Situação Geral dos Tribunais

Concurso ideal entre o crime de condução perigosa e o crime de homicídio por negligência grosseira

      No dia 27 de Outubro de 2008, pelas 2h38 da madrugada, o agente de trânsito XXX estava em patrulha, conduzindo um motociclo, altura em que o automóvel ligeiro conduzido pelo arguido saiu da Rua de Má Káu Séak. O agente XXX, por suspeitar o arguido de não conduzir conforme a sinalização semafórica, buzinou, assinalando ao arguido para parar o veículo. Mas o arguido ignorou-o e continuou a conduzir o veículo em direcção à Avenida da Amizade. O agente XXX conduzia a uma velocidade de 60 a 70 Km/h em perseguição do arguido, tendo, na altura, buzinado duas ou três vezes. Depois de ter entrado na Alameda Dr. Carlos d'Assumpção, o arguido ainda circulava a uma velocidade superior a 60 Km/h. Quando o arguido chegou ao cruzamento com a Rua de Paris, o automóvel ligeiro por ele conduzido embateu fortemente na traseira esquerda do ciclomotor conduzido pelo ofendido, que entrou no cruzamento da Rua de Paris. Em resultado do embate, o ofendido foi projectado para o passeio para peões situado a uma distância de cerca de 7,30 metros do ponto de embate. O automóvel ligeiro conduzido pelo arguido continuou a avançar, empurrando o ciclomotor em que embatera. E só chegou a imobilizar-se a uma distância de cerca de 30 metros do ponto de embate. Na altura, não havia qualquer vestígio de travagem na via do local. Após o embate, o ofendido ficou gravemente ferido e sofreu de hemorragia quantiosa, e posteriormente, foi transportado pela ambulância para o Centro Hospitalar Conde de S. Januário para tratamento. Mas sem êxito, foi verificada às 3h09 da madrugada do mesmo dia a morte do ofendido. Depois do referido acidente, a taxa de alcoolemia do arguido foi verificada em 1,16g/l, constituindo-se assim uma contravenção. A responsabilidade civil em relação a terceiros emergente do acidente de viação causado pelo automóvel ligeiro conduzido pelo arguido foi transferida para a sociedade D através de apólice de seguro.

      Realizada a audiência de julgamento, o Colectivo do Tribunal Judicial de Base condenou o arguido C pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio por negligência grosseira, na pena de 2 anos e 9 meses de prisão, e pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, na pena de 1 ano e 3 meses de prisão, em cúmulo jurídico, na pena de 3 anos e 3 meses de prisão efectiva. Mais condenou o arguido na pena de suspensão da validade da carta de condução por um ano. A sociedade D foi condenada a pagar a A e B, herdeiros legais do ofendido, a quantia de MOP$841.020,00, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais. Os assistentes/demandantes cíveis A e B, o arguido/demandado cível C e a sociedade demandada D não se conformaram com o acórdão prolatado pelo Tribunal Judicial de Base, vindo dele interpor recursos para o Tribunal de Segunda Instância.

      No entender do Colectivo do Tribunal de Segunda Instância, no âmbito penal, basicamente estava-se perante duas questões de direito:

      1. Do concurso ideal entre o crime de condução perigosa e o crime de homicídio por negligência grosseira

      Na óptica do arguido recorrente, não devia o Tribunal a quo o condenar como autor do crime de condução perigosa p. e p. pelo art.º 279.º do Código Penal, porque este crime já ficou absorvido pelo crime de homicídio por negligência.

      Entendeu o Tribunal Colectivo que, com efeito, o arguido praticou, em concurso aparente ou ideal, um crime de homicídio por negligência grosseira p. e p. pelo art.º 134.º, n.º 2 do Código Penal conjugado com o art.º 93.º, n.º 2 e n.º 3, al. 1) da Lei do Trânsito Rodoviário, e um crime de condução perigosa de veículo rodoviário agravado p. e p. pelo art.º 279.º, em conjugação com os art.ºs 281.º e 273.º, todos do Código Penal. Tratando-se de um concurso ideal e não real, para efeitos de punição do arguido, dever-se-ia escolher entre os crimes praticados o mais grave em abstracto, que seria o crime de homicídio por negligência grosseira. Daí dever o arguido ser absolvido do crime de condução perigosa de veículo rodoviário a que foi condenado pelo Tribunal a quo.

      2. Da medida da pena

      Os assistentes consideraram demasiada leve a pena aplicada pelo Tribunal recorrido, pedindo que se passasse a fixar uma pena mais elevada. Por sua vez, o arguido solicitou a redução da pena e a suspensão da execução da pena de prisão.

      Manifestou o Tribunal Colectivo: Ficou provado nos autos que o arguido, a fim de escapar à intercepção da polícia, conduzia o veículo a alta velocidade, sem mostrar qualquer intenção de abrandar a velocidade mesmo depois de ter entrado na zona de Dynasty, que apresentava grande fluxo de pessoas, elevando-se consideravelmente os graus de ilicitude e de culpa. Assim sendo, revela-se desconforme com o princípio da adequação a decisão a quo que fixou uma pena de prisão que ultrapassava o limite mínimo em apenas dois meses, e afigura-se-nos mais adequado aplicar ao arguido a pena de 3 anos e 3 meses de prisão.

