Administrador geral do Centro Hospitalar Conde S. Januário foi condenado pela prática do crime de burla por ter usado a qualidade de terceiros para obter ilicitamente medicamentos gratuitos
O réu Rui Alberto Marques de Vasconcelos e Sá foi contratado em regime de contrato individual de trabalho para exercer funções de administrador geral na Secretaria dos Cuidados Médicos da Especialidade do Centro Hospitalar Conde S. Januário entre 1 de Outubro de 2003 e 31 de Março de 2012. A partir de Janeiro de 2006 a Abril de 2012, o réu saiu de Macau para Zhuhai e outros locais pelo menos 68 vezes durante o horário de trabalho, porém, continuou a assinar normalmente o ponto, não registando na folha de ponto a sua saída e a hora da saída. Além disso, entre Maio de 2011 e Abril de 2012, o réu, servindo-se por 70 vezes da qualidade dos dois amigos que tinham assistência medicamentosa gratuita, marcou no Centro Hospitalar Conde S. Januário consultas médicas dos dois médicos-cirurgiões portugueses que conheceu, pedindo-lhes para prescrever medicamentos para tratamento de insónias, Alzheimer e doenças de foro mental, em seguida, fez o levantamento dos medicamentos na farmácia do hospital ou fora do hospital e depois apoderou-se de todos os medicamentos que levantou. Na verdade, essas duas pessoas cuja qualidade foi ilicitamente utilizada nunca pediram a quem para fazer a marcação de consultas, nem foram às consultas no Centro Hospitalar Conde S. Januário nem pediram a quem para receitar medicamentos em nome deles. Durante o período de mais de um ano, o réu, usando a qualidade dessas duas pessoas, obteve medicamentos no valor total de MOP$138,609.54.
O Ministério Público deduziu acusação contra o réu, imputando-lhe a prática em autoria material, na forma consumada e continuada de um crime defalsificação de documento p. e p. pelo art.º 244.º n.º 1 al. b) em conjugação com o art.º 246.º n.º 1 do Código Penal, um crime de abandono de funções p. e p. pelo art.º 350.º do Código Penal, dois crimes de uso de documento de identificação alheio p. e p. pelo art.º 251.º n.º 1 em conjugação com o art.º 243.º al. c) do Código Penal e três crimes de burla p. e p. pelo art.º 211.º n.º 1 do Código Penal.
Os Serviços de Saúde intervieram na acção na qualidade de assistente, deduzindo pedido cível, pedindo a condenação do réu a paga-lhe três quantias: 1) A quantia de MOP$93.488,00 referente a remunerações indevidamente percebidas durante a sua falta injustificada, acrescida de juros no valor de MOP$47.894,30; 2) A quantia de MOP$138.609,54 referente a medicamentos de que o réu ilicitamente se apropriou, acrescida de juros no valor de MOP$38.258,30; 3) A quantia de MOP$900.000,00 a título de danos não patrimoniais.
O Tribunal Judicial de Base procedeu ao julgamento da causa. Quanto ao crime de abandono de funções e ao crime de uso de documento de identificação alheio, o Tribunal Colectivo referiu que no caso dos autos não se provou que o réu houvesse tido a “intenção de impedir ou interromper serviço público” nem se provou que o réu houvesse apossado ou houvesse usado documento de identificação alheio, pelo que, é improcedente a acusação quanto a estes dois crimes.
No que diz respeito aos crimes de falsificação de documento e de burla, o juízo deve ser feito conforme as condutas distintas.
Relativamente à assinatura nas folhas de ponto quando se ausentava do serviço, o Tribunal Colectivo referiu que a folha de ponto tem a função representativa (é uma representação de um pensamento humano), a função probatória (é para provar um facto com o efeito de constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica) e a função de garantia (é uma declaração com identificação do emitente), constituindo um documento previsto no art.º 243.º do Código Penal.Ao assinar a sua presença no documento em questão, o réu prestou uma declaração por escrito que é idónea para provar facto jurídico, isto é, a sua presença. Dado que tal declaração não correspondeu à verdade, a sua actuação incorreu na prática, em autoria material e com dolo eventual, de um crime de falsificação de documento. Porém, tal actuação não constitui burla, uma vez que o réu se ausentava do serviço sem para tal estar autorizado pela sua entidade patronal, incorreu apenas em falta injustificada, e o réu não fabricou nenhum enredo ou engano, não corresponde à utilização do meio enganoso para induzir em erro a entidade patronal para obter o pagamento do salário a que não tinha direito.
