 5/91/M, e as circunstâncias apuradas nos autos, entre das quais não existem qualquer da atenuação especial a favor do recorrente, não se justifica qualquer redução da pena imposta, e o Tribunal nunca pode fixar a pena concreta para 4 anos de prisão, como se pretende o recorrente.
   Termos em que se deve negar o provimento do recurso interposto pelo recorrente.
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   1. O Tribunal Judicial de Base e o Tribunal de Segunda Instância consideram provados os seguintes factos:
“No dia 11 de Novembro de 2002, de madrugada, o arguido foi abordado pela entidade policial, na praça das [Endereço(1)].
   Após uma revista que lhe foi efectuada, foi-lhe encontrado na sua posse, no bolso direito da frente das calças, 1 pacote contendo ervas, RMB750.00, HKD2,000.00 e 2 telemóveis. (cfr. auto de apreensão de fls. 4).
   As ervas submetidas a exame laboratorial revelaram ter o peso líquido de 4.517gr e serem “Canabis”.
   Numa busca à sua residência, sita no [Endereço(2)], Macau, foi encontrado:
   - no quarto, numa gaveta da secretária um pacote de ervas; e
   - na sala um maço de cigarros que continha meio cigarro de ervas (cfr. auto de apreensão de fls. 6).
   As ervas referidas submetidas a exame laboratorial revelaram ter, respectivamente, o peso líquido de 10.562 gr e 0.063 gr e serem “Canabis”.
   A “Canabis” está abrangida pela Tabela I-C, do DL 5/91/M de 28/1.
   O arguido adquiriu o produto estupefaciente, no dia 2 de Novembro de 2002, junto de um amigo que apenas conhece por “B”.
   O arguido destinava ceder tal produto a outros amigos.
   O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente.
   Sabendo e conhecendo as características e qualidades dos produtos estupefacientes.
   Tendo o arguido adquirido, detido e transportado e cedido os produtos estupefacientes.
   Tinha perfeito conhecimento que a sua conduta não era permitida e punida por Lei.
   O arguido era bate-ficha e auferia o vencimento mensal de quinze mil patacas.
   É solteiro e tem três filhos a seu cargo.
   Não confessou os factos.
   O arguido foi julgado e condenado em 25/5/98 no PCS 134/98 -3° J na pena global de nove meses de prisão, suspensa a sua execução por dois anos pela prática dos crimes p. e p. pelos art.ºs 137.°, n.° 1 e 219.°, n.° 1 do CPM por factos praticados em Setembro/97.
   A pena de prisão foi declarada extinta em 27/7/2000.
   
   Não ficaram provados os seguintes factos: nenhum a assinalar.
   
   
   2. Questões a apreciar
   O recorrente suscitou as seguintes questões:
- Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
- Contradição insanável da fundamentação
- Nulidade do acórdão por falta de fundamentação
- Medida concreta da pena
   É de apreciar em primeiro lugar os primeiro e segundo vícios alegados por a sua verificação determina o reenvio do processo para novo julgamento ao abrigo do art.° 418.°, n.° 1 do Código de Processo Penal (CPP), ao passo que as últimas duas questões são vícios que relacionam com a própria decisão da causa.
   
   
   2.1 Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
   O recorrente sustentou a existência deste vício em que se deu por provado que ele próprio destinava “tal produto” a cedência a amigos sem se identificar um acto de cedência, nem se procedeu à distinção de qual o produto que destinava a ceder, já que houve dois momentos diferentes em que o canabis lhe foi apreendido, primeiro na rua e depois na sua residência.
   Na sua motivação do recurso, o recorrente salienta que a questão não diz respeito ao passado (a quem ele vendeu ou cedeu), mas sim e sobretudo relativamente ao futuro, isto é, a quem e quando o recorrente iria vender a droga.
   
   A mesma questão já foi abordada por este tribunal no acórdão de 20 de Março de 2002 do processo n.° 3/2002 cujo entendimento é de manter ao apreciar o presente recurso.
   Em relação ao vício em causa, decidiu naquele acórdão:
   “Ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a matéria de facto provada se apresente insuficiente para a decisão de direito adequada, o que se verifica quando o tribunal não apurou matéria de facto necessária para uma boa decisão da causa, matéria essa que lhe cabia investigar, dentro do objecto do processo, tal como está circunscrito pela acusação e defesa, sem prejuízo do disposto nos art.°s 339.º e 340.º do CPP.”
   Os factos invocados pelo recorrente, ou seja, o acto de cedência, a quem e quando o recorrente iria vender a droga, não constam da acusação nem da contestação, até negando, nesta peça, qualquer cedência, pelo que não constituem objecto do processo. Assim, não se verifica o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
   
   Por outro lado, tais factos não integram os elementos típicos do crime de tráfico de droga.
   De acordo com o art.° 8.°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 5/91/M, “quem, sem se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 23.º, substâncias e preparados compreendidos nas tabelas” anexas ao mesmo diploma, comete o crime de tráfico de droga.
   A lei nunca exige que seja apurado o acto de cedência para a verificação do crime de tráfico de droga previsto nesta norma. Por isso, é irrelevante a falta de investigação de tal facto.
   
