Situação Geral dos Tribunais

Tribunal de Segunda Instância mantém a decisão do Chefe do Executivo que declarou nula a transmissão da concessão dos terrenos onde estava a ser construído o La Scala

      Depois de ter sido proferido em 31 de Maio de 2012 pelo Tribunal de Última Instância de Macau o acórdão no âmbito do processo n.º 37/2011 em que foi condenado o então Secretário para os Transportes e Obras Públicas Ao Man Long pela prática dos crimes de corrupção passiva quanto ao processo de selecção da sociedade transmissária dos contratos de concessão dos cinco terrenos situados na Avenida Wai Long, na ilha da Taipa, o Chefe do Executivo proferiu despacho em 8 de Agosto de 2012 no sentido de declarar a nulidade dos despachos exarados pelo anterior Chefe do Executivo, em 17 de Março de 2006, que autorizaram a transmissão dos direitos resultantes dos contratos de concessão dos referidos cinco terrenos a favor da Moon Ocean, sociedade-filha da Chinese Estates Holding Ltd..

      Inconformada, a Moon Ocean interpôs para o Tribunal de Segunda Instância o recurso contencioso de anulação.

      A recorrente invocou, em primeiro lugar, o vício de usurpação de poder, entendendo que o Chefe do Executivo não pode unilateralmente ter proferido declaração de nulidade dos contratos administrativos de concessão de terreno, uma vez que nos termos do artigo 173.º do Código do Procedimento Administrativo, na falta de acordo da contraparte, a Administração só pode obter os efeitos pretendidos através da intervenção do órgão judicial, pelo que, a Administração usurpou o poder judicial, sendo nulo o acto recorrido nos termos do artigo 122.º n.º 2 alínea a) do mesmo Código.

      Neste aspecto, O Tribunal de Segunda Instância entendeu que não lhe assiste razão, uma vez que, por um lado, o que o acto recorrido declarou nada tem a ver com a invalidade dos contratos administrativos de concessão de terreno, mas sim a nulidade dos actos do Chefe do Executivo que autorizaram a transmissão dos direitos resultantes dos contratos de concessão dos referidos terrenos, pelo que, só mediatamente os contratos de concessão são atingidos. Por outro lado, também não se pode considerar que os contratos administrativos de concessão em causa sejam reconduzíveis a um contrato com uma proximidade ao dos contratos com objecto passível de um contrato privado, uma vez que tais contratos definem os termos da colaboração dos particulares com a Administração referente ao desenvolvimento de um projecto de construção em terreno da RAEM. O objecto dos contratos e os fins prosseguidos têm uma natureza própria de uma relação jurídica administrativa, nela a Administração dota de jus imperii, podendo, movida por razões de interesse público, agir, por via do acto administrativo em termos de repercussão sobre um dado contrato administrativo, pelo que, não surge in casu a invocada usurpação de poder.

      A recorrente mais invocou que os poderes conferidos ao concessionário por arrendamento de terrenos do domínio privado da RAEM têm natureza de direito real, correspondendo a um direito de propriedade propriamente dito que é protegido como direito fundamental nos artigos 6.º e 103.º da Lei Básica de Macau. O acto impugnado despojou a recorrente dos seus direitos sobre os lotes e as benfeitorias e construções já aí efectuadas, pelo que, enferma do vício de nulidade.

      O Tribunal de Segunda Instância procedeu a uma análise sobre a concessão de terreno por arrendamento, apontando que os terrenos integrados no domínio privado da RAEM podem ser objecto da disposição com a celebração do contrato de concessão de arrendamento que se materializa a concessão provisória. O prazo do arrendamento, porém, não pode ser superior a vinte e cinco anos. Por seu turno, o prazo das renovações nunca deverá exceder, para cada uma, dez anos. O concessionário deve pagar a renda que é anual e deve cumprir as prescrições legais e contratuais concernentes ao aproveitamento do terreno. Deste regime se retira, não obstante estes traços que apontam para a natureza real, não obstante o direito do concessionário pode ser um direito real disciplinado na Lei de Terras e diplomas complementares, não resulta qualquer perpetuidade do direito. A inviolabilidade do direito que a recorrente se arroga pressupõe que o direito se mostre adquirido, o que, quando de direitos reais se trata, a única forma indestrutível de aquisição originária passa pela prescrição aquisitiva. Até lá o que temos são modos de aquisição derivada que não deixam de estar sujeitos ao regime das invalidades negociais ou dos actos administrativos. Pelo que se conclui pela improcedência desta pretensa violação de um direito real privado, na exacta medida em que esse direito não se chegou a constituir na ordem jurídica.

      A recorrente entendeu que o acto recorrido que declarou a nulidade dos despachos que para ela são actos constitutivos de direitos equivale a uma punição a ela aplicada, porém, toda a factualidade em que se fundamentou tal punição é extraída do supra citado acórdão do TUI proferido em processo-crime n.º 37/2011 no qual nem a recorrente nem qualquer membros do seu órgão de administração foram partes. No referido processo, não lhe foi dado defender-se, pelo que, o acto recorrido despojou a recorrente do seu direito de defesa e também padece do vício de erro nos pressupostos de direito por desrespeito dos limites objectivos do caso julgado.

