打印全文
Processo nº 640/2010
Data do Acórdão: 08MAIO2014


Assuntos:

Notificação para a audiência prévia
Construções ilegais
Desocupação do terreno
Ordem de demolição
Erro nos pressupostos de facto
Erro nos pressupostos de direito


SUMÁRIO

Não dispondo a recorrente de qualquer título legítimo para ocupar o terreno em causa, não se verifica o invocado erro nos pressupostos de facto e de direito no acto recorrido que lhe ordenou a desocupação do terreno, a demolição da construção nele edificada e a entrega à RAEM.


O relator



Lai Kin Hong

Processo nº 640/2010

I

Acordam na Secção Cível e Administrativa do Tribunal de Segunda Instância da RAEM

B, devidamente identificada nos autos, vem recorrer do despacho do Senhor Chefe do Executivo que ordenou os ocupantes desconhecidos procedam no prazo de 30 dias à desocupação de um terreno situado em Coloane, à demolição e ao despejo da construção ilegal, à remoção dos materiais e equipamentos nele depositados e à entrega do terreno ao Governo da RAEM, sem direito de indemnização, concluindo e pedindo que:

a) Recorre-se do despacho de S. Exa. o Chefe do Executivo de 08/06/2010, inserto em edital publicado em 23 de Junho de 2010;
b) O recurso é tempestivo;
Assim, por um lado,
c) O despacho é anulável, por falta de elementos essenciais ao acto (art.º 21º nº 2 a) do CPAC), uma vez que, a recorrente não foi notificada pessoalmente - podendo e devendo sê-lo - para se pronunciar sobre o sentido provável da decisão final, finda a instrução do processo (art.º 93º e segs. do CPA);
Sendo igualmente,
d) Anulável, por violação de lei, por erro nos pressupostos de facto e de direito;
Já que,
e) Salvo o devido respeito, o despacho ignora ostensivamente a posse da recorrente e dos seus antecessores sobre o terreno em causa - facto que, aliás, não só é notório, como é comum aos demais possuidores de terrenos, na Ilha de Coloane, em situações identicas;
f) O que se traduz em violação de lei, já que se trata de erro manifesto e de uma total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários (art. o 21º nº 1, al. d) do CPCA).
Finalmente,
g) A recorrente irá intentar acção judicial em que pedirá a aquisição do terreno por usucapião ou, em alternativa, a aquisição do mesmo por acessão industrial imobiliária.
Nestes termos e como se peticiona deverá ser dado provimento ao presente recurso, anulando-se o despacho recorrido.
Assim se fazendo JUSTIÇA,

Citado, vem o Senhor Chefe do Executivo contestar pugnando pela improcedência do recurso – vide as fls. 27 a 36 dos p. autos.

Por despacho do Relator originário a fls. 112 dos p. autos, foi determinada, a requerimento da recorrente, a suspensão da instância com fundamento de que a decisão da causa estava dependente do julgamento do processo civil nº CV2-40-0078-CAO, que corria os seus termos no TJB.

Com o trânsito em julgado da sentença proferida nesses autos nº CV2-40-0078-CAO, cessou a suspensão da instância.

Retomada a tramitação nos seus termos normais e cumprido o disposto no artº 68º do CPAC, não foram apresentadas as alegações facultativas.

Em sede da vista final, o Dignº Magistrado do Ministério Público opinou no seu douto parecer que o recurso não merecia provimento – vide as fls. 147 e v. dos p. autos.

Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.

II

Antes de entrar na apreciação do recurso, urge resolver uma questão que se prende com a prova testemunhal requerida pela recorrente mediante a petição do recurso e o requerimento a fls. 79 dos p. autos, e que, por lapso, não foi ainda decidida.

De acordo com o requerimento a fls. 79 dos p. autos, a recorrente pretende que as duas testemunhas sejam inquiridas sobre a matéria alegada nos nºs 6, 9, 13, 16 e 18 da petição de recurso.