   Em seguida, o recorrente levantou ainda a questão da falta de distinção entre qual do produto apreendido que ele destinava a ceder a terceiros.
   Segundo os factos provados, na revista foi encontrado na posse do recorrente 4,517g de canabis e na busca à sua residência encontrou-se no total 10,625g canabis. Ficou provado ainda que “o arguido adquiriu o produto estupefaciente, no dia 2 de Novembro de 2002, junto de um amigo que apenas conhece por B”, “o arguido destinava ceder tal produto a outros amigos”.
   Pelo contexto dos factos provados, é fácil de alcançar que as expressões “o produto estupefaciente” e “tal produto” acima transcritas se referem à totalidade de canabis apreendido ao recorrente.
   Improcedem os fundamentos do recurso nessa parte.
   
   
   2.2 Contradição insanável da fundamentação
   O recorrente entende que se verifica este vício quando o tribunal de primeira instância concluiu que ele deteve e transportou uma quantidade significativa de canabis, pois tal quantidade não chegou a preencher duas vezes a quantidade diminuta de canabis, para além de que as quantidades detidas e transportadas são substancialmente diferentes.
   
   Consta da parte do enquadramento jurídico do acórdão de primeira instância o seguinte:
   “Da matéria assente provou-se que o arguido praticou o crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art.° 8.°, n.° 1 do DL n.° 5/91/M.
   Os produtos estupefacientes foram obtidos pelo arguido junto a um indivíduo a fim de ceder a outrem.
   O arguido deteve e transportou uma quantidade significativa de canabis, substância abrangida pela tabela I-C do DL n.° 5/91/M.”
   
   Não é verdade, como alega o recorrente na motivação, que a conclusão “o arguido deteve e transportou uma quantidade significativa de canabis” constitui o único motivo da verificação do crime de tráfico de drogas.
   De qualquer modo, a conclusão de quantidade significativa não é relevante para o preenchimento dos elementos típicos do crime de tráfico de drogas, para além de ser um juízo subjectivo.
   Não se verifica a alegada contradição insanável da fundamentação.
   
   
   2.3 Falta de fundamentação relativa à contestação
   Nesta parte do recurso o recorrente alega que a falta de indicação sumária das conclusões da contestação e, consequentemente, a falta de ponderação e análise da contestação e dos argumentos e factos nela indicados acarreta a nulidade do acórdão.
   
   De facto, o recorrente apresentou uma contestação escrita a fls. 127 de seguinte teor:
   “1. A marijuana envolvida no processo foi oferta dum seu amigo (B) de Hong Kong para o réu consumir e não foi por ele adquirida.
   2. O réu tem tido o vício de consumir pequena quantidade de estupefacientes, o que é do conhecimento dos seus amigos (que se pode verificar nas fls. 62 a 63, 65 a 66, 68 a 69, 72 a 73 e 80 dos autos).
   3. A marijuana apreendida é meramente para o consumo próprio, sem nenhuma intenção de cedê-la a amigos (que se pode verificar nas fls. 62 a 63, 65 a 66, 68 a 69, 72 a 73 e 80 dos autos).
   4. In casu, não se encontrou nenhuma prova (utensílio de embalagem) ou testemunha (adquirente) que comprovasse que o réu tinha cedido a referida marijuana.
   Face aos factos acima referidos, o réu não tinha a intenção de venda ou cessão, e, in casu, não se encontrou nenhuma prova ou utensílio de embalagem ou testemunha (adquirente) que comprovasse que o réu tinha vendido a referida marijuana, pelo que, é improcedente a acusação deduzida nos termos do n.° 1 do artigo 80.° do Decreto-Lei n.° 5/91/M. O réu não tinha nenhuma intenção de venda, nem se encontrou prova para justificar a acusação do crime, pelo que, é inadequado o requisito da constituição do crime, o réu não praticou o crime previsto no n.° 1 do art.° 8.° do D.L. n.° 5/91/M.
   Para entender o carácter do réu, vem fornecer as seguintes testemunhas, para fazer valer a justiça:
   ...”
   
