Processo n.º 7/2002. Recurso jurisdicional em matéria penal.
Recorrente: A.
Recorrido: Ministério Público.
Assunto: Crime de tráfico de droga. “Quantidade diminuta” de estupefaciente. Droga sob a forma de comprimidos. Quantidade de substância estupefaciente. Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Conhecimento oficioso dos vícios do art. 400.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. Poderes do Tribunal de Última Instância. Poderes do Tribunal de Segunda Instância.
Data da Audiência: 29.05.20002 Data do Acórdão: 30.05.2002
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Sam Hou Fai e Chu Kin.
SUMÁRIO:
I – Em regra, a fim de se decidir se estupefaciente apreendido é de qualificar como “quantidade diminuta”, para efeitos do disposto no art. 9.º, n.os 1 e 3 do Decreto-Lei n.º 5/91/M, deve apurar-se - se for tecnicamente possível - qual a quantidade de substância estupefaciente contida nos produtos apreendidos, seja qual for a forma por que se apresentem, incluindo, portanto, os que se apresentem sob a forma de comprimidos ou pílulas.
II – Ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando, no decurso da audiência, resulta fundada suspeita da verificação de factos relevantes e necessários para uma boa decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, mas não descritos na acusação ou na pronúncia, e que não importem uma alteração substancial dos factos descritos e o tribunal não os considera na sentença, não procedendo nos termos do art. 339.º, n.os 1 e 2 do Código de Processo Penal.
III - São de conhecimento oficioso, pelo tribunal de recurso, os vícios do art. 400.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
IV – Detectado pelo Tribunal de Última Instância o vício do art. 400.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Penal, não deve reenviar logo o processo para novo julgamento na primeira instância, mas remetê-lo ao Tribunal de Segunda Instância, para que este decida se pode sanar o vício ou se tem de reenviá-lo para novo julgamento.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
I – Relatório
O Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base, por Acórdão de 18 de Janeiro de 2002, condenou o arguido A, pela prática, em autoria material, na forma consumada de um crime previsto e punível pelo art. 8.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 5/91/M, de 28.1, na pena de oito anos e um mês de prisão e oito mil patacas de multa com cinquenta dias de prisão alternativa.
O Tribunal de Segunda Instância, por Acórdão de 4 de Abril de 2002, rejeitou o recurso interposto pelo arguido, com fundamento em manifesta improcedência.
Inconformado, recorre o arguido, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões:
1. É admissível o presente recurso para essa Alta Instância.
2. O Venerando Tribunal recorrido incorreu em erro de direito e no vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão; qualificou, ainda, erradamente, o recurso do recorrente da decisão da 1.ª Instância como manifestamente improcedente, o que tudo se diz com a ressalva do respeito devido.
4. O douto Acórdão recorrido subsumiu a conduta do ora recorrente à autoria de um crime do art. 8.°. n.° 1, do Decreto-Lei n.° 5/91/M, quando tal conduta integra um crime do art. 9.°, n°.s 1 e 3 do mesmo diploma, uma vez que o total de substâncias proibidas quer as encontradas na sua posse quer as anteriormente detidas é considerado quantidade diminuta.
5. Não estando preenchido o conceito de "quantidade diminuta" na lei -que apenas refere "a que não excede a quantidade necessária para o consumo individual durante três dias" -, há que recorrer ao entendimento expresso na Jurisprudência dos nossos Tribunais que aponta para os 2 (dois) gramas diários quando se trata da substância "metanfetamina" um dos componentes contidos nos comprimidos encontrados na posse do recorrente.
6. Efectuado o exame aos 40 comprimidos apreendidos pelo ora recorrente, veio a apurar-se que eles continham um total de 1,198g de "metanfetamina" e, embora, do exame tenha resultado que os mesmos comprimidos continham uma outra substância ilegalizada, na RAEM, desde 2 de Maio de 2001 -"ketamina" - não foi possível determinar a sua quantidade exacta, por falta de meios materiais para tal exame.
7. Embora tenha havido informação de que fora pedida informação ao Instituto da Droga junto das Nações Unidas sobre a forma de determinar tal quantidade de "ketamina", o douto Tribunal prescindiu dessa informação.