A matéria tem o seu seguinte teor:

6. A recorrente vive no local referido no edital, um "... prédio de estrutura em betão armado e paredes em alvenaria de tijolo", o qual, nos termos do despacho recorrido, se pretende ver "demolido e despejado".
9. A recorrente adquiriu o terreno, em causa a C (C) por contrato outorgado em 05/06/2009 pelo valor de HKD$6,000,000.00 (Seis milhões dólares de Hong Kong) (Doc. nº 3);
13. Ao D (D) havia sido transmitida a posse dos seus antecessores, a qual datava de há várias dezenas de anos.
16. A recorrente, como refere o despacho recorrido, edificou - a suas exclusivas expensas e de boa fé - no terreno em causa, a sua habitação, passando o terreno a ter um valor maior do que tinha antes.
18. O valor do imóvel incorporado no terreno é manifestamente superior ao valor do terreno, pelo que assiste à recorrente, nos termos do nº 1 do art.º 1259º do C.C., o direito de adquirir a propriedade do terreno, alegadamente propriedade da R.A.E.M., desde que indemnize a R.A.E.M., pelo valor que este tinha antes.

Ora, à excepção do alegado no nº 6, verificando-se que o objecto das provas testemunhais se reporta ou à matéria conclusiva ou de direito, ou à matéria insusceptível de ser objecto da prova testemunhal, ou à matéria irrelevante para a boa decisão da causa, é de indeferir as requeridas provas testemunhais – artº 65º/3, a contrario, do CPAC.

Em relação à matéria alegada no nº 6, tendo em conta as diligências realizadas pela DSSOPT e devidamente documentadas nos autos de procedimento administrativo que culminou com a prolação do acto recorrido, é de adiantar que um facto incompatível com o alegado e demonstrativo de que o prédio, semi-concluído, existente no local em causa não ter condições mínimas quer para habitação quer para ser endereço postal, já resulta suficientemente demonstrado em documentos do processo instrutor, nomeadamente as imagens documentadas, o que nos dispensa a realização de quaisquer actividades probatórias.

Compulsando os autos de procedimento administrativo, verificamos que, durante o período compreendido entre 05NOV2009 e 06MAIO2010, data em que foi publicado o edital notificando os interessados para o exercício do contraditório sobre a provável ordem de desocupação do terreno em causa, foram realizadas diligências de inspecção ao local onde se encontra a obra em causa.

Na diligência levada a cabo in loco em 05NOV2009, foi lavrado por quatro fiscais da DSSOPT um auto onde se relatou que no terreno em causa não existia qualquer construção e foram feitas constar várias fotografias, que demonstram claramente a imagem de que a recorrente não podia viver fisicamente naquele sítio nem o sítio podia servir-se do endereço postal – vide fls. 3 a 6 dos autos do procedimento administrativo.

E conforme se vê as fotografias tiradas e feitas constar dos autos das diligências realizadas em 19JAN2010, 26JAN2010, 28JAN2010, 05FEV2010, 03MAR2010, 19MAR2010, 26MAR2010, 12ABR2010, 29ABR2010, data em que foi decidida a notificação por via de edital, com fundamento na impossibilidade de notificação pessoal e postal por ser impossível o apuramento da identidade do dono da obra, o facto alegado no nº 6 não pode deixar de ser julgado não provado, pois as tais fotografias, demonstram nitidamente o andamento da construção de um prédio, de betão e de tijolo, e sem condições para o alojamento das pessoas, nem para ser endereço postal.

Ora, a veracidade destes elementos probatórios existentes nos autos do procedimento administrativo, a que podia ter acesso a recorrente, nunca foi questionada pela recorrente.

É verdade que a recorrente requereu a inquirição das 2 testemunhas.

É também verdade que por força do princípio da livre apreciação de provas, o valor e a força dos meios de prova não podem ser correctamente aferidos a priori, com o carácter de generalidade próprio dos critérios legais.

Mas tendo em conta as circunstâncias concretas do caso, cremos que a realidade e credibilidade dos factos, bem demonstrados pelas fotografias constantes dos autos de procedimento, não são por natureza susceptíveis de ser abaladas pelo simples testemunho.

Assim, não há lugar à inquirição das testemunhas.

Arrumada esta questão prévia, passemos então a apreciar o mérito do recurso.

Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).

