Situação Geral dos Tribunais

Dois Médicos Foram Condenados pela Prática do Crime de Ofensas por Negligência por Erro no Diagnóstico

      Na tarde do dia 18 de Outubro de 2002, o ofendido E (com 2 anos de idade) sentiu dores intensas na zona abdominal, e foi levado por um familiar para consulta médica junto das Consultas Externas do Hospital Kiang Wu. O ofendido foi diagnosticado abalo gastrointestinal e gastrite aguda pelo seu médico, que aplicou tratamento adequado. Mas depois de voltar para casa, as dores intensas do ofendido ainda persistiam. Na manhã do dia 19 de Outubro, o pai do ofendido levou-o à Consulta Ambulatória de Pediatria do Hospital Kiang Wu. O médico assistente do ofendido foi A (o 1º arguido), sendo sua assistente B (o 2º arguido). Na altura, o 1º arguido, conforme o processo clínico e os sintomas do ofendido, fez o diagnóstico de infecção de intestinos e abalo gastrointestinal, e transferiu o ofendido para o quarto de 1ª classe. Após o internamento, o fendido recebeu medicamentos e tratamentos, mas continuou a sentir dores intensas na zona abdominal. O hospital realizou ao ofendido o exame de raio-X, e exames laboratoriais de sangue e das fezes do ofendido, bem como a ecotomografia do abdómen. Os 1º e 2º arguidos tinham ponderado a possibilidade de outras doenças tais como o íleo, a intussuspecção intestinal e a pancreatite, mas segundo os sintomas clínicos e o exame de raio-X, entenderam que não havia íleo, pelo que não realizaram o exame de intussuspecção intestinal nem exigiram a junta médica com médicos de cirurgia. Até à tarde do dia 24 de Outubro, o ofendido ainda sentiu dores. O pai do ofendido decidiu pela alta hospitalar do filho, a fim de levá-lo para receber tratamento em Hong Kong. Na noite do dia 24 de Outubro, o pai do ofendido levou o filho para um hospital de Hong Kong, cujo médico realizou de imediato vários exames. Mais tarde, o médico de pediatria deste hospital afirmou que, conforme o diagnóstico clínico, o ofendido sofreu, sem dúvida, da intussuspecção intestinal. Nessa mesma noite, o médico do referido hospital procedeu de novo à ecotomografia do ofendido, cujo resultado revelou que o ofendido sofreu da intussuspecção intestinal. Depois, o ofendido foi operado de urgência, e em 26 de Outubro de 2002, submeteu-se a uma segunda intervenção cirúrgica intestinal. No dia 2 de Novembro de 2002, o ofendido teve alta e voltou para Macau.

      A pedido do Ministério Público, os Serviços de Saúde formou um Conselho de Perícia Médica para o presente processo. O Conselho chegou às seguintes conclusões no seu relatório pericial: I. Durante todo o processo de tratamento médico do doente, o pessoal médico da Pediatria do Hospital Kiang Wu foi realmente cuidadoso, e efectuou um registo pormenorizado da situação do doente, revelando a atenção a nível profissional desse pessoal. II. Verifica-se, no entanto, a insuficiência no diagnóstico feito pelo médico assistente do doente, que não podia realizar activamente os exames complementares conforme o desenvolvimento efectivo da doença, nem exigiu a junta médica. III. A saúde do menor doente não é afectada ou prejudicada a longo prazo.

      Após a instrução, o Juízo de Instrução Criminal proferiu despacho, acusando respectivamente os dois arguidos A e B da prática de um crime de ofensas à integridade física por negligência, p. p. pelo CPM, remetendo os autos ao Tribunal Judicial de Base para o julgamento. Os pais do ofendido C e D, na qualidade de autores e em representação do menor E, apresentaram pedido cível de indemnização contra A, B e a Associação de Beneficiência do Hospital Kiang Wu, solicitando que estes três demandados fossem condenados solidariamente no pagamento de MOP$67.517,80 por danos patrimoniais e MOP$940.000,00 por danos não patrimoniais.

      Através do julgamento, o Colectivo do Juízo Penal do TJB decidiu: I) Absolver, segundo o princípio de in dúbio pro reo, o 1º arguido A e o 2º arguido B do crime de ofensas à integridade física por negligência. II) Deferir o pedido cível de indemnização, e condenar os três demandados no pagamento solidário da quantia total de MOP$85.000,00; e indeferir os outros pedidos. Inconformadas com o acórdão do TJB, recorreram ambas as partes para o Tribunal de Segunda Instância.

      O Colectivo do TSI teve o seguinte entendimento: trata-se, in casu, de dois recursos, um é interposto pelos assistentes e demandantes cíveis contra a decisão penal e a decisão civil, e o outro é interposto pelos demandados cíveis contra a decisão civil.

