Situação Geral dos Tribunais

Declarou-se nulo um contrato de arrendamento comercial com objecto e fim contrário à lei

        A sociedade B é proprietária de dezoito fracções autónomas destinadas a escritório e situadas no mesmo andar de um edifício sito na Alameda Dr. Carlos d´Assumpção, Macau. No dia 15 de Outubro de 2011, a sociedade B celebrou com A um contrato de arrendamento, nos termos do qual aquela cedeu a esta o gozo das dezoito fracções acima referidas, em conjunto com cinco parques de estacionamento no rés-do-chão do mesmo edifício. De acordo com o contrato, o arrendamento inicia-se no dia 15 de Fevereiro de 2012 e termina a 14 de Fevereiro de 2018, e a renda mensal é de HKD$280.000,00. A sociedade B autorizou A a usar e fruir das fracções e parques de estacionamento supramencionados desde a data da celebração do contrato (15 de Outubro de 2011), sem precisar de pagar renda até 15 de Fevereiro de 2012. Ademais, convencionaram as partes no contrato de arrendamento que as fracções autónomas se destinavam exclusivamente para finalidade comercial, não podendo a arrendatária usá-las para outras finalidades. À data da outorga do contrato, A pagou à sociedade B o montante total de HKD$840.000,00, sendo HKD$280.000,00 a título de renda do primeiro mês e HKD$560.000,00 a título de caução. Celebrado o contrato de arrendamento, A começou a preparar a realização de obras de renovação nas fracções autónomas com vista a ali instalar uma sala de exposição e apresentou, para o efeito, pedido de licenciamento das obras a realizar à Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes, que, porém, indeferiu o pedido por entender que “as salas de exposição só podem ser instaladas em locais destinados a comércio e não em locais destinados a escritório”. Pelo facto de não poder utilizar as aludidas fracções autónomas como tinha planeado, A solicitou à sociedade B a restituição dos HKD$840.000,00 pagos. Todavia, apesar das repetidas interpelações de A, a sociedade B recusou-se a devolver o montante solicitado.

        Em 2012, A intentou uma acção contra a sociedade B no Tribunal Judicial de Base, pedindo ao Tribunal para anular o contrato de arrendamento em apreço e condenar a sociedade B a restituir-lhe o montante de HKD$840.000,00, com fundamento na existência de erro-vício no processo de formação da sua declaração, alegando que não teria celebrado com B qualquer contrato de arrendamento se tivesse sabido que se não podiam utilizar essas fracções autónomas como sala de exposição. A sociedade B deduziu reconvenção, em que, com base no não cumprimento por A da sua promessa de arrendamento, pediu ao Tribunal que fosse resolvido o contrato em causa e declarado perdido a favor dela o montante de HKD$840.000,00 que havia recebido de A.

        Por acórdão de 8 de Janeiro de 2014, o Tribunal Judicial de Base julgou improcedente a acção proposta pela Autora, indicando como suporte da sua decisão que “pese embora a Ré tivesse conhecimento de que as fracções autónomas em causa se destinavam a escritório, não se lhe pode assacar a culpa, na medida em que não há norma jurídica que impeça a afectação de tais espaços à exploração de sala de exposição, além de que o fim para que se arrendaram os espaços não se mostra evidentemente incompatível com a instalação de sala de exposição”, e que “não enferma de nenhum vício o contrato de arrendamento celebrado entre a Autora e a Ré”. Ao mesmo tempo, julgou-se igualmente improcedente o pedido reconvencional deduzido pela Ré.

        Inconformadas, vieram as partes recorrer para o Tribunal de Segunda Instância.

