Acordo sobre a divisão do bem imóvel comum que não consta do registo não pode ser oponível a terceiros
No ano de 2005, A e o anterior comproprietário E compraram em conjunto a fracção autónoma em causa. Em 1 de Abril de 2008, A e E celebraram o “termo de consentimento para a divisão do direito de uso” relativamente ao imóvel, o que dividiu tal fracção em duas zonas exclusivas (o direito de uso da zona A pertence a A e o da zona B pertence a E). Qualquer das partes tem o direito de uso absoluto relativamente à zona que lhe pertence, não tendo que obter o consentimento da contraparte nem podendo esta intervir. Em 1 de Abril de 2009, A deu de arrendamento a zona A que tinha o direito de uso exclusivo à sociedade limitada B pelo prazo de 10 anos, e celebrou com esta o contrato de arrendamento in casu. E continuou a exercer o seu direito exclusivo relativo à zona B. Em 30 de Dezembro de 2011, E vendeu a C e D a sua propriedade relativamente à fracção em causa.
Em 22 de Outubro de 2012, C (o 1o Autor) e D (o 2o Autor) intentaram acção junto do Tribunal Judicial de Base, pedindo a anulação do contrato de arrendamento celebrado entre o 1o Réu A e a 2a Ré sociedade limitada B e a condenação da 2a Ré a restituir-lhes a respectiva fracção. Por sentença de 18 de Julho de 2013, o Tribunal Judicial de Base declarou a anulação do respectivo contrato de arrendamento e a condenação da 2a Ré sociedade limitada B a restituir, no prazo de 30 dias, aos dois Autores C e D a respectiva fracção autônoma. Inconformados com a sentença, os dois Réus interpuseram recurso para o Tribunal de Segunda Instância.
O Colectivo do Tribunal de Segunda Instância conheceu das questões jurídicas neste recurso.
No que diz respeito ao valor da causa, os Autores fixaram o valor da causa em 700.000,00 patacas. Mas o 1o Réu pretendeu que, ao abrigo do artigo 253.º , n.º 1 do Código de Processo Civil, o valor da causa é de 3.910.200,00 patacas, equivalente à metade do valor da propriedade da respectiva fracção. O Tribunal de Segunda Instância entendeu que, tal como referiu o Tribunal a quo, a questão nuclear do presente caso não é a da propriedade da respectiva fracção, mas está em saber se o contrato de arrendamento celebrado entre os 1o e 2o Réus é legal e válido. E a restituição da fracção em causa é apenas a consequência necessária da anulação do respectivo contrato de arrendamento. Por outras palavras, mesmo que os Autores não deduzissem o respectivo pedido, a 2a Ré ficaria obrigada a restituir a fracção aos seus proprietários se o contrato de arrendamento fosse declarado anulado pelo Tribunal. Deve ser aplicado, nesta situação, o disposto no artigo 252.º do Código de Processo Civil. Nestes termos, é correcta a decisão do Tribunal a quo de não aceitar o valor da causa invocado pelo 1o Réu.
No que respeita à caducidade da acção, segundo o 1o Réu, o direito de acção dos Autores caducou uma vez que a lei expressamente prevê que o prazo para intentar a acção de anulação é de 1 ano, mas os Autores intentaram a presente acção em 22 de Outubro de 2012 enquanto o facto que estes pretenderam anular ocorreu em 2 de Abril de 2009. Segundo o Tribunal de Segunda Instância, no caso sub judice, o prazo do contrato de arrendamento que os Autores pretenderam anular é de 10 anos, contando-se a partir de 1 de Abril de 2009 até 31 de Março de 2019. Tal contrato não está plenamente cumprido e encontra-se ainda em cumprimento. Pelo que o direito de acção dos Autores não se encontra caducado nos termos do artigo 280.º, n.º 2 do Código Civil. É, pois, improcedente nesta parte o recurso.
