Processo n.º 411/2017
(Recurso em processo penal)
Arguido recorrente: A
DECISÃO SUMÁRIA NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA
1. Por acórdão proferido a fls. 186 a 191 do Processo Comum Colectivo n.º CR3-15-0404-PCC do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficou condenado o arguido A, aí já melhor identificado, como autor material de um crime consumado de abuso de confiança (em valor consideravelmente elevado), p. e p. pelos art.os 199.º, n.º 4, alínea b), e 196.º, alínea b), do Código Penal (CP), na pena de dois anos de prisão, suspensa na execução por três anos.
Inconformado, veio o arguido recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando, em essência, na motivação apresentada a fls. 222 a 242 dos presentes autos correspondentes, que:
– o acórdão recorrido padece, desde já, do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada aludido no art.º 400.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal (CPP), porquanto: o crime de abuso de confiança consuma-se quando o agente, que recebe coisa móvel por título não translativo da propriedade para lhe dar determinado destino, dela se apropria, passando a agir animo domino; essa inversão de título deve ser demonstrada por actos objectivos, reveladores de que o agente já está a dispor da coisa como se sua fosse; entretanto, no caso, a entrega da quantia de dinheiro pelo ofendido ao arguido para trocar por fichas não era para ser guardada por este e foi feita por forma translativa da propriedade; daí que a inversão de título e o animo domino não estão facticamente comprovados na matéria de facto assente no acórdão; no caso, existe sim um acordo de troca de bens entre o ofendido e o arguido, ou seja, o ofendido dá o seu dinheiro ao ofendido e este se compromete a entregar fichas; verifica-se assim manifesta insuficiência que se traduz em erro na qualificação jurídica dos factos que dá lugar à revogação da decisão recorrida, ou, quanto muito, num erro de julgamento (pois era imprescindível que constassem do acórdão factos concretos no respeitante a “título não translativo da propriedade”, o que não sucedeu no acórdão);
– por outro lado, nunca o próprio arguido pode ser condenado por abuso de confiança, porque: ficou plenamente assente que o que o lesado queria era jogar ilicitamente e por isso queria arranjar fichas para jogar e assim entregou uma quantia ao arguido para que este fizesse sua e depois de depositar na sua conta trocava por fichas de jogo e entregava ao ofendido; existe assim um acordo de troca em que é entregue dinheiro ao arguido e este fica obrigado a entregar fichas e por isso não existe qualquer depósito e obrigação de devolver essa quantia; entende a doutrina que a violação de um direito de crédito – o que ocorreu nos autos conforme os factos provados – de quem fez a entrega da coisa não pode nunca integrar o tipo objectivo de ilícito do abuso de confiança; quanto ao elemento da apropriação, não existe qualquer prova nos autos, visto que o arguido assume logo o dinheiro como seu quando deposita na sua conta e pede ao promotor de jogo para trocar por fichas; violou, pois, o acórdão recorrido o disposto nos art.os 199.º, n.º 4, alínea b), e 196.º do CP;
– deve, assim, o arguido ser absolvido ou ser repetido o julgamento, e fosse como fosse, não deixaria a pena aplicada a ele no acórdão recorrido de ser exagerada ao arrepio do art.º 65.º do CP, pelo que deveria a pena ser reduzida para não exceder um ano e seis meses de prisão, a ser suspensa por um ano.
Ao recurso, respondeu a Digna Delegada do Procurador a fls. 244 a 246 dos autos, no sentido de improcedência da argumentação do recorrente.
Subido o recurso, a Digna Procuradora-Adjunta emitiu parecer a fls. 257 a 258v, opinando pela improcedência do recurso.
Cumpre decidir, nos termos permitidos pelo art.o 407.o, n.o 6, alínea b), do CPP.
2. Do exame dos autos e com pertinência à decisão, sabe-se que:
O texto do acórdão ora recorrido consta de fls. 186 a 191 dos autos, cujo teor integral se dá por aqui integralmente reproduzido.
No processado anterior em primeira instância, o arguido não chegou a apresentar contestação aos factos imputados, mas sim se limitou a pedir a gravação da audiência de julgamento, a arrolar testemunhas e a pedir a confiança do processo para consulta (cfr. a exposição escrita apresentada a fl. 153).