8. Tem sido entendimento pacífico que se o exame laboratorial da droga em causa não puder fazer-se, por qualquer motivo, a sua falta será suprida por outros meios de prova.
9. Recorrendo-se às regras da experiência, sempre se chegará à conclusão que a percentagem de "Ketamina" contida num determinado comprimido que contém, simultaneamente, "metanfetamina" não poderá ser maior do que a percentagem desta, dadas as características de tal substância que é, efectivamente, utilizada para contrariar os efeitos das substâncias estimulantes, uma vez que se trata de uma substância anestésica muito poderosa com efeitos analgésicos e amnésicos.
10. Tendo prescindido de tal exame, o douto Tribunal apenas poderá aferir-se pela dosagem de "metanfetamina" contida nos mesmos comprimidos, pelo que não poderá concluir que a quantidade total de "ketamina" contida nos 40 comprimidos seja superior à quantidade de "metanfetamina", ou seja, terá que concluir que os 40 comprimidos continham também eles um total de 1,198g de "ketamina".
11. Tomando em consideração que a Jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores tem sido no sentido de que "no crime de tráfico de estupefacientes está em causa não só a droga concretamente apreendida, num determinado processo, mas também a quantidade de droga que durante uma determinada época foi traficada pelo agente", para o cômputo da quantidade na disponibilidade do ora recorrente ter-se-á que entrar em linha de conta com os 20 comprimidos por ele detidos numa vez anterior, facto que se deu como provado.
12. Seguindo-se o percurso para determinar que quantidade de substâncias proibidas teve o ora recorrente na sua disponibilidade, ter-se-á que aferir pelos dados constantes do presente processo, sendo que o ora recorrente teve na sua disponibilidade um total de 3,594g de substâncias proibidas, o que não excederia a quantidade tida como diminuta - para efeitos do n.º 1 do art. 9.° do DL n.º 5/91/M - que é de 6 gramas.
13. A moldura penal, abstractamente, aplicável ao crime de tráfico de quantidades diminutas é prisão de 1 a 2 anos e multa de MOP$2,000.00 a MOP$225,OOO.OO, pelo que, estando perante a aplicação de uma pena inferior a três anos, essa Alta Instância terá que se pronunciar sobre a aplicabilidade (ou denegação) do instituto da suspensão da execução da pena.
14. A suspensão da execução da pena depende da verificação de dois pressupostos: um formal (uma pena não superior a três anos) e outro material consistente numa prognose social favorável ao arguido.
15. O pressuposto material da suspensão da execução da pena é limitado por duas coordenadas: (1) a salvaguarda das exigências mínimas essenciais de defesa do ordenamento jurídico (prevenção geral) e o (2) afastamento do agente da criminal idade (prevenção especial).
16. Face aos fundamentos apresentados, essa Alta Instância poderá considerar adequada ao caso concreto a pena pedida de um ano e um mês de prisão e multa de MOP$3,OOO.OO, verificando-se, assim, o pressuposto formal da suspensão da execução da pena.
17. Não pode deixar o ora recorrente de fazer referência ao apelo feito, em 1997, nas Nações Unidas pelo Órgão Internacional de Controlo de Estupefacientes, sugerindo que "os países estabeleçam como prioridade absoluta a apreensão e a punição dos grandes criminosos na área da droga.
18. Quando se faz um apelo desta natureza, tem-se em vista que não são as penas de prisão dos pequenos traficantes de droga que vão, efectivamente, ajudar à prevenção geral que, no caso do tráfico de drogas, é reprimir o mais possível a observância deste tipo de crime, atendendo ao verdadeiro flagelo que hoje constitui esse tráfico e o consumo de droga e toda a actividade criminosa que lhe está associada.
19. Não pode deixar de se considerar que o ora recorrente se posicionava, na actividade do tráfico de droga, ao nível mais baixo, àquele a que pertencem as denominadas últimas personagens da cadeia de tráfico, os chamados distribuidores ou "dealers".