No que tange à ilegitimidade dos Autores, o 1º Réu pretendeu que os Autores não têm legitimidade para intentar a acção de anulação, uma vez que estes não eram comproprietários no momento da celebração do respectivo contrato de arrendamento, pois apenas o anterior comproprietário E tem essa legitimidade. O Tribunal de Segunda Instância não concordou com a opinião, uma vez que quando os Autores adquiriram ao anterior comproprietário E as suas quotas, eles sucederam em todos os direitos que o comproprietário E tinha relativamente à respectiva fracção, incluindo o direito de intentar a acção de anulação quanto ao respectivo acto ilegal. Quando os Autores passaram a ser os comproprietários, ainda não foi plenamente cumprido o negócio jurídico que eles entenderam padecer de vício de natureza anulável, pelo que é indiscutível que eles têm legitimidade para requerer junto do tribunal a anulação do respectivo negócio.
No tangente à eficácia do contrato de arrendamento, o 1º Réu pretendeu que o respectivo contrato de arrendamento é legal e válido, uma vez que ele tinha com o anterior comproprietário acordo escrito no sentido de gozar do direito de uso absoluto relativamente à zona A da fracção sub judice, podendo usar a respectiva zona de forma livre, incluindo arrendar livremente a zona a outrem e cobrar rendas. Segundo o Tribunal de Segunda Instância, no presente caso, a coisa comum trata-se de bem sujeito a registo, e dos elementos constantes dos autos não resulta que o acordo de uso acima referido já se encontra constante do respectivo registo. Nestes termos, tal acordo não pode ser oponível aos Autores independentemente de se o mesmo permite ou não ao 1º Réu dar de arrendamento a zona A e auferir rendas, uma vez que os Autores são terceiros por não ter participado na elaboração do acordo.
No que respeita ao objecto do contrato de arrendamento, o Tribunal a quo reconheceu na sua sentença que o objecto do contrato de arrendamento é a fracção inteira. Na sua contestação o 1º Réu expressamente indicou que apenas deu de arrendamento a zona A da respectiva fracção mas não a fracção inteira. O Tribunal de Segunda Instância entendeu que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de facto nesta parte, que deve ser corrigido. Mas isso não é suficiente para alterar a sua decisão quanto à anulação do respectivo contrato de arrendamento.
Quanto à suspensão do processo, a 2ª Ré pretendeu a suspensão do processo sub judice para aguardar a decisão final a proferir no processo de divisão de coisa comum, uma vez que tal decisão poria termo à situação jurídica da respectiva fracção como coisa comum, de forma que afecte a decisão do presente processo no que diz respeito, por exemplo, à legitimidade dos interessados. Segundo o Tribunal de Segunda Instância, o objecto da acção sub judice está em saber se o respectivo contrato de arrendamento é legal e válido. Pese embora se trate do mesmo imóvel, a divisão não obsta ao conhecimento dessa questão. Na verdade, seja qual for a decisão de um dos processos, não é afectada a decisão de outro. Nestes termos, o recurso é improcedente nesta parte.
No que diz respeito à ineptidão da petição e ao erro na forma de processo, a 2ª Ré invocou que os pedidos dos Autores e a causa de pedir são contraditórios e incompatíveis entre si. Além disso, ainda entendeu que o processo in casu deve ser a acção de despejo mas não a acção declarativa comum. O Tribunal de Segunda Instância entendeu que a acção de despejo tem por fim a cessação do arrendamento do respectivo imóvel, pelo que tem como pressuposto a existência dum contrato de arrendamento legal e válido. No presente caso, os Autores não reconheceram a legalidade e a validade do respectivo contrato de arrendamento, pois exigiram a anulação deste. Nestes termos, não existe a situação de contraditoriedade ou incompatibilidade entre a causa de pedir e os pedidos, nem erro na forma de processo.
Face ao exposto, o Colectivo do Tribunal de Segunda Instância proferiu a seguinte decisão: I. Revogar a decisão do Tribunal a quo na parte em que se deu como provado que o 1º Réu deu de arrendamento a inteira unidade fabril, passando a dar como provado que só deu de arrendamento a zona A. II. Condenar improcedente o recurso interposto pelos 1º e 2ª Réus, mantendo a sentença do Tribunal a quo que anulou o respectivo contrato de arrendamento bem como as outras decisões.
Cfr. o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância no Processo n.º 35/2014.
Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância
27/04/2015