   A contestação foi admitida pelo despacho a fls. 129 verso.
   Da acta da audiência de julgamento a fls. 157 verso consta:
   “Declarada aberta a audiência a MMª Juiz Presidente fez uma exposição sucinta sobre o objecto do processo e deu, depois a palavra, primeiro ao Digno Magistrado do Ministério Público e depois ao ilustre advogado constituído do arguido para que indicassem os factos que cada um se propõe provar art.° 319.°, n.°s 1 e 2 do Código de Processo Penal.”
   No entanto, do relatório do acórdão de primeira instância constam apenas o teor da acusação do Ministério Público. E da parte da matéria apurada, a seguir da enumeração dos factos provados consta o seguinte:
   “Não ficaram provados os seguintes factos: nenhum a assinalar.”
   
   Em termos estruturais, da parte da fundamentação da sentença deve constar a enumeração dos factos provados e não provados, segundo o disposto no art.° 355.°, n .° 2 do CPP.
   Só com essa enumeração se pode alcançar a certeza de que todos os factos alegados, quer pela acusação, quer pela defesa, foram objecto de deliberação e votação pelo tribunal.
   Relativamente aos factos não provados não é exigida a minúcia que preside à indicação dos factos provados. No entanto, o tribunal tem de deixar bem claro que foram apreciados todos os factos que constituem objecto do processo e com interesse para a decisão.
   
   Ora, já os factos alegados na contestação de que o recorrente era consumidor de droga e destinava o canabis apreendido ao seu próprio consumo, sem intenção de ceder a amigos, têm potencialidade para influir a decisão final.
   Na parte da enumeração dos factos provados e não provados do acórdão de primeira instância verifica-se que todos os factos da acusação foram dados provados, além dos factos relativos às condições pessoais e antecedentes criminais do recorrente, e quanto aos factos não provados se refere apenas que “nenhum a assinalar”.
   Só com esses elementos não se permite saber se o tribunal colectivo, face às provas produzidas na audiência, apreciou e deliberou sobre os factos alegados pelo recorrente na sua contestação, com interesse para a decisão da causa.
   No presente caso, a forma adoptada de referir os factos não provados equivale à falta de enumeração dos factos não provados e determina a nulidade do acórdão de primeira instância nos termos do art.° 360.°, al. a) do CPP.
   
   Em relação à falta da indicação sumária das conclusões contidas na contestação no relatório do acórdão de primeira instância, ela nunca constitui causa da nulidade da sentença por não caber na previsão do art.° 360.° do CPP em que prescreve as causas da nulidade da sentença.
   Tal falta pode ser suprida oficiosamente pelo tribunal, mesmo na fase do recurso (art.° 361.°, n.°s 1 e 2 do CPP). Uma vez que o colectivo do Tribunal Judicial de Base tem de proferir novo acórdão, difere o seu suprimento para esse momento.
   
   A falta de enumeração dos factos não provados implica a nulidade do acórdão em que se verifica. Mas tal nulidade não invalida as diligências efectuadas na audiência do julgamento, como a produção da prova, em virtude de afectar apenas o acto decisório, consubstanciado no acórdão de primeira instância.
   O reenvio do processo para novo julgamento só se verifica quando existem os vícios referidos nas alíneas do n.° 2 do art.° 400.° do CPP e não for possível decidir da causa pelo tribunal do recurso (art.° 418.°, n.° 1 do CPP).
   Por isso, para além de não estar prevista no art.° 418.°, n.° 1 do CPP, aquela nulidade não tem como consequência a anulação do julgamento, designadamente a produção de prova, pelo que não implica o reenvio do processo para repetição desse acto, mas unicamente afecta o mencionado acórdão.
   Assim, o tribunal colectivo de primeira instância terá de proferir novo acórdão, suprindo as referidas faltas nos termos do art.° 355.°, n.°s 1 e 2 do CPP.
   
   Declarado nulo o acórdão de primeira instância, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pelo recorrente na motivação do recurso, isto é, a falta de fundamentação em relação a um facto provado e a medida de pena.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em julgar procedente o recurso, anular o acórdão proferido pelo Tribunal Judicial de Base em 4 de Abril de 2003 a fls. 160 a 162 e determinar a repetição da sua prolação pelos mesmos juízes, suprindo as faltas acima consignadas.
   Sem custas.
   
   Aos 22 de Outubro de 2003.



           Juízes:Chu Kin (relator)
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

Processo n.° 18 / 2003 26