20. Sendo certo que a RAEM está dotada de um sistema penitenciário que garante o respeito pela dignidade humana, foi uma preocupação constante do legislador limitar, tanto quanto possível, a pena de prisão, atento o seu incontroverso efeito criminógeno, especialmente quando se trata de jovens.
21. A possibilidade legal de subordinar a suspensão da execução da pena de prisão ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta com o fim de reparar o mal do crime, por um lado e a facilitar a readaptação social, por outro, garante suficientemente a salvaguarda das exigências mínimas essenciais do ordenamento jurídico (prevenção geral) e reforça o carácter pedagógico da medida (prevenção especial), pelo que, se for considerado conveniente, por Vossas Excelências, deverão ser fixadas certas obrigações (arts. 49.° e 50.° do Código Penal) ao recorrente que servirão também para compensar a situação decorrente da não execução da pena de prisão.
22. O Tribunal ora recorrido fixou as questões essenciais do recurso e apenas não decidiu as subsequentes por as considerar prejudicadas pela decisão explicitada em relação à primeira.
23. Não pode aceitar-se a tese que fez vencimento no Ac. recorrido por ser inteiramente de rejeitar o entendimento de que, tratando-se de drogas sintéticas em comprimidos ou em pílulas, só é de considerar o número dos mesmos em termos de unidade para os efeitos penais a relevar no tipo legal do art. 9.° do DL n.º 5/91.
24. Não só a lei não faz essa distinção como se refere expressamente a «quantidades' de substâncias ou preparados» nos n.os 1 e 3 do citado art. 9.°.
25. É inequívoco que o legislador quis privilegiar (pela menor ilicitude do facto indiciada) os que trafiquem quantidades diminutas de substâncias ou preparados, irrelevando, no princípio que formula, o tipo ou a natureza da droga, porque o que está em causa é uma substância ou um preparado proibido.
26. É um facto notório o conhecimento de que na região de Dju-Hoi, adjacente à RAEM, é frequente a venda de comprimidos vulgarmente designados por Ice que, para além dos excipientes, não contêm a substância estimulante que se supunha integrá-los.
27. A droga de tipo sintético assume menor gravidade do que a droga pura, sob a forma de cristais ou pó, precisamente porque surge sempre misturada com outros produtos anódinos, impondo-se, redobradamente, a necessidade da quantificação das substâncias ou preparados proibidos para fins criminais, sob pena de se punirem os chamados crimes impossíveis.
28. Admitir como bom o entendimento perfilhado pelo M.mo Juiz que subscreveu o voto de vencido - com a incerteza que domina o raciocínio expresso - no sentido de uma alteração súbita e imponderada dos valores definidos pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores - quanto ao conceito de quantidades diminutas - corresponderia e uma grave incerteza na aplicação do direito, geradora de alarme social.
29. No caso dos autos não se prefigura uma situação de manifesta improcedência do recurso, conceito que a melhor jurisprudência reserva para casos limite, certo sendo que, efectivamente, o Tribunal recorrido conheceu o recurso do recorrente (interposto da decisão da 1.ª Instância).
30. O conceito de «unanimidade de votos» de que fala o n.º 1 do art. 410.° do C.P.Penal engloba os motivos determinantes da rejeição.
31. O douto Acórdão recorrido violou as normas substantivas dos arts. 8.° e 9.°, n.os 1 e 3, do Código Penal de Macau, assim como a norma processual do art. 410.°, n.º 1 do Código de Processo Penal, as quais têm de ser interpretadas com os sentidos que se deixaram supra expressos nesta minuta.
Termina por pedir que:
(a) seja convolada a acusação do ora recorrente para um crime do art. 9.°, n.os 1 e 3 do Decreto-Lei n.° 5/91/M, de 28 de Janeiro, aplicada uma pena de prisão inferior a dois anos, considerando-se justa a de um ano e um mês, suspendendo-se a sua execução por um período de um ano, impondo-se certas obrigações ou fixando-se alguns dos deveres ou das regras de conduta previstas nos arts. 49.° e 50.° do Código Penal.
(b) seja ordenada a reformulação do Ac. recorrido em termos que permitam a normal tramitação do recurso.
