Situação Geral dos Tribunais

Eficácia do Contrato Nulo Foi Mantida por Abuso do Direito na Modalidade de Venire Contra Factum Proprium

      Em Março de 2003, A vendeu a C uma fracção autónoma sita na Rua de Tai Lin, Taipa, pelo preço de HKD$138.000,00. Na altura não foi celebrada a escritura pública de compra e venda entre as partes, mas C pagou logo integralmente o preço do imóvel e A entregou-lhe as chaves do mesmo. Como C reside em Hong Kong, ele deixou B residir na fracção referida desde Abril de 2003, e ele próprio só passou a viver na mesma nas suas deslocações a Macau de vez em quando.

      Em 2010, A intentou acção no Tribunal Judicial de Base, declarando ser o proprietário da respectiva fracção e a ter cedido, a título gratuito e de mera tolerância, para habitação de B, e pedindo que B fosse condenada a devolver a fracção e retirar dela todos os objectos pessoais. Mais pediu que B fosse condenada a pagar-lhe a indemnização no valor de cinco mil patacas por mês desde Junho de 2010 até a desocupação da respectiva fracção.

      C interveio na acção na qualidade de réu a pedido de B e deduziu reconvenção, alegando ser o verdadeiro dono da fracção e acrescendo que no momento da compra da mesma não foi celebrada a escritura de compra e venda por culpa exclusiva de A. Pediu, por isso, que lhe fosse reconhecida a posse da fracção ou, subsidiariamente, fosse A condenado a pagar-lhe o preço da fracção, acrescido de juros legais, além de lucros cessantes e o valor de outros danos.

      O Tribunal Judicial de Base proferiu a sentença de primeira instância em Junho de 2013 que reconheceu a existência duma relação de compra e venda entre A e C, mas, oficiosamente, declarou nulo o contrato de compra e venda pela falta da forma escrita na sua celebração. Na sentença, B e C foram condenados a devolverem a fracção a A, e A foi condenado a pagar a C o valor de HKD$138.000,00 pago pelo imóvel, acrescido de juros à taxa legal contados de 22 de Maio de 2011, bem assim como em multa no valor de 20 UCs por litigância de má fé, absolvendo-se as partes dos restantes pedidos formulados.

      Inconformados, recorreram A e C da sentença acima referida para o Tribunal de Segunda Instância.

      O Tribunal de Segunda Instância conheceu da causa, indicando que a doutrina e jurisprudência relevantes têm sido unânimes em entender que se uma das partes adquiriu pelo negócio uma determinada posição jurídica, se com base nessa crença, agiu e orientou a sua vida durante longo tempo ciente de que o negócio era válido e se a outra parte criou culposamente a situação resultante da inobservância da forma escrita legalmente estipulada ou, então, se o contrato tiver sido executado e ter-se a situação prolongado durante largo período de tempo sem dificuldades, o excedente não poderá invocar a nulidade, nem deduzir pedidos em que se pretende obter o mesmo efeito, pois caso contrário constitui o abuso de direito (artigo 326.º do Código Civil).

      No presente caso, o autor A vendeu a fracção autónoma em causa a C sem ter sido celebrada a escritura pública de compra e venda, e logo lhe entregou as chaves e recebeu dele o respectivo preço, fazendo com que o comprador estivesse firmemente convicto que passou a ser o verdadeiro dono da fracção. No entanto, decorridos 7 anos, A exigiu que B e C lhe devolvessem o imóvel escondendo dolosamente do Tribunal o facto da venda do mesmo, comportamento esse que excedeu manifestamente os limites impostos ao exercício de direito pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, e ofendeu o sentimento jurídico socialmente dominante. A fim da protecção da confiança, deve ser mantida a eficácia do acto que padece do vício de forma e não se deve satisfazer o pedido pelo autor deduzido que abusa manifestamente do direito.

      Quanto ao pedido indemnizatório deduzido pelo autor, o Tribunal Colectivo indicou que foi C que cedeu a B o uso e a fruição da fracção e C achava-se dono da fracção por ter adquirido a propriedade por contrato de compra e venda, pelo que de má fé não pode ser tida a posse que B exerceu sobre a fracção. Assim, o pedido indemnizatório não podia ser dado por procedente.

      Por fim, quanto à litigância de má fé, o Tribunal de Segunda Instância entendeu que o autor dolosamente alterou a verdade dos factos e omitiu o facto relevante da venda da fracção a C em 2003, alegando mentirosamente que permitiu o uso da fracção por B a título gratuito e de mera tolerância. Desta maneira, o seu comportamento preenche a previsão legal do art. 385º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Civil. Não há nada a censurar na decisão do Tribunal a quo, quanto à litigância de má fé.

      Face ao exposto, o Tribunal de Segunda Instância manteve a sentença do Tribunal Judicial de Base no que respeita à decidida caducidade do direito de acção do autor A e à condenação em multa do mesmo por litigância de má fé, absolvendo B e C dos pedidos por A formulados. Também julgou parcialmente procedente a reconvenção de C, reconhecendo-lhe a posse do imóvel desde Março de 2003, devendo A abster-se de actos que a perturbem.

      Cfr. Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, processo n.º 98/2014.

Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância

25/02/2015