De acordo com a factualidade provada em primeira instância:
– em 26 de Janeiro de 2015, cerca das 9 horas da noite, o ofendido referiu a um amigo seu (que se dedicava à actividade de bate-fichas) que tinha um milhão de dólares de Hong Kong para jogar (cfr. o facto provado 1);
– esse amigo do ofendido telefonou de imediato ao arguido que era também bate-fichas (cfr. o facto provado 2);
– cerca das 10 horas e 15 minutos da mesma noite, o ofendido e o seu referido amigo depositaram um milhão de dólares de Hong Kong em numerário na conta do arguido aberta no Clube VIP X, no Casino X de Macau (cfr. o facto provado 3);
– cerca das 10 horas e 30 minutos dessa noite, o arguido chegou ao dito Clube e sugeriu ao ofendido que fosse jogar num outro Clube VIP no mesmo casino. E depois de chegados a esse outro clube, o arguido entregou meio milhão de dólares de Hong Kong em fichas de jogo ao ofendido para este jogar, e no meio de jogos feitos, o ofendido ganhou cerca de trezentos mil dólares de Hong Kong em fichas, e ao deixar o local, o ofendido entregou ao arguido meio milhão de dólares de Hong Kong em fichas (cfr. o facto provado 4);
– em 27 de Janeiro de 2015, cerca das 2 horas da madrugada, o ofendido, através do referido seu amigo, telefonou para o arguido, pedindo a devolução de um milhão de dólares de Hong Kong em fichas, ao que arguido respondeu que estava a tratar disso (cfr. o facto provado 5);
– nessa altura e até cerca das 3 horas e 40 minutos, o arguido foi ao Clube VIP X e aí, da sua conta, e por diversas operações, transferiu para as contas de outrem, ou levantou em numerário, toda a quantia de um milhão de dólares de Hong Kong pertencente ao ofendido (cfr. o facto provado 6).
3. Sempre se diz que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, à instância de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Decidindo nesses parâmetros, é de observar que a argumentação concretamente tecida na motivação do recurso para suportar a alegada insuficiência para a decisão da matéria de facto provada aludido no art.º 400.º, n.º 2, alínea a), do CPP não tem a ver propriamente com este vício, mas sim com a qualificação jurídico-penal dos factos provados.
Trata-se, pois, de uma questão de direito, e não do eventual vício na tarefa jurisdicional de julgamento da matéria de facto.
Esclarecido isto, há que ver agora essa questão de direito.
O arguido preconiza muito a sua tese de que a quantia de um milhão foi lhe entregue pelo ofendido por título translativo de propriedade, e como tal nem lhe fosse possível a apropriação do mesmo, pelo que decairia a incriminação em sede do tipo-de-ilícito de abuso de confiança.
Entretanto, essa tese não tem alicerce na matéria de facto provada. É que resulta nitidamente dos factos provados especialmente referidos na parte II da presente decisão sumária do recurso, que o ofendido fez depositar o seu um milhão de dólares de Hong Kong na conta do arguido aberta no Clube VIP X no Casino X para jogar depois no casino, e que essa quantia, pertencente ao ofendido, foi depois, por diversas operações, levantada pelo arguido em numerário ou transferida pelo arguido para as contas de outrem, apesar de o ofendido lhe ter pedido a devolução da quantia.
Daí que esses factos provados ilustrem bem que na relação entre o ofendido e o arguido, tal numerário de um milhão de dólares de Hong Kong foi entregue ao arguido por título não translativo de propriedade.
E ao ter sido pedido pelo ofendido para devolver isto mas acabou por dispor de tudo isto (através das diversas operações de levantamento em numerário ou de transferência para outrem), praticou o arguido precisamente o crime de abuso de confiança (em valor consideravelmente elevado) por que vinha condenado, estando, pois, preenchido cabalmente o tipo-de-ilícito (quer objectivo ou subjectivo) de abuso de confiança em causa.
É, pois, correcta a qualificação jurídico-penal dos factos provados decidida pelo Tribunal recorrido.
E agora no tocante à medida da pena, a pretensão do arguido é votada evidentemente ao insucesso, porquanto dentro da moldura penal aplicável de um a oito anos de prisão, o Tribunal recorrido graduou a pena dele em dois anos de prisão, dose da pena esta que vistos todos os ingredientes fácticos já apurados em primeira instância com pertinência à medida concreta da pena aos critérios dos art.os 40.º, n.os 1 e 2, e 65.º, n.os 1 e 2, do CP, já é substancialmente benévola. Quanto à duração da suspensão da execução da pena de prisão, é também muito justa, equilibrada e proprocional à medida concreta da própria pena de prisão, tendo em conta a situação fáctica provada nos autos.
É, pois, de rejeitar o recurso, nos termos dos art.os 407.º, n.º 6, alínea b), e 410.º, n.º 1, do CPP, sem mais indagação por desnecessária, atento o espírito do n.º 2 desse art.º 410.º deste diploma.
4. Nos termos expostos, decide-se em rejeitar o recurso.
Pagará o recorrente as custas do seu recurso, com duas UC de taxa de justiça e quatro UC de sanção pecuniária (pela rejeição do recurso).
Macau, 30 de Junho de 2017.
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Chan Kuong Seng
(Relator do processo)
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