Respondeu o Ex.mo Procurador-Adjunto, defendendo que deve decretar-se o reenvio do processo, nos termos do art. 400.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Penal, com vista à ampliação da matéria de facto, pois tanto o Tribunal Judicial de Base, como o Tribunal de Segunda Instância, não deram como provada a quantidade líquida de metanfetamina contida nos 40 comprimidos apreendidos ao recorrente. Isto porque o recorrente fundamenta o recurso no facto de a quantidade de 1,198 gramas de metanfetamina, constante de exame feito nos autos por determinação do Tribunal, integrar o conceito de “quantidade diminuta” para efeitos do art. 9.º, n. os 1 e 3 do Decreto-Lei n.º 5/91/M.
Neste Tribunal, o Ex.mo Procurador-Adjunto manteve a posição assumida na resposta à motivação.
II – Os factos
Os factos que as instâncias deram como provados são os seguintes:
1.º
Em 20 de Junho de 2001, cerca das 20H41, no posto fronteiriço das Portas do Cerco, o pessoal da PMF abordou o arguido A que vinha de Zhuhai para Macau.
2.º
O pessoal da PMF encontrou, em flagrante, no corpo do arguido A 40 comprimidos suspeitos de serem comprimidos "ecstasy".
3.º
Após exame laboratorial, os tais comprimidos continham Metanfetamina e Ketamina, substâncias essas constantes respectivamente na Tabela II-B e II-C do DL n° 5/91/M (alterado pela Lei n° 4/2001).
4.º
Tais estupefacientes foram adquiridos pelo arguido A, em Zhuhai a um indivíduo desconhecido, a fim de trazer para Macau e entregar a outro indivíduo desconhecido de nome B para venda.
5.º
O arguido A agiu livre, consciente e voluntariamente o supracitado.
6.º
Ele sabia perfeitamente a natureza e as características dos estupefacientes acima referidos.
7.º
A sua conduta não era permitida por lei.
8.º
Ele bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
***
Esta foi a segunda vez que o arguido trazia estupefaciente para Macau.
Na primeira vez, trouxe vinte comprimidos "ecstasy" e recebeu, como remuneração, a quantia de MOP$300,00.
E desta vez, era para receber do tal indivíduo B a quantia de MOP$500,00, como recompensa.
***
O arguido confessa os factos e mostra-se arrependido.
Auferia, mensalmente, cerca de MOP$3.500,00 e tem a seu cargo os seus pais. Possui o curso primário.
***
Nada consta em seu desabono do seu CRC junto aos autos.
III - O Direito
Os fundamentos do recurso
1. O recorrente fundamenta o recurso no facto de a quantidade de 1,198 gramas de metanfetamina, que o exame feito nos autos, por determinação do Tribunal, concluiu estar contido nos 40 comprimidos encontrados na sua posse, integrar o conceito de “quantidade diminuta” para efeitos do art. 9.º, n. os 1 e 3 do Decreto-Lei n.º 5/91/M. O mesmo aconteceria com a quantidade total de 3,549 g de substâncias estupefacientes, que a totalidade de compridos por si traficada poderia conter.
Para tal, entende o recorrente que:
- Não é de aceitar a tese do Acórdão recorrido, de que em drogas sintéticas, em comprimidos ou em pílulas, só é de considerar o número de unidades de compridos e não o peso líquido das substâncias estupefacientes, para efeitos, designadamente, da qualificação das “quantidades diminutas”, a que se refere o art. 9.º, n. os 1 e 3 do Decreto-Lei n.º 5/91/M;
- A quantidade de 3,549 g de substâncias estupefacientes (sendo 1,198 g de metanfetamina e 1,198 de ketamina – esta, por estimativa, porque não mensurada - nos 40 comprimidos apreendidos, a que acresceriam 0,599 g metanfetamina e outro tanto de ketamina em 20 comprimidos que se deu como provado que traficou anteriormente) é de considerar como quantidade diminuta para efeitos do disposto no art. 9.º, n. os 1 e 3 do Decreto-Lei n.º 5/91/M.