Em relação ao pedido de prescrever medicamentos em nome de terceiros, o Tribunal Colectivo entendeu que tal actuação constitui burla, porém, tendo em conta que o réu, usando o nome de terceiros, em 2011 e 2012, da mesma forma, obteve os medicamentos de forma gratuita, tudo se reconduzindo a uma mesma actividade e uma mesma situação exterior, cuja vítima foi apenas o Serviço de Saúde da RAEM, pelo que, o réu incorreu apenas na prática, na forma continuada, de um crime de burla.
Porém, o réu é primário e os factos já ocorreram há vários anos, sendo que, no que concerne à burla os valores individualmente considerados são baixos, pelo que, o Tribunal Colectivo decidiu suspender a execução da pena.
Quanto ao pedido cível, o Tribunal Colectivo entendeu que nos termos do n.º 4 do art.º 78.º e dos art.ºs 88.º e 90.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, as ausências do local de trabalho durante o horário de trabalho, sem autorização do superior hierárquico correspondem à falta injustificada que implica a perda da remuneração correspondente aos dias de ausência. O réu ausentou-se 68 vezes ao serviço mas ainda recebeu o seu salário, o que causou aos Serviços de Saúde um dano patrimonial no valor de MOP$93.488,00, devendo o respectivo valor ser ressarcido. Aliás, o réu, usando a qualidade de terceiros, conseguiu obter gratuitamente medicamentos a que não tinha direito, causando aos Serviços de Saúde um dano patrimonial no valor de MOP$138.609,54, devendo o mesmo também ser ressarcido. No que concerne à indemnização pelo dano não patrimonial, dado que não se conseguiu provar tal dano, nesta parte deve o pedido improceder.
Pelas razões acima referidas, o Tribunal Judicial de Base julgou a acusação deduzida pelo Ministério Público parcialmente procedente e em consequência: convolar a acusação do réu, de dois crimes de burla p. e p. pelo art.º 211.º n.º 1 do Código Penal em um crime de burla p. e p. pelo art.º 211.º n.º 1 do Código Penal; absolver o réu, de um crime de abandono de funções p. e p. pelo art.º 350.º do Código Penal, dois crimes de uso de documento de identificação alheio p. e p. pelo art.º 251.º n.º 1 em conjugação com o art.º 243.º al. c) ambos do Código Penal e um crime de burla p. e p. pelo art.º 211.º n.º 1 do Código Penal, pelos quais vinha acusado; condenar o réu por ter incorrido na prática em autoria material, na forma consumada e continuada de um crime de falsificação de documento p. e p. pelo art.º 244.º n.º 1, al. b) em conjugação com o art.º 246.º n.º 1, ambos do Código Penal na pena de 1 ano de prisão e por um crime de burla p. e p. pelo art.º 211.º n.º 1 do Código Penal na pena de 9 meses de prisão, sendo condenado em cúmulo jurídico na pena única de 1 ano e 6 meses de prisão suspensa na sua execução por 2 anos a contar do trânsito em julgado da decisão, na condição de pagar a indemnização arbitrada em sede de pedido cível aos Serviços de Saúde da RAEM no prazo de trinta dias.
O Tribunal Colectivo mais julgou parcialmente procedente o pedido cível e em consequência condenar o réu a pagar ao demandante cível em trinta dias a indemnização de MOP$232.097,54, acrescida dos juros de mora vincendos à taxa legal a contar da data de presente sentença até integral e efectivo pagamento.
Cfr. Acórdão do Tribunal Judicial de Base, Processo n.º CR4-14-0301-PCC.
Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância
9 de Junho de 2015