Situação Geral dos Tribunais

As fracções autónomas dum edifício queimado e demolido não são susceptíveis de posse ou aquisição por usucapião

      Ocorreu no dia 16 de Março de 1978, um incêndio que queimou por completo um edifício, para indústria, situado na Estrada Marginal do Hipódromo, n.º 100. Em 14 de Abril de 1987, os donos das fracções autónomas deste edifício reuniram-se, acabando por decidir vender o edifício na sua totalidade. No dia 29 de Julho de 1987, com base no estipulado na referida reunião, Cheong XX (Autora) e Ho XX, na qualidade de representantes da Associação de Condóminos, celebraram um contrato-promessa, em que se prometeram vender o edifício à Autora. Mas na realidade, a proprietária do edifício, ou seja a Companhia A, não mandatou a Associação de Condóminos para outorgar o referido contrato-promessa, nem concordou em vender o edifício. Em Março de 1988, Cheong XX contratou uma empresa para assumir a vigilância do edifício. A partir de 1990, Cheong XX começou a tratar de todos os assuntos relativos às fracções autónomas “E2” e “F2” do edifício e atendeu às necessidades de reparação e outras despesas. Este edifício foi demolido em 29 de Outubro de 2002.

      Em 2002, a Autora Cheong XX intentou acção para o Tribunal Judicial de Base contra a Companhia A, o Ministério Público e os interessados incertos, pedindo ao tribunal para declarar a sua aquisição por usucapião de propriedade das fracções autónomas “E2” e “F2” do edifício acima referido, acção essa que foi julgada procedente em 2005. Após o trânsito em julgado da sentença, Cheong XX procedeu ao registo de aquisição e em 4 de Junho, vendeu, na qualidade da proprietária, as duas fracções autónomas à Companhia B.

      Em 2007, a Companhia A interpôs recurso de revisão da supracitada sentença, com fundamento na falta de citação pessoal, e venceu. Realizado novo julgamento, foi proferida sentença pelo TJB, que entendeu que tendo o edifício de que as duas fracções autónomas em causa faziam parte ficado queimado em 1987, assim deixou de haver a independência ou individualização dessas fracções para poderem ser objecto de direitos reais ou de posse; mesmo na hipótese de o incêndio não implicar a perda da individualização das respectivas fracções autónomas, tendo em conta que a Autora contratou uma empresa para assumir a vigilância do edifício em Março de 1988, a alegada posse, mesmo de boa fé, só durou 14 anos e 8 meses antes da demolição do edifício em 29 de Outubro de 2002, o que não preencheu o requisito de 15 anos previsto pelo art.º 1221.º do Código Civil. Por isso, foram julgados improcedentes os pedidos da Autora.

      Inconformada, a Autora interpôs recurso para o Tribunal da Segunda Instância, alegando que nos termos do art.º 1337.º, n.º 1 do Código Civil, no caso de destruição do edifício, este ainda podia ser vendido pela forma designada pela Associação de Condóminos e em consequência, constituiu objecto de posse ou de aquisição por usucapião. No caso concreto, a Autora ficou na posse efectiva do respectivo terreno e das duas fracções autónomas “E2” e “F2” desde 29 de Julho de 1987, altura em que celebrou o contrato-promessa de compra e venda com o representante da Associação de Condóminos, pelo que até à demolição do edifício em 29 de Outubro de 2002, a sua posse já durou 15 anos e 3 meses, verificando-se, assim, o requisito sobre o tempo da aquisição por usucapião. Além disso, mesmo que não pudesse a Autora adquirir a propriedade por usucapião, como aquando da interposição do recurso de revisão por parte do Réu, as fracções autónomas em causa já haviam sido vendidas, pelo que a alteração da sentença não podia afectar os efeitos que ela havia produzido em relação a terceiros de boa fé. O tribunal a quo não conheceu oficiosamente esta questão, verificando-se assim a omissão de pronúncia.

      Analisando o caso, o TSI indicou que a parte susceptível de venda mencionada no n.º 1 do art.º 1337.º do Código Civil referiu-se aos materiais do edifício destruído, e não o próprio edifício, razão pela qual só os materiais, e não o edifício ou as fracções autónomas deste, eram susceptíveis de posse ou de transmissão. Quanto ao terreno em que foi implantado o edifício, foi concedido por arrendamento, portanto os donos das fracções autónomas não eram possuidores do terreno, e muito menos podiam adquirir por usucapião a propriedade do terreno.

      Indicou o Colectivo do TSI: mesmo entender que a Autora exerceu a posse efectiva das respectivas fracções autónomas durante um período relativamente longo antes da demolição deste, não se verificou o requisito sobre o tempo da aquisição por usucapião, porque apesar de a Autora ter celebrado em 29 de Julho de 1987 o contrato-promessa de compra e venda com o representante da Associação de Condóminos, também ficou provado que a proprietária deste edifício, a Companhia A, não participou na reunião que tinha decidido vender o edifício, nem assinou ou mandatou outrem para assinar o tal contrato-promessa, e por outro lado, o contrato-promessa de compra e venda de um imóvel, em si próprio, não tem efeito translativo da posse, pelo que na falta de outros elementos fácticos que revelaram a entrega, por parte da Associação de Condóminos ou da proprietária, do edifício à Autora, a posse das fracções autónomas, exercida pela Autora, nunca podia ser considerada iniciada a partir de 29 de Julho de 1987.

      Por fim, quanto à questão de omissão de pronúncia colocada pela Autora, o TSI entendeu que a verificação ou não da boa fé da Companha B que comprou as respectivas fracções autónomas devia ser apreciada em outra sede, e não nos presentes autos. Ademais, como o edifício de que faziam parte as fracções autónomas em causa já foi demolido, o contrato de compra e venda celebrado entre a Autora e a Companhia B em 4 de Junho de 2005 não podia deixar de ser julgado nulo em sede própria, por inexistência objectiva do objecto do tal contrato (art.º 273.º do Código Civil).

      Pelas razões acima expostas, o TSI negou provimento ao recurso interposto pela Autora.

      Cfr. Acórdão do TSI, no Processo n.º 73/2013.

 

Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância

15/01/2015