A relevância do peso líquido da substância estupefaciente
Os poderes de cognição do Tribunal de Última Instância
2. Tanto o Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base, como o Tribunal de Segunda Instância, não deram como provado qual a quantidade de metanfetamina nos 40 comprimidos encontrados na posse do recorrente. Isto apesar de tal constar de exame feito nos autos (fls. 118). Tal facto apenas consta do voto de vencido do último dos dois Acórdãos, o que não releva, como é evidente.1
É sabido que em recurso, em processo penal, correspondente a terceiro grau de jurisdição, o Tribunal de Última Instância apenas conhece de matéria de direito, bem como dos vícios do n.º 2, do art. 400.º do Código de Processo Penal (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação e erro notório na apreciação da prova) e das nulidades não sanadas, nos termos do n.º 3, do mesmo art. 400.º.
Quer isto dizer que o Tribunal de Última Instância não tem poder para declarar provada a quantidade de metanfetamina nos 40 comprimidos encontrados na posse do recorrente.
Mas será este um facto relevante para a decisão?
Se este Tribunal subscrever a tese do Tribunal de Segunda Instância, acima referida, não é. Se, pelo contrário, entender que o que releva é a quantidade de estupefaciente contida nos comprimidos e não já o número destes, então o facto é relevante e poderá verificar-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do art. 400.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Penal.
A relevância do peso líquido da substância estupefaciente (cont.)
3. Tem, assim, de se enfrentar a questão colocada.
Um comprimido contendo uma substância estupefaciente e outros componentes pode ter, em abstracto, quantidades muito diversas da substância estupefaciente, como é de toda a evidência e não necessita de qualquer explicitação. Mesmo comprimidos para tratamento médico, de uma mesma marca comercial, e com um determinado princípio activo têm, frequentemente, quantidades diversas do princípio activo, por exemplo, com 100 mg, 250 mg ou 500 mg, com vista à prescrição clínica e tendo em atenção o doente a que se destinam, o agente bacteriano ou outro que se destinam a combater e a gravidade da doença.
Pois bem, assim sendo, por exemplo, um comprimido pesando 2 g e contendo metanfetamina e outras substâncias pode ter 10 ou 100 vezes mais metanfetamina (0,5 g, 50 mg e 5 mg, respectivamente) que um comprimido com a mesma dimensão e peso (2 g) e que contenha outras substâncias com menos peso.
O que se pretende saber é se, para efeitos da qualificação das “quantidades diminutas”, a que se refere o art. 9.º, n. os 1 e 3 do Decreto-Lei n.º 5/91/M, no caso de estupefacientes sintéticos, apresentados sob a forma de comprimidos ou pílulas, o que releva é o número de unidades destes ou a quantidade da substância estupefaciente.
O art. 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 5/91/M pune com pena de prisão de oito a doze anos e multa de cinco mil a setecentas mil patacas todo aquele que detiver, puser à venda, ceder, transportar, etc., substâncias estupefacientes das tabelas I a III, quando não se trate de actividades visando o consumo próprio.
Contudo, se tais actos tiverem por objecto “quantidades diminutas” das mesmas substâncias a pena já será de prisão de um a dois anos e multa de duas mil a duzentas e vinte cinco mil patacas (art. 9.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 5/91/M). A lei, no n.º 3 do mesmo artigo, define o que considera “quantidades diminutas”:
“Quantidade diminuta para efeitos do disposto neste artigo é a que não excede o necessário para consumo individual durante três dias, reportando-se à quantidade total das substâncias ou preparados encontrados na disponibilidade do agente”.
O n.º 4 do art. 9.º, do Decreto-Lei n.º 5/91/M, dispõe que “ouvidos os Serviços de Saúde, o Governador, mediante decreto-lei, poderá concretizar, para cada uma das substâncias e produtos mais correntes no tráfico, a quantidade diminuta, para efeitos do disposto neste artigo”.
O diploma legal possibilitado por esta norma nunca chegou a ser produzido.
