Situação Geral dos Tribunais

Responde pelo acidente de viação o próprio lesado que lhe deu causa por ter atravessado a rua de repente

      No dia 28 de Abril de 2007, o ciclomotor conduzido pela arguida, enquanto circulava pela Avenida de Horta e Costa, embateu no transeunte A (recorrente) que, de repente, atravessou a rua da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do referido ciclomotor. O embate causou a A lesões cerebrais traumáticas fechadas agudas, lesões na pálpebra esquerda, lesões maxilofaciais e lesões na mão direita. Segundo a opinião do perito médico-legal, o aludido acidente provocou perigo para a vida de A, e as lesões causadas constituem, efectivamente, ofensa grave à sua integridade física. Na altura da ocorrência do acidente,o tempo estava bom, o pavimento estava seco e a densidade do trânsito estava normal. A menos de 50 metros do local do acidente, há uma passadeira de peões, sendo de aproximadamente 1,7 metros a distância entre esta e o ponto de embate. A rua atravessada pelo transeunte conta com faixa verde de separação no centro. Quando ocorreu o acidente, a arguida estava grávida de cerca de cinco meses.

      Após o acidente, a arguida foi absolvida da acusação da prática de uma contravenção p. e p. pelo Código da Estrada e de um crime de ofensa grave à integridade física por negligência p. e p. pelo Código Penal. Ficou rejeitado também pelo Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB) o pedido de indemnização cível deduzido por A (ofendido, demandante cível). A, inconformado com a decisão proferida pelo TJB, recorreu para o Tribunal de Segunda Instância (TSI).

      Conforme asseverou o Tribunal Colectivo do TSI, o presente recurso prende-se com duas questões de direito.

      Primeiro, defendeu o recorrente que o Tribunal a quo, aquando da determinação da responsabilidade civil, incorreu em erro notório na apreciação da prova, violando o disposto no art.º 400.º, n.º 2, al. c) do Código de Processo Penal. O recorrente levantou a dúvida seguinte: O embate ocorreu a uma distância de cerca de 1,7 metros da passadeira, e o recorrente já tinha muita idade. Por isso, se na altura o ciclomotor conduzido pela arguida não tivesse circulado a alta velocidade, não teria embatido no recorrente por não conseguir a mesma travá-lo a tempo. Além disso, não se exclui a hipótese de que a arguida, considerando que estava grávida, nem sequer travou o veículo oportunamente, causando, assim, o acidente de viação.

      Ficou indicado pelo Colectivo do TSI o seguinte: Afirmou o Tribunal de Última Instância (TUI) no acórdão prolatado no processo de recurso penal n.º 16/2000: “O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. E tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.” Durante a audiência de julgamento, o Tribunal a quo, para além da arguida, ouviu também um bombeiro, dois agentes policiais, bem como o XXX, o XXX e o XXX, tendo atendido ainda aos documentos constantes dos autos. Após analisadas as provas supra referenciadas - em particular, a pouca distância entre o ponto de embate e a passadeira e a existência da faixa verde de separação no centro da rua - em conjugação com as regras da experiência comum, é fácil e razoável concluir-se que não existe erro notório na convicção do Tribunal a quo de que “não era exigível à condutora prever que alguém lá aparecesse de repente e atravessasse a rua, de modo a regular a velocidade do veículo para evitar embate”. Portanto, improcede, manifestamente, este fundamento invocado pelo recorrente no recurso.

      Segundo, entendeu o recorrente que o acórdão recorrido enferma do vício de “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, a que se refere o art.º 400.º, n.º 2, al. a) do CPP.

      Manifestou o Colectivo do TSI: O TUI inculcou no acórdão proferido no processo de recurso penal n.º 18/2009: “O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada consiste numa lacuna no apuramento da matéria de facto, dentro do objecto do processo, de modo que a matéria de facto provada apresente insuficiente ou incompleta para fundamentar a decisão proferida.” Dos dados constantes dos autos resulta que, na audiência de julgamento, o Tribunal a quo já procedeu à investigação de toda a matéria de facto integrante do objecto do processo, e ao reconhecimento dos factos respectivos, pelo que não se vislumbra qualquer lacuna, não se verificando, pois, o alegado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto no art.º 400.º, n.º 2, al. a) do CPP.

      Mais indicou o Colectivo do TSI: Na verdade, o recorrente, ao suscitar isso, pretendeu duvidar a convicção do Tribunal a quo de que “o recorrente é exclusivamente culpado por este acidente de viação”, ou seja, deve o recorrente responder pelos danos advindos do risco. Em sede do acórdão recorrido, não foi provada a proporção de culpas do recorrente e da arguida, devendo, assim, fixar-se a proporção em que se repartirá a obrigação de indemnização cível. Porém, da análise da factualidade provada resulta claro que, face ao ambiente circundante ao local do acidente - duas faixas de rodagem separadas por uma faixa verde central - era impossível a arguida prever que alguém lá aparecesse de repente e atravessasse a rua, daí não haver qualquer facto culposo por parte desta, dispensando-se, por isso, a fixação da proporção de culpas. Pelo contrário, o acidente de viação ora em causa ocorreu por culpa exclusiva do recorrente, não podendo fixar-se a indemnização em função do risco. Nesta conformidade, é evidente que improceda também tal fundamento do recurso.

      Pelo exposto, acordaram no TSI em rejeitar o recurso do recorrente por manifesta improcedência.

      Vide o Acórdão do TSI, processo n.º 821/2010.

 

Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância

16/06/2015