Situação Geral dos Tribunais

Dação pro solvendo não leva à transmissão imediata da propriedade

     B era patrão duma sala VIP do casino Crown Macau enquanto C e D eram promotores de jogos. Em Fevereiro de 2009, aproveitando-se da oportunidade de ajudar B a proceder ao levantamento das fichas de jogo e do numerário em outra sala VIP, C e D apropriaram-se das fichas de jogo e numerário no valor global de HKD$53.819.640,00. Após a descoberta do caso, a autoridade policial recuperou alguma parte das fichas de jogo e numerário, os quais foram apreendidos no processo-crime. Em 10 de Setembro de 2009, o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base condenou C e D na pena de 4 anos e 3 meses de prisão efectiva pela prática de um crime de abuso de confiança e condenou-os a pagar uma indemnização ao ofendido B no montante de HKD$42.689.640,00, bem como ordenou a restituição a B as fichas de casino no valor de HKD$11.000.000,00 e o montante em numerário no valor de HKD$130.000,00, todos já apreendidos nos autos, sentença essa foi confirmada pelo acórdão do Tribunal de Segunda Instância, de 26 de Julho de 2012.

     Na pendência do aludido processo-crime (8 de Julho de 2011), B celebrou um acordo com a Companhia A, através do qual B reconheceu que deve a esta a quantia total de AUD$10.059.764,67, tendo declarado transferir-lhe a propriedade das fichas de jogo e do dinheiro em numerário apreendidos nos autos do processo-crime acima referidos. No mesmo dia, B assinou ainda uma procuração, conferindo irrevogavelmente poderes à Companhia A, para que esta pudesse levantar directamente junto do Tribunal as fichas e o montante em dinheiro apreendidos nos aludidos autos do processo-crime.

     Em 14 de Janeiro de 2013, a Melco Crown (Macau), S.A. intentou um procedimento cautelar de arresto contra B. Por despacho proferido pelo juiz, foi decretado o arresto das fichas de jogo no valor de HKD$11.000.000,00 e do montante em numerário no valor de HKD$130.000,00 apreendidos nos aludidos autos do processo-crime, no sentido de garantir o cumprimento da obrigação no montante de MOP$40.855.375,86 que este deve àquela.

     Recebida a notificação do despacho acima referido, a Companhia A deduziu embargos de terceiro, pedindo que fosse ordenado o levantamento do arresto decretado sobre as fichas de jogo e o montante em dinheiro, com fundamento de que na data em que o tribunal decretou o arresto, a Companhia A já obteve a propriedade das fichas de jogo e o montante em dinheiro em causa através do acordo celebrado em 8 de Julho de 2011, pelo que, as fichas de jogo e o montante em dinheiro já não pertencem a B, não devendo ser decretado o arresto.

     Por decisão proferida em 27 de Fevereiro de 2015, o Tribunal Judicial de Base julgou improcedentes os embargos, negando provimento ao pedido.

     Inconformada, veio A interpor recurso para o Tribunal de Segunda Instância que julgou procedente o recurso e ordenou o levantamento do arresto.

     Inconformada com o assim decidido, veio a Melco Crown (Macau), S.A. interpor recurso para o Tribunal de Última Instância.

     Entendeu o Tribunal de Última Instância que: É dação em cumprimento quando a obrigação fica exonerada com a prestação de coisa ou de direito diverso do que for devido por parte do devedor mediante assentimento do credor. Tratando-se de duas figuras diferentes, a primeira é a dação em cumprimento (datio in solutum) que se destina à extinção imediata da obrigação e a segunda é a dação em função do cumprimento (datio pro solvendo) que pretende facilitar o cumprimento. O que importa no presente processo reside em saber se o acordo celebrado entre B e a Companhia A em 8 de Julho de 2011 configura a dação em cumprimento ou a dação em função do cumprimento. O Tribunal Colectivo apontou que do conteúdo da cláusula 1.1 (“para que a A obtenha mais facilmente, com o recebimento dessas fichas de casino do relevante Tribunal de Macau e do produto da sua troca por dinheiro, o pagamento parcial do montante em dívida da dívida à A”) e da cláusula 1.7 (“a dívida à A só será reduzida nos termos deste acordo na exacta medida dos montantes efectivamente recebidos, em fundos líquidos e imediatamente disponíveis, pela A”) do acordo, resulta, de forma nítida, que a vontade de ambas as partes foi a de facilitar o cumprimento da obrigação, com a celebração do referido acordo, pelo que, a extinção da obrigação não se ocorre imediatamente com a assinatura do acordo, mas sim com a efectiva entrega posterior a A do dinheiroproduto da troca de fichas de jogo e do montante de dólares de Hong Kong em numerário apreendidos nos autos do processo-crime. Assim sendo, o referido acordo deve ser qualificado como dação pro solvendo prevista no artigo 831.º do Código Civil. Além disso, este ponto de vista também pode ser comprovado pela procuração outorgada no mesmo dia, uma vez que se a propriedade desses bens se transferisse com a celebração do acordo, logicamente não havia necessidade de B passar a procuração que confere poderes à Companhia A para que esta conseguisse obter os referidos bens.

     Por outro lado, o Tribunal Colectivo apontou ainda que as fichas de casino não podem ser objecto de direito de propriedade, já que constituem apenas um direito de crédito, pelo que, a disposição no n.º 1 do art.º 402.º do Código Civil não é aplicável ao presente caso. No âmbito do direito comercial, as fichas de jogo consubstanciam um título ao portador. Ao abrigo do artigo 1093.º do Código Comercial de Macau, a transmissão de títulos ao portador dá-se mediante acordo entre o alienante e o adquirente e entrega do título ao adquirente. Porém, no presente caso,as referidas fichas de jogo nunca foram entregues à Companhia A, pois as mesmas se encontram apreendidas no processo-crime, pelo que, a Companhia A não obteve a transmissão das mesmas fichas.

     É de dizer que, na data em que foi decretado o arresto, os referidos bens não pertencem a A, Companhia Recorrida, mas sim ao Executado B, podendo os mesmos ser arrestados.

     Face ao exposto, o Tribunal Colectivo julgou procedente o recurso interposto pela Melco Crown (Macau), S.A., revogando o Acórdão recorrido e julgando improcedentes os embargos contra o arresto.

     Cfr. Acórdão do Tribunal de Última Instância, no Processo n.º 21/2016.

Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância

03/08/2016