Mas o n.º 5, do mesmo art. 9.º, acrescenta que “a concretização a que se refere o número anterior será apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Pois bem, sendo quantidade diminuta a que não excede o necessário para consumo individual durante três dias, é de meridiana clareza que, em regra, será necessário conhecer a quantidade de substância estupefaciente contida nos comprimidos apreendidos, posto que seja possível fazer o exame apropriado, por isso que tal quantidade poderá variar de uns casos para outros.
É que se, por exemplo, uma unidade contiver alto grau de pureza, cinco comprimidos poderão já não constituir quantidade diminuta. Se a unidade contiver uma quantidade ínfima de estupefaciente já o número de algumas dezenas de comprimidos poderá ser o necessário para consumo individual durante três dias e, por isso, constituir “quantidade diminuta” para efeitos do disposto no art. 9.º do Decreto-Lei n.º 5/91/M.
Foi também o que entendeu o legislador português, que emitiu um diploma, a Portaria n.º 94/96, de 26.3, onde indicou os limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária das plantas, substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.1, que é o diploma legal homólogo do nosso Decreto-Lei n.º 5/91/M. Na verdade, no mapa a que se refere o n.º 9 da Portaria, mesmos os preparados sintéticos que, normalmente, são consumidos sob a forma de comprimidos ou pílulas, as respectivas quantidades diárias aparecem aí descritas sob o seu peso em gramas [g] ou microgramas [µg] e nunca em número de unidades de comprimidos.
Podemos ainda invocar o exemplo dos Estados Unidos da América (EUA), que tem, como se sabe, larga experiência no combate ao tráfico de drogas.
A legislação norte-americana, que pune o tráfico de estupefacientes, contém vários escalões punitivos segundo a quantidade de substância estupefaciente detida ou traficada.2
No escalão máximo, punível com a pena de prisão não inferior a 10 anos e não superior a prisão perpétua estão determinadas quantidades mínimas de estupefacientes:
- 1 kg ou mais de uma mistura ou substância contendo uma quantidade detectável de heroína;
- 5 kg ou mais de uma mistura ou substância contendo uma quantidade detectável de folhas de coca, etc.;
- 50 g ou mais de uma mistura ou substância contendo base de cocaína;
...
- 10 g ou mais de uma mistura ou substância contendo uma quantidade detectável de LSD;
...
- 100 g ou mais de metanfetamina, dos seus sais, isómetros e sais dos seus isómetros ou 1 kg ou mais de uma mistura ou substância contendo uma quantidade detectável de metanfetamina, dos seus sais, isómetros e sais dos seus isómetros.
Pois bem, mesmo relativamente às substâncias sintéticas atrás mencionadas, sob a forma de comprimidos ou pílulas, entre elas a metanfetamina, nunca a legislação dos EUA se refere às quantidades em unidades de comprimidos, mas sempre às quantidades de substâncias estupefacientes, para efeitos da sua punição.
E nem se diga – e foi este o único argumento aduzido na decisão recorrida para vingar a tese de que quando a droga for do tipo sintético, em comprimidos ou pílulas, só é de considerar o número de unidades e não a quantidade de estupefaciente – que nas drogas sintéticas fabricadas sob a forma de comprimido, por efeito da mistura das substâncias, pode ocasionar efeitos mais nocivos para a saúde dos consumidores.
Mesmo na economia desta tese seria fundamental demonstrar-se que, no caso concreto, o produto sob a forma de comprimido, por via das outras substâncias constituintes, é mais nocivo para a saúde que a substância estupefaciente na forma pura, naquele contida. Não se olvide que estamos no campo do Direito Penal, bastando apenas recordar o princípio nulla poena sine culpa, sem necessidade de outras consideração adjuvantes. E não se vislumbra qualquer facto provado na matéria.
Mas esta tese não é aceitável porque não tem em consideração que as penas dos crimes dos arts. 8.º e 9.º do Decreto-Lei n.º 5/91/M são as que constam das normas em referência porque está em causa o tráfico de substâncias estupefacientes ou psicotrópicas. O Decreto-Lei n.º 5/91/M e os tipos criminais dele constantes nada têm que ver com detenção, venda ou comercialização de produtos prejudiciais à saúde pública, que está prevista na Lei n.º 6/96/M, de 15.7, diploma que regula o regime jurídico das infracções contra a saúde pública e contra a economia e no art. 269.º do Código Penal, que pune a comercialização de substâncias destinadas a consumo alheio criando perigo para a vida ou perigo grave para a integridade física de outrem.