Assim, de acordo com o alegado no petitório do recurso, são as seguintes questões que constituem o objecto do presente recurso:

1. Da falta de notificação pessoal para a audiência prévia; e

2. Da violação de lei por erro nos pressupostos de facto e de direito.

Mediante exame dos elementos documentais constantes dos autos do presente recurso e do processo administrativo, é tida por assente a seguinte materialidade fáctica com relevância à apreciação e à boa decisão do presente recurso:

* Em 05NOV2009, numa diligência de inspecção realizada em Coloane no âmbito das actividades de fiscalização nos termos previstos no artº 52º do D. L. nº 79/85/M, foi detectada pelo pessoal da DSSOPT que foi construído um muro de cerca de betão e de alvenaria de tijolo que rodeia um terreno situado em frente do poste de iluminação nº 918C14 da Povoação de Hac Sá na Ilha de Coloane, cuja localização foi assinalada no mapa constante das fls. 201 do processo instrutor, sem que tenha sido emitida licença de ocupação temporária nem licença para a execução de tais obras;

* Na sequência disso, foi instaurado o procedimento administrativo de ocupação e restituição do terreno à posse da RAEM nº 39/DC/2009/F;

* De acordo com a certidão da Conservatória do Registo Predial, de 22ABR2010, sobre o terreno em causa, não se encontra registado a favor de particular (pessoa singular ou pessoa colectiva) direito de propriedade ou qualquer outro direito real, nomeadamente de concessão, por aforamento ou por arrendamento;

* Posteriormente, nas diligências realizadas in loco em 19JAN2010, 26JAN2010, 28JAN2010, 05FEV2010, 03MAR2010, 19MAR2010, 26MAR2010, 12ABR2010, 29ABR2010, foi detectado pelo pessoal da DSSOPT que ia sendo construído um prédio de estrutura em betão armado e paredes em alvenaria de tijolo, – vide as foto tiradas aquando dessas diligências e ora feitas constar nos autos de procedimento administrativo;

* À execução dessa obra de construção do prédio não foi precedida da emissão de qualquer licença pela DSSOPT;

* Em 06MAIO2010, foi publicado no jornal em chinês Ou MUN e no jornal em português Tribuna de Macau, o edital notificando os interessados desconhecidos para o exercício do contraditório sobre a provável ordem de desocupação do terreno em causa;

* Na mesma data, o pessoal de fiscal da DSSOPT que se deslocou ao terreno, na sequência de lhe ter sido recusada a entrada no terreno por trabalhadores de construção que ali se encontravam a trabalhar, afixou o mesmo edital na porta de acesso ao terreno;

* O mesmo edital foi também afixado no local de costume do IACM;

* Na sequência da publicação e afixação do edital, nenhum interessado apareceu para exercer o contraditório;

* Por despacho do Senhor Chefe do Executivo, exarado em 08JUN2010, sobre a informação nº 3299/DURDEP/2010, foi ordenado que os ocupantes desconhecidos procedam, no prazo de 30 dias a contar da data de publicação do edital, à desocupação do terreno em causa, à demolição e ao despejo da construção ilegal, removendo os materiais e equipamentos nele depositados, bem como procedam à entrega do terreno ao Governo da RAEM, sem direito de indemnização;

* A ordem de demolição e o demais decidido foram notificados à recorrente através da publicação em 23JUN2010 dos anúncios do edital nº 157/E/2010 no jornal em chinês Ou MUN e no jornal em português Tribuna de Macau, assim como da afixação do edital na porta de acesso ao terreno em causa e no local de costume do IACM;

* Inconformada com despacho do Senhor Chefe do Executivo de 08JUN2010, a recorrente interpôs o presente recurso contencioso para este TSI mediante o requerimento motivado em 23JUL2010, para além do pedido de suspensão de eficácia que acabou por ser indeferido;

* Mediante a petição inicial que deu entrada na Secretaria do TJB, a recorrente intentou uma acção declarativa com processo comum ordinário contra a RAEM e interessados incertos pedindo que fosse declarada a aquisição por parte da ora recorrente, por usucapião, da propriedade do terreno em causa, subsidiariamente ou o reconhecimento à recorrente do direito à concessão do mesmo terreno por arrendamento, gratuitamente e em condições a definir por parte da RAEM, ou que fosse declarada a aquisição por parte da recorrente, por acessão, da propriedade daquele terreno, indemnizando a RAEM pelo justo valor do mesmo terreno, ou o reconhecimento à recorrente do direito à concessão do terreno por arrendamento, gratuitamente e em condições a definir por parte da RAEM, ou o reconhecimento à recorrente do direito a ser indemnizada por parte da RAEM pelo valor da edificação que incorporou no terreno;

* Acção essa que foi registada sob o nº CV2-10-0078-CAO e corre os seus termos no 2º juízo cível do TJB; e

* Por sentença transitada em julgado proferida nos autos dessa acção, a mesma acção foi julgada totalmente improcedente, conforme se vê na certidão a fls. 130 a 137v dos p. autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

Então vejamos.

