Situação Geral dos Tribunais

Declaração de nulidade não prejudica os efeitos da posse. Foi negado provimento ao recurso interposto pela esposa contra a amante do marido que pediu a restituição do imóvel

      Ao Ieong XX (de sexo masculino) e Ho XX (de sexo feminino) casaram-se no interior da China em 16 de Agosto de 1965. Após o casamento, Ao Ieong teve relação extraconjugal com Wong, tendo mantido entre si relação de namorados. Em 1 de Outubro de 1987, Ao Ieong, que ainda mantinha a relação conjugal com Ho, fez a cerimónia de casamento com Wong conforme os costumes tradicionais chineses. Por escritura outorgada em 18 de Novembro de 1994, Ao Ieong doou, a título gratuito, a Wong um imóvel situado na Rua Quatro, Bairro Iao Hon. Desde 1997, Wong explorava no imóvel supracitado o centro de transporte escolar. Em 16 de Janeiro de 2005, Ao Ieong faleceu e na sequência da abertura do processo de inventário obrigatório, Ho descobriu a existência do imóvel gratuitamente doado a Wong pelo seu marido em vida. Em 2009, Ho (1.ª Autora) e os seus 4 filhos (2.º a 5.º AA) intentaram para o Tribunal Judicial de Base de Macau uma acção ordinária de declaração contra Wong (1.ª Ré) e os seus 3 filhos (2.º a 4.º RR), pedindo que o tribunal declarasse nula a doação do imóvel que Ao Ieong tinha feito a favor de Wong e condenasse os RR. a restituir-lhes o referido imóvel. A 1.ª Ré, por sua vez, apresentou a reconvenção, pedindo que o tribunal declarasse a aquisição da propriedade do referido imóvel por usucapião por parte dela.

      O Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base julgou parcialmente procedente a acção e declarou nula a doação com fundamento do artigo 953.º em conjugação com o artigo 2196.º (“é nula a doação à pessoa com quem o doador casado cometeu adultério) do Código Civil de 1966 que vigorava na data da doação, porém, reconheceu que estavam reunidos todos os requisitos da usucapião para a aquisição da propriedade por parte da 1.ª Ré, pelo que, julgou semobrigação de restituição do imóvel aos AA por parte dos RR.

      Inconformados, os AA interpuseram recurso para o Tribunal de Segunda Instância, entendendo que um negócio nulo e contra a ordem pública e os bons costumes não pode produzir efeitos jurídicos, não constituindo um modo abstractamente idóneo para adquirir a propriedade previsto no artigo 1182.º n.º 1 do Código Civil, pelo que, a posse da 1.ª Ré seria não titulada, pelo que, o prazo para a aquisição não seria de 10, mas de 15 anos, nos termos do artigo 1219.º alínea b) do Código Civil.  

      O Tribunal de Segunda Instância procedeu ao julgamento da causa, entendendo que ao abrigo do artigo 1183.º n.º 1 do vigente Código Civil de Macau, qualquer que seja a invalidade do negócio - não apenas a substancial, mas também a formal, a posse será sempre titulada se o título for um modo abstractamente idóneo para adquirir o direito. No caso em apreço, a doação é um modo abstractamente idóneo para adquirir a o direito do imóvel e certo é que foi na sequência da respectiva escritura de doação que a 1.ª Ré procedeu ao respectivo registo e passou a possuir o imóvel, vindo mesmo a explorar nele um centro de transporte escolar, pelo que, é titulada a posse da 1.ª Ré sobre o imóvel.

      O Tribunal Colectivo referiu que a declaração de nulidade da doação não prejudica os efeitos da posse, uma vez que no caso em apreço a aquisição da propriedade do referido imóvel por parte da 1.ª Ré não deriva do título válido (escritura de doação), mas sim da usucapião radicada dos actos de “posse boa”, pacífica e de boa fé assentes no título. Não está em discussão uma aquisição derivada, mas originária da propriedade, que é imune aos vícios do título, pelo que, a declaração de nulidade da doação feita pelo tribunal não impede a aquisição da propriedade do imóvel por usucapião por parte da 1.ª Ré.

      Dado que a posse da 1.ª Réu sobre o referido imóvel é titulada e de boa-fé e tinha pendurado durante pelo menos 10 anos, e no caso em apreço, a usucapião foi adequadamente invocada, é de julgar que a 1.ª Ré é a proprietária do referido imóvel.

      Pelos fundamentos acima expostos, o Tribunal Colectivo negou provimento ao recurso, confirmando a sentença do Tribunal de Primeira Instância.

      Cfr. Acórdão do Tribunal de Segunda Instância no Processo n.º 254/2014.  

 

Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância

18/11/2014