O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
O conhecimento oficioso deste vício
4. Sendo este um facto relevante há insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do art. 400.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Penal.
Como este Tribunal tem entendido, ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a matéria de facto provada se apresente insuficiente para a decisão de direito adequada, o que se verifica quando o tribunal não apurou matéria de facto necessária para uma boa decisão da causa, matéria essa que lhe cabia investigar, dentro do objecto do processo, tal como está circunscrito pela acusação e defesa, sem prejuízo do disposto nos arts. 339.º e 340.º do Código de Processo Penal.3
De facto, embora o facto não constasse da acusação,4 o Tribunal Colectivo devia tê-lo dado como provado, já que se tratava de matéria relevante,5 sendo que o Tribunal havia determinado a realização de exame, o que foi feito, a requerimento do arguido. E devia ter consignado o facto, na fundamentação da sentença, nos termos do art. 339.º, n. os 1 e 2 do Código de Processo Penal, por se tratar de alteração não substancial dos factos com relevo para a decisão, mas sem ter de estabelecer o contraditório relativamente ao arguido, já que se teria de considerar que a alteração derivava de factos trazidos ao processo pela defesa, por ter sido o arguido a requerer o exame.
O recorrente não fundamentou o recurso no apontado vício. Efectivamente, embora o recorrente tenha, a dado passo da sua motivação, alegado que a decisão recorrida sofria do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a verdade é que se não detecta tal vício nas questões suscitadas pelo recorrente, que se cingem, na sua totalidade, a questões de direito (n.º 1, do art. 400.º do Código de Processo Penal). De toda a sorte, ainda que assim se não entendesse, o certo é que o recorrente não suscitou a questão concreta em apreço.
Não obstante, o Tribunal entende que pode e deve conhecer oficiosamente do vício, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito, o que acontece também, incontroversamente, em processo civil, nos casos paralelos dos arts. 629.º, n.º 4 e 650.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, em que nem sequer estão em causa os interesses públicos subjacentes ao processo criminal.
Como decidiu este Tribunal no Processo n.º 11/2001, de 30 de Julho de 2001, detectado pelo Tribunal de Última Instância o vício do art. 400.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Penal, não deve reenviar logo o processo para novo julgamento na primeira instância, mas remetê-lo ao Tribunal de Segunda Instância, para que este decida se pode sanar o vício ou se tem de reenviá-lo para novo julgamento.
IV – Decisão
Face ao expendido, anula-se a decisão recorrida e decide-se determinar a baixa do processo ao Tribunal de Segunda Instância, para que seja apurada a quantidade de metanfetamina nos 40 comprimidos encontrados na posse do recorrente e se profira decisão em conformidade com a doutrina exposta.
Sem custas.
Macau, 30.5.2002
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai
Chu Kin
1 E já não se menciona a ketamina – a outra substância estupefaciente contida nos comprimidos - porque o laboratório competente se declarou incapaz de levar a cabo tal tarefa, pelo que não seria possível apurar tal facto.
2 Cfr. The Controlled Substances Act, codificado no United States Code, Secção 841, podendo ser consultado em http://www.usdoj.gov/dea/pubs/csa.html
3 Acórdão de 20 de Março de 2002, no Processo n.º 3/2002.
4 Mas devesse constar se se tivesse procedido a exame, como se impunha.
5 A matéria de facto relevante para a decisão da causa que deve constar da acusação e da sentença, nos termos dos arts. 265.º, n.º 3, alínea b) , 339.º, n.º 1e 355.º, n.º 2, do Código de Processo Penal , não pode deixar de ser “segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito”, como se expressa o n.º 1, do art. 430.º, do Código de Processo Civil, aplicável indiscutivelmente em processo penal, pela via de aplicação subsidiária imposta pelo art. 4.º do Código de Processo Penal.
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1
Proc. n.º 7/2002