1. Da falta de notificação pessoal para a audiência prévia

Para sustentar que ela própria, enquanto interessada, poderia e deveria ter sido notificada pessoalmente e não através de edital) alega a recorrente que “vive no local referido no edital, um prédio de estrutura em betão armado e paredes em alvenaria de tijolo”.

Todavia, conforme vimos supra, o alegado ficou não provado por ser manifestamente incompatível com as imagens documentadas nos autos, isto é, o prédio, em construção, existente no local em causa não tinha as mínimas condições quer para habitação quer para ser endereço postal.

De acordo com a certidão da Conservatória do Registo Predial, de 22ABR2010, sobre o terreno em causa, não se encontra registado a favor de particular (pessoa singular ou pessoa colectiva) direito de propriedade ou qualquer outro direito real, nomeadamente de concessão, por aforamento ou por arrendamento.

Além disso, em 06MAIO2010, data em que se afixou o edital com vista à notificação dos interessados para exercer o contraditório na porta de acesso ao terreno, o pessoal de fiscal da DSSOPT que se deslocou ao terreno, tentou entrar no terreno mas não conseguiu por ter sido recusada a entrada no terreno por trabalhadores de construção que ali se encontravam a trabalhar.

Ora, esses factos todos, globalmente contemplados, levam-nos a crer com a razoável segurança que os ocupantes do terreno e o dono das obras poderiam ser considerados “desconhecidos” para efeitos de notificação.

Assim, à luz do disposto no artº 72º/2 do CPA, a forma da notificação dos interessados desconhecidos é a notificação edital, consistente na afixação dos editais nos locais de estilo e na publicação dos anúncios em dois dos jornais mais lidos do Território, um em língua portuguesa, outro em língua chinesa.

Foi justamente o que sucedeu e portanto bem andou a Administração ao optar pela notificação edital.

Improcede assim essa parte do recurso.

2. Da violação de lei por erro nos pressupostos de facto e de direito

Para a recorrente, ao pretender que ela, enquanto possuidora do terreno e titular do direito de o adquirir por usucapião, proceda à desocupação do terreno, à demolição do prédio nele edificado e á entrega do terreno à RAEM, o despacho ora recorrido padece do vício de erro nos pressupostos de facto e de direito.

O que quer dizer que a recorrente apoia o seu pedido de anulação na invocada posse do terreno e no invocado direito de o adquirir por usucapião.

Ora, sendo consideradas questões prejudiciais, os efeitos aquisitivos da invocada posse e o invocado direito de aquisição por usucapião, já foram objecto da decisão da acção civil autónoma acima identificada.

Com o doutamente decidido nessa acção, cai por terra todos os argumentos aduzidos pela recorrente para sustentar a sua pretensão de ver anulado o acto recorrido.

Pois nos termos da mesma sentença, foi por força do chamado princípio da imprescritibilidade dos terrenos vagos de Macau após 19DEZ1999, que a propriedade do terreno em causa, não integrado no regime da propriedade privada nem inscrito no registo predial como propriedade privada de alguém, nunca pode ser adquirida pela ora recorrente por usucapião, o que determina a improcedência dos pedidos formulados pela ora recorrente na petição inicial daquela acção.

Assim não dispondo a recorrente de qualquer título legítimo para ocupar o terreno em causa, não se verifica o invocado erro nos pressupostos de facto e de direito no acto recorrido que lhe ordenou a desocupação do terreno, a demolição da construção nele edificada e a entrega à RAEM.

Tudo visto, resta decidir.

III

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conferência negar provimento ao recurso.

Custas pela recorrente, com taxa de justiça fixada em 8 UC.

Notifique.

RAEM, 08MAIO2014

(Relator) Presente
Lai Kin Hong Victor Manuel Carvalho Coelho

(Primeiro Juiz-Adjunto)
João A. G. Gil de Oliveira
(Segundo Juiz-Adjunto)
Ho Wai Neng
640/2010-1