Situação Geral dos Tribunais

Reenvio do processo para novo julgamento devido à contradição da fundamentação da sentença

        No dia 27 de Julho de 2011, o Corpo de Polícia de Segurança Pública recebeu uma participação, desconfiando que havia trabalhadores ilegais que trabalhavam num estaleiro de construção civil na área de execução das obras de ampliação das estruturas principais do Novo Terminal Marítimo da Taipa localizada em Macau, pelo que mandou guardas policiais, juntamente com funcionários do serviço competente, deslocarem-se ao local das obras para efeitos de inspecção. Logo que os veículos policiais entraram no referido estaleiro, trinta e três dos trabalhadores que lá estavam fugiram por uma ponte de madeira junto ao estaleiro ligada a uns barcos e abordaram os barcos n.ºs 00XX, 81XX e 61XX estacionados junto à margem, pretendendo sair do local. Foram, porém, interceptados pelos guardas que chegaram a abordar os barcos a tempo. Os trinta e três trabalhadores acima referidos, bem como XXX e XX que os guardas encontraram nos barcos eram todos residentes do Interior da China sem documentos legais que lhes permitem trabalhar no Território, considerando-se, assim, em situação de imigração ilegal. Mais se apurou: o arguido A era dono da “Companhia de Engenharia XX”, sendo esta subempreiteira das obras de ampliação das estruturas principais do Novo Terminal Marítimo da Taipa, a que foram adjudicadas as partes referentes à base e às estruturas. No período compreendido entre Abril e Julho de 2011, o arguido A empregou ao seu serviço trinta e cinco trabalhadores. Tirando XXX e XX, que estavam encarregados de cozinhar nos barcos dos arguidos B e C, respectivamente, para os aludidos residentes do Interior da China, os outros trinta e três trabalhavam todos nos estaleiros de construção civil das obras adjudicadas ao arguido A. Os arguidos C, D e B, proprietários respectivos dos barcos n.ºs 00XX, 81XX e 61XX, prestavam auxílio ao arguido A, no sentido de conduzirem barcos para transportar os trabalhadores ilegais entre o Interior da China e o estaleiro de construção civil no Terminal Marítimo de Pac On da Taipa, além de acolherem nos seus barcos parte desses trabalhadores, facultando-lhes alojamento e alimentação. O arguido A pagava a cada um dos arguidos C, D e B a quantia de RMB12.000,00 por mês.

        Com base nisso, o Ministério Público deduziu acusação: contra o arguido A, pela prática dos crimes de acolhimento e de auxílio previstos e puníveis pela Lei n.º 6/2004, tendo o mesmo ainda sido pronunciado pelo Juiz de Instrução Criminal como autor do crime de emprego ilegal previsto e punível pela Lei n.º 6/2004; contra o arguido B, pela prática dos crimes de acolhimento e de auxílio previstos e puníveis pela Lei n.º 6/2004; contra o arguido C, pela prática dos crimes de emprego ilegal e de auxílio previstos e puníveis pela Lei n.º 6/2004; e contra o arguido D, pela prática do crime de auxílio previsto e punível pela Lei n.º 6/2004.

        Após o julgamento, o Colectivo do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base entendeu nos seguintes termos: Não se provou que os aludidos trabalhadores tenham sido vistos a trabalhar na terra. Ficou provado que, na altura, estavam eles a trabalhar no estaleiro de construção civil no dito Terminal Marítimo, mais precisamente, na plataforma no mar que, estando em construção, ainda não estava ligada à terra. Atenta a localização do Terminal Marítimo, não há dúvida que este se situa na porção de mar em que a Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) é autorizada a exercer jurisdição. Portanto, em consonância com a legislação vigente em Macau, os mencionados trabalhadores, enquanto trabalhavam na RAEM, se encontravam numa situação ilegal, sendo, ao abrigo do disposto no art.º 2.º da Lei n.º 6/2004, imigrantes ilegais. Porém, dado que a entidade pública responsável pelas obras em causa afirmou que a exigência de os trabalhadores serem residentes locais ou terem documentos legais para trabalhar em Macau apenas dizia respeito àqueles que trabalhassem na terra, os arguidos não estavam em condições de prever que a sua conduta consubstanciaria a prática de crimes, daí a falta de intenção dolosa. Relativamente ao crime de acolhimento, pelo facto de os mencionados barcos se terem registado na República Popular da China, os trabalhadores supra referidos, no tocante a este tipo de crime, não se devem considerar sujeitos à jurisdição da RAEM. Pelas razões acima expostas, acordaram no Tribunal Colectivo de 1ª instância em absolver os arguidos A, B, C e D dos crimes de emprego ilegal, de auxílio à imigração ilegal e de acolhimento de imigrantes ilegais, que lhes foram imputados respectivamente, no todo ou em parte, em virtude de não terem sido provados factos relevantes para o preenchimento dos referidos tipos de crimes, particularmente os de terem os arguidos empregado, acolhido ou auxiliado os trabalhadores acima aludidos.

        O Ministério Público interpôs recurso ordinário da supracitada decisão absolutória para o Tribunal de Segunda Instância, alegando que a mesma padecia dos três vícios a que se referem as al. a), b) e c) do n.º 2 do art.º 400.º do Código de Processo Penal, defendendo ainda que a decisão recorrida, por não se conformar com o disposto no art.º 355.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, era nula nos termos do art.º 360.º, al. a) do mesmo diploma legal.

        Entendimento do Colectivo do Tribunal de Segunda Instância: Se o Tribunal a quo deu por provado que “logo que viram os veículos policiais a entrarem no estaleiro de construção civil, vários trabalhadores puseram-se em fuga em direcção ao mar e abordaram uns barcos então ancorados numa zona daí perto”, que “tendo três guardas detectado que algumas das pessoas no estaleiro de construção civil, ao ver os veículos policiais a entrarem no estaleiro, se tinha posto em fuga, de imediato, em direcção aos barcos, os guardas desceram dos veículos para as perseguir e interceptar”, que “quando os veículos policiais entraram no referido estaleiro de construção civil, diversos trabalhadores fugiram do local em direcção aos barcos estacionados junto à margem”, que “os trabalhadores, descobrindo que tinham entrado veículos policiais, puseram-se em fuga, todos e de imediato, em direcção aos barcos”, já não podia reconhecer ao mesmo tempo que não foi provado, sob pena de se contradizer a si mesmo, que “na altura da ocorrência do facto, os trabalhadores estavam a trabalhar na terra.”

        Uma vez que o Tribunal a quo já indicou expressamente que “atenta a localização do Terminal Marítimo, não há dúvida que este se situa na porção de mar em que a RAEM é autorizada a exercer jurisdição”, não podia afirmar na mesma sentença, sob pena de se contradizer a si mesmo, que “os trabalhadores supra referidos não se devem considerar sujeitos à jurisdição da RAEM”.

        Acrescentou o Colectivo do Tribunal de Segunda Instância que a respectiva fundamentação contraditória afectara directamente a decisão de condenar ou não pelos crimes de emprego ilegal, de auxílio à imigração ilegal e de acolhimento de imigrantes ilegais imputados aos arguidos pelo Ministério Público. Pelo exposto, acordaram no Colectivo do Tribunal de Segunda Instância em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e reenviar todo o objecto do processo ao Tribunal Judicial de Base para novo julgamento por outro Tribunal Colectivo, com base na existência na decisão a quo do vício de contradição insanável da fundamentação estipulado no art.º 400.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Penal.

        Cfr. Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, processo n.º 62/2013.

  

Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância

12/06/2014