Situação Geral dos Tribunais

Venda de prédio celebrada com abuso de representação é ineficaz em relação ao proprietário

        Durante os meses de Março e Abril de 2010, C contraiu três empréstimos junto de Y, no montante total de HKD$700.000,00. Conforme acordado entre as partes, C obrigava-se a pagar as dívidas até 10 de Setembro de 2010. O não pagamento das dívidas dentro do prazo estipulado obrigaria C a vender prédio a Y para liquidação das dívidas. Por isso, tendo como objecto a fracção X inscrita a favor de C, as partes celebraram em 10 de Março de 2010 um contrato-promessa de compra e venda de imóvel, em que C e Y figuravam respectivamente como promitente-vendedor e promitente-comprador. Ao mesmo tempo, C conferiu a Y plenos poderes para administrar, vender e prometer vender a fracção acima referida, permitindo também a Y negociar consigo mesmo. Nesse mesmo dia, Y, com base no dito contrato-promessa de compra e venda, efectuou registo provisório de aquisição na Conservatória do Registo Predial.

        No dia 10 de Setembro de 2010, Y, no uso dos poderes que lhe foram conferidos e na qualidade de representante de C, celebrou consigo mesmo um contrato de compra e venda de imóvel, transferindo para si a propriedade da respectiva fracção. Em 27 de Setembro de 2010, Y registou a aquisição.

        Em 16 de Fevereiro de 2011, B e Y chegaram a acordo para comprar e vender a fracção X pelo preço de HKD$2.050.000,00, tendo concluído, na altura, um contrato-promessa de compra e venda. Depois disso, vieram as partes outorgar escritura pública de compra e venda em 1 de Abril do mesmo ano, através da qual se fechou o negócio formalmente. No dia 4 de Abril de 2011, B registou a aquisição na Conservatória do Registo Predial.

        Cumpridas as devidas formalidades, B pretendia que lhe fosse entregue a fracção, mas descobriu que C ainda não tinha desocupado a fracção. Por isso, B intentou no Tribunal Judicial de Base acção declarativa, com processo comum, pedindo ao Tribunal para o declarar como legítimo proprietário da fracção X, e proibir C de praticar qualquer acto que prejudicasse o exercício do seu direito de propriedade, bem como ordenar a C a entrega imediata da mencionada fracção.

        O Tribunal Judicial de Base julgou improcedente o pedido do autor B. Inconformado com o assim decidido, B interpôs recurso para o Tribunal de Segunda Instância.

        O Tribunal de Segunda Instância julgou o caso em tribunal colectivo.

        Segundo o Tribunal Colectivo, da análise dos factos decorre que C concedeu a Y poderes para negociar consigo mesmo, o que quer dizer que Y actuou dentro dos limites da procuração ao vender a aludida fracção a si mesmo na qualidade de representante, não se tratando, portanto, de representação sem poderes. Contudo, no entender do Tribunal Colectivo, no acto de procuração, podem as partes convencionar quando e como se exercem os poderes. In casu, apesar de não estarem estabelecidas na procuração restrições temporais ou de outra natureza em relação ao exercício por Y dos poderes conferidos, não se pode olvidar que a procuração em apreço foi outorgada na ocasião em que C e Y concordavam que deveria aquele liquidar as dívidas até 10 de Setembro de 2010, sob pena da venda do prédio respectivo (fracção X). Ou seja, ficou estipulado entre as partes que Y apenas poderia exercer os poderes que lhe foram outorgados a partir de 11 de Setembro de 2010, e no pressuposto de C não ter pago as quantias devidas até às 24h do dia 10 de Setembro.

        Y vendeu a fracção X antecipadamente, quando bem sabia que não a podia vender antes de decorrido o prazo supra aludido, violando, pois, o acordo entre as partes e incorrendo no abuso da representação. Ademais, tendo presente que Y vendeu a fracção X a si mesmo, pode dizer-se que a outra parte do negócio celebrado pelo representante (i.e. o próprio Y) conhecia o abuso. Por fim, não se verifica a hipótese prevista no art.º 261.º, n.º 2 do Código Civil, uma vez que, atenta a atitude de C (representado), não se vislumbra que este tenha contribuído para fundar a confiança do terceiro. Nestes termos, a compra e venda ora em questão é ineficaz em relação ao proprietário da fracção, C, o que conduz à ineficácia dos negócios jurídicos posteriores àquela (o contrato-promessa de compra e venda e o contrato prometido celebrados entre Y e B).

        Pelo exposto, acordaram em negar provimento ao recurso, indeferindo o pedido do autor.

        Cfr. Acórdão do TSI, processo n.º 100/2015.

 

Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância

27/01/2016