        O Tribunal de Segunda Instância julgou o caso, realçando o seguinte: Com a cláusula 8 do contrato de arrendamento (o mesmo imóvel é destinado para uso comercial, não pode ser usado para outras finalidades), evidencia-se de forma clara que as partes celebraram o contrato para o fim comercial, fim esse comum a ambas as partes. Contudo, o fim do contrato é contrário à lei já que segundo o registo predial junto aos autos, o imóvel em causa não pode ser usado para a finalidade comercial, pois a sua finalidade é simplesmente servir de escritório. Assim sendo, ao abrigo do disposto no art.º 274.º do Código Civil, o contrato em questão é nulo. De outro ponto de vista, nunca seria possível para a Ré assegurar à Autora a utilização das fracções autónomas para o fim comercial, pelo que a situação do caso se configura numa impossibilidade originária da prestação ao abrigo do art.º 395.º, n.º 1 do Código Civil, nos termos do qual também se gera a nulidade de tal contrato de arrendamento.

        Em consonância com o art.º 282.º, n.º 1 do Código Civil, a declaração de nulidade tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente. Dado que a Autora já entregou as chaves das fracções ao agente imobiliário C, a Ré pode, a todo o tempo, recuperar as fracções através deste último, não havendo, pois, nada a restituir por parte da Autora. Em relação à Ré, ela tem de restituir à Autora o montante de HKD$840.000,00 que tinha recebido desta.

        Face ao exposto, o Tribunal de Segunda Instância concedeu provimento ao recurso da Autora, declarando nulo o contrato de arrendamento, e condenando a Ré a restituir à Autora a quantia de HKD$840.000,00, acrescida de juros moratórios a partir da citação. Negou, ao mesmo tempo, provimento ao recurso interposto pela Ré, mantendo a decisão do Tribunal Judicial de Base na parte correspondente.

        Ainda inconformada, a Ré recorreu para o Tribunal de Última Instância, que, tendo apreciado a causa, confirmou praticamente as considerações do Tribunal de Segunda Instância supramencionadas, acrescentando, aliás, o seguinte: a utilização de prédios urbanos, suas partes ou fracções deve respeitar o fim ou fins constantes das respectivas licenças de utilização. Consideram-se indevidamente utilizados um prédio urbano, sua parte ou fracção, sempre que o respectivo proprietário, concessionário por aforamento ou arrendamento ou arrendatário, os afectar, jurídica ou materialmente, na sua forma ou substância, a fim ou fins diversos daquele ou daqueles a que se destinam. Assim, o arrendamento, para uso comercial, de fracções autónomas de prédio no regime de propriedade horizontal, de prédio cuja licença de utilização é apenas para escritórios, tem um objecto contrário à lei e, portanto é nulo, nos termos do art.º 273.º, n.º 1, do Código Civil e dos art.ºs 5.º e 7.º, n.ºs 1 e 2 da referida Lei n.º 6/99/M.

        Por outro lado, pretendeu a Ré que sempre deveria ter sido declarado perdido o sinal prestado pela Autora, no montante de MOP$866.040,00, mesmo que por redução do contrato, atenta a cláusula 13.ª do contrato. Acerca disso, asseverou o Tribunal Colectivo quea redução do contrato consiste na manutenção da sua parte válida, quando ele seja nulo ou anulável apenas em parte. A mencionada cláusula prevê que caso o arrendatário não cumpra as cláusulas deste contrato de tomar de arrendamento o mesmo imóvel, além de perder o primeiro sinal a favor do proprietário, este tem direito de arrendar o imóvel a terceiro, e não pode reclamar qualquer indemnização ou o cumprimento específico ao arrendatário. Ora, o arrendatário não incumpriu o contrato, simplesmente porque não se pode cumprir um contrato nulo. Portanto, improcede a pretensão da recorrente.

        Nos termos acima expendidos, o Tribunal de Última Instância negou provimento ao recurso interposto pela Ré, mantendo, consequentemente, a decisão do Tribunal de Segunda Instância.

        Vide o Acórdão do TSI, processo n.º 406/2014, e o Acórdão do TUI, processo n.º 44/2015.

  

Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância

30/07/2015