     Na parte referente à decisão sobre o pedido cível, os recursos colocaram praticamente quatro questões de direito, que se passam a expor:

      1. Do erro na apreciação da prova

      Alegaram os demandantes cíveis que o Tribunal a quo violou as regras da experiência comum ao não dar por provado que eles dependiam dos montantes recebidos do ofendido falecido para fazerem face à totalidade ou à maior parte das despesas da vida quotidiana.

      Conforme inculcou o Tribunal Colectivo, o erro notório na apreciação da prova a que se refere a al. c) do n.º 2 do art.º 400.º do Código de Processo Penal existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores. In casu, não se vislumbra erro manifesto na apreciação da prova, pelo que improcede também este fundamento invocado pelos recorrentes.

      2. Da repartição da responsabilidade pelo acidente de viação

      Os demandantes entenderam que existe erro na apreciação da prova no acórdão recorrido na parte em que veio imputar à vítima 50% da responsabilidade pelo acidente de viação em apreço.

      O Tribunal Colectivo indicou o seguinte: Compreende-se que o Tribunal recorrido formou a convicção de que a vítima tinha culpa no acidente de viação, com base na não cedência de prioridade por parte desta. Mas é evidente que o Tribunal recorrido não tenha atendido a outros factos para aplicar correctamente a lei, pois não existe nenhum facto ou fundamento que permite dar-se como provado que a vítima, ao decidir atravessar o cruzamento, não cumpriu o dever de cuidado traduzido na obrigação de se assegurar de que não se aproximam qualquer veículo antes de efectuar o atravessamento. Portanto, deve o arguido/demandado cível considerar-se exclusivamente responsável pelo respectivo acidente rodoviário, sendo de corrigir a decisão a quo nesta parte.

      3. Da indemnização por danos não patrimoniais

      Na opinião dos demandantes cíveis, o montante de MOP$50.000,00 fixado pelo Tribunal a quo a título de indemnização por danos não patrimoniais mostra-se obviamente reduzido e viola, pois, o princípio da equidade.

      Entendimento do Tribunal Colectivo: A indemnização por danos morais ou não patrimoniais causados por negligência é fixada pelo juiz ao abrigo dos princípios da justiça e da imparcialidade. Não existe uma fórmula de cálculo da indemnização por danos morais, já que a saúde física e psíquica do homem não tem preço. Todavia, não parece que esteja em conformidade com o princípio da equidade a indemnização por danos morais (incluindo a ofensa à integridade física e psíquica) fixada pelo Tribunal a quo em MOP$50.000,00. Consideramos mais adequado o montante de MOP$100.000,00.

      4. Do excesso de pronúncia

      Os dois demandados argumentaram que houve um excesso de pronúncia por parte do Tribunal a quo, por este os ter condenado ao pagamento das despesas de funeral não peticionadas pelos demandantes (as quais já foram, de facto, pagas pelo arguido), sendo, por isso, nulo o acórdão do Tribunal a quo na parte concernente.

      Segundo o Tribunal Colectivo, é manifestamente procedente o fundamento dos recorrentes. Dado que os demandantes não pediram indemnização a este respeito, o Tribunal a quo violou, como é evidente, o princípio dispositivo, ao condenar os demandados a pagarem aos demandantes as despesas de funeral. Por esse motivo, é de anular a decisão recorrida nesta parte.

      Face ao exposto, o Colectivo do Tribunal de Segunda Instância decidiu:

      1) Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido C, absolvendo-o do crime de condução perigosa de veículo rodoviário que lhe foi imputado,

      2) Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelos assistentes, condenando o arguido pela prática de um crime de homicídio por negligência grosseira p. e p. pelo art.º 134.º, n.º 2 do Código Penal, conjugado com o art.º 14.º, al. a) do mesmo diploma legal e com o art.º 93.º, n.º 2 e n.º 3, al.s 1) e 5) da Lei do Trânsito Rodoviário, na pena de 3 anos e 3 meses de prisão;

      3) Julgar procedente o recurso da sociedade demandada D e parcialmente procedente o recurso do demandado C, anulando a decisão recorrida na parte respeitante à condenação dos demandados ao pagamento aos demandantes das despesas de funeral;

      4) Julgar parcialmente procedente o recurso dos demandantes, no sentido de (A) anular a decisão a quo relativa à repartição da responsabilidade pelo acidente de viação, declarar o demandado C exclusivamente responsável pelo acidente e, consequentemente, anular a decisão de reduzir para metade todas quantias indemnizatórias; (B) passar a fixar em MOP$100.000 a indemnização por danos morais sofridos pelo ofendido falecido;

      Nestes termos, os demandados terão de pagar aos demandantes os montantes seguintes: MOP$1.000.000,00 por dano de morte; MOP$200.000,00 a cada demandante (no total, MOP$400.000,00) por danos morais sofridos pelos próprios demandantes (os montantes acabados de referir não são objecto do recurso); MOP$12.080,00 por danos patrimoniais; MOP$100.000,00 por danos morais sofridos pelo ofendido falecido; totalizando o montante de MOP$1.512.080,00. Desse montante global, fica a cargo da sociedade demandada D um milhão de patacas, enquanto as restantes 512.080,00 patacas serão pagas pelo demandado C. Acresce aos montantes respectivos juros legais desde a data do presente acórdão até ao integral pagamento.

      Cfr. Acórdão do TSI, processo n.º 532/2011.

 

 Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância

19/01/2014