      Quanto à decisão penal, indicou o Colectivo do TSI que a questão de direito suscitada no recurso foi se as condutas dos dois arguidos constituíram o crime acusado, ou seja o crime de ofensas à integridade física por negligência p. p. pelo art.º 142.º do CPM, e a chave da discussão residiu em verificar a culpa subjectiva da negligência dos arguidos.

      O Colectivo do TSI entendeu que, durante todo o processo de tratamento médico do doente, o pessoal médico da Pediatria “foi realmente cuidadoso, e efectuou um registo pormenorizado da situação do doente, revelando a atenção a nível profissional desse pessoal”, isso apenas mostrou o cuidado do pessoal médico, sem revelar qualquer “actividade de tratamento que deve ser considerada adequada de acordo com as regras profissionais e os conhecimentos médicos na altura”, e ao contrário, foi referido expressamente no relatório pericial que “verifica-se, no entanto, a insuficiência no diagnóstico feito pelo médico assistente do doente, que não podia realizar activamente os exames complementares conforme o desenvolvimento efectivo da doença, nem exigiu a junta médica”, não sendo aplicável, assim, ao nosso caso o art.º 144.º do CPM que prevê situações em que são afastadas ofensas à integridade física. Com existência de sintomas evidentes da intussuspecção intestinal, os arguidos, como médicos especialistas, ainda fizeram um diagnóstico errado, provocando a ineficácia dos planos de tratamento posteriores. Não se pode excluir a negligência de um médico especialista a quem é atribuído o dever de cuidado especial. Admite-se que os arguidos são apenas médicos de pediatria geral, e se calhar são exigidos diagnósticos e tratamentos mais profissionais para as doenças abdominais e intestinais, mas, por um lado, a perícia médica não afasta a impossibilidade de diagnóstico correcto feito por médico de pediatria; por outro lado, os médicos de pediatria em causa não recorreram à junta médica com médicos de cirurgia, quando o tratamento após vários dias não tinha qualquer efeito. Os dois arguidos suspeitaram a situação de intussuspecção intestinal ou de íleo, mas com apenas abdómen simples e exame de ecotomografia, não procederam a exames relativos às suas suspeitas, e sob a condição de os exames não fossem realizados em relação às referidas suspeitas, insistiram em que as dores do ofendido não foram causadas pela intussuspecção intestinal, verificando-se, assim, negligência nas condutas dos dois arguidos, até negligência consciente, razão pela qual, as condutas dos arguidos constituíram obviamente o crime acusado.

      Quanto à responsabilidade civil, entendeu o Colectivo do TSI o seguinte: com base na decisão sobre o recurso relativo à parte penal, e verificada a negligência dos arguidos, podemos chegar facilmente à conclusão de que fica provada a responsabilidade civil decorrente do crime. Sendo um dos demandados, o hospital, devido à sua relação de mandato com os outros dois demandados, também assume a responsabilidade de indemnização prevista pelo art.º 493.º do Código Civil, bem como a responsabilidade solidária.

      No hospital de Macau, os médicos não fizeram o diagnóstico correcto da doença, nem conseguiram o plano de tratamento correcto, o que equivale, fundamentalmente, à inexistência de tratamento. Trata-se de despesas que não devia pagar mas foram pagas, pelo que tais despesas devem ser indemnizadas. O montante da indemnização por danos não patrimoniais causados pela insuficiência no tratamento, é fixado pelo Juiz ao abrigo dos princípios da justiça e da imparcialidade, atendendo à factualidade provada e ao circunstancialismo no caso concreto. A saúde física e psíquica do homem não tem preço, e a indemnização por danos morais fixada pelo tribunal não passa mais de conforto psíquico do ofendido através da indemnização pecuniária, a qual não pode ser considerada como valorização de corpo.

      Pelos expostos, o Colectivo do TSI decidiu no seguinte: Julgar procedente o recurso interposto pelos assistentes, condenar os dois arguidos pela prática do crime de ofensas à integridade física previsto pelo art.º 142.º do CPM, e o tribunal a quo tem de determinar a medida concreta da pena dos arguidos. Julgar parcialmente procedente o recurso dos demandantes, condenar os demandados no pagamento solidário da quantia de MOP$67.517,80 por danos patrimoniais peticionada pelos 1º e 2º autores; a quantia de MOP$50.000,00 por danos não patrimoniais aos 1º e 2º autores, respectivamente; e a quantia de MOP$100.000,00 por danos não patrimoniais ao 3º autor. Negar provimento ao recurso dos demandados.

      Cfr. Acórdão do TSI, no Processo n.º 857/2011.

 

Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância

2015/05/26