      Quanto a isso, o Tribunal Colectivo entendeu que é verdade que só pode ser punido quem foi julgado no processo-crime, mas já nada impede que se retirem efeitos colaterais de uma dada decisão condenatória num outro processo ou procedimento de natureza administrativa. Nos termos do artigo 578.º do CPC, a condenação definitiva proferida no processo penal constitui a presunção no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em relação aos sujeitos de acção de natureza civil ou administrativa em que se discutam relações jurídicas dependentes ou relacionadas com a prática da infracção que não tenham intervindo no processo penal, porém, tal presunção é ilidível. Pelo que, perante uma condenação transitada em julgado e que serviu de pressuposto à declaração de nulidade de um acto por parte da Administração, cabia ao interessado ilidir essa presunção em sede de recurso contencioso. No processo-crime n.º 37/2011, não há punição alguma de natureza criminal aplicada à recorrente, pelo que, a recorrente nele não tinha que intervir; no âmbito do processo administrativo, a Administração realizou audiência escrita da recorrente e esta emitiu seu parecer em 29 de Junho de 2012 e, no âmbito do recurso contencioso, o Tribunal de Segunda Instância mesmo sacrificou a celeridade da Justiça para deferir todas as diligências solicitadas pela recorrente, incluindo a expedição de uma carta rogatória a Portugal, de tal modo que a recorrente obtivesse oportunidade de ilidir a existência de tal presunção, pelo que, não pode a recorrente invocar que foi despojada do seu direito de defesa nem existe erro nos pressupostos de direito.

      A recorrente alegou ainda que os actos declarados nulos (despachos da autorização da transmissão dos direitos resultantes dos contratos de concessão de terreno do Chefe do Executivo, de 17 de Março de 2006) foram praticados pelo Chefe do Executivo, porém, os alegados crimes que constituíram o crime de corrupção passiva foram praticados pelo então Secretário para os Transportes e Obras Públicas, não há coincidência entre os dois actos e os actos declarados nulos e os actos que constituírem o crime de corrupção passiva praticados pelo então Secretário para os Transportes e Obras Públicas também são dois actos diferentes, não existindo nexo de causalidades, pelo que, não preenche os pressupostos para a aplicação do artigo 122.º n.º 2 alínea c) do CPA, e o acto administrativo ora recorrido também padece do vício de violação da lei por erro de direito na aplicação do referido disposto legal.

      Quanto a isso, o Tribunal de Segunda Instância referiu que conforme os pontos de vista expostos pelo Tribunal de Última Instância no Processo n.º 11/2012, a expressão “actos administrativos que impliquem a prática de um crime” prevista no artigo 122.º n.º 2 alínea c) do CPA tem que ser objecto de interpretação extensiva: não estão em causa apenas as situações em que o acto administrativo em si preenche um tipo penal, mas todas aquelas em que o acto administrativo envolva, na sua preparação ou execução, a prática de um crime, estando nessas circunstâncias, por exemplo, os actos que sejam praticados mediante suborno ou por corrupção. In casu, apesar de os despachos da autorização da transmissão de direitos serem realizados pelo Chefe do Executivo, a decisão feita por estes fundamentou-se no processo anterior com pressupostos e motivos de crime, pelo que, os despachos proferidos pelo Chefe do Executivo em 17 de Março de 2006 devem ser considerados como actos administrativos que impliquem a prática do crime, devendo os mesmos ser nulos, razão pela qual não existe o vício de erro de direito na aplicação da lei.

      Além disso, a recorrente também apresentou provas para tentar comprovar que os membros do júri do referido processo de selecção da sociedade transmissária não foram pressionados e que a proposta da recorrente até era a melhora e daí entendeu que o acto recorrido incorreu em erro nos pressupostos de facto, porém, analisando as respectivas provas, o Tribunal Colectivo entendeu que isso não esgota todas as possibilidades e não exclui que não houvesse um benefício através de uma qualquer outra via no sentido de se criarem as condições para que a recorrente se viesse a posicionar em condições de indicar a melhor proposta, em termos de preço e em termos de plano urbanístico, pelo que, não basta para ilidir os factos provados pelo acórdão do Tribunal de Última Instância proferido no Processo n.º 37/2011 de que o então Secretário para os Transportes e Obras Públicas interveio no processo de selecção da sociedade transmissária, deixando a recorrente ser seleccionada como sociedade vencedora, razão pela qual não existe erro no pressupostos de facto.

      A recorrente mais alegou que os despachos do Chefe do Executivo, de 17 de Março de 2006 que autorizaram a transmissão dos direitos resultantes dos contratos de concessão de terreno e os actos que se seguiram produziram efeitos a todos os níveis, quer jurídicos, quer factual ou económico na esfera jurídica da recorrente e de terceiros de boa fé. A recorrente já fez obras nos terrenos em causa para construir complexo habitacional de luxo e começou a vendê-las, e em Março de 2011, a Administração mesmo revisou a concessão, aumentando áreas e emitindo licenças, o que criou todo um ambiente de confiança sobre a legalidade da referida concessão de terreno. Porém, o acto recorrido ignorou tais efeitos ao declarar incondicionalmente a nulidade dos actos em causa, sem atender aos efeitos de facto e, pelo decurso do tempo, jurídicos que merecem a tutela do Direito, o que causou enorme prejuízo económico à recorrente Moon Ocean, à sua sócia-única e sociedade-mãe, Chinese Estates Holiding Ltd. e aos investidores que prometeram comprar as fracções a serem construídas nos referidos lotes, violando o princípio da protecção da confiança, o princípio da proporcionalidade e da adequação e os princípios da justiça e da boa-fé, bem como ignorando os interesses públicos.

      Em relação a este aspecto, o Tribunal Colectivo referiu que é verdade que, como já foi referido pela recorrente, a declaração da nulidade dos actos de 17 de Março de 2006 causou enormes danos económicos que atingem pessoas e empresas que nada têm a ver com o crime cometido, a Administração bem podia salvar as expectativas delas e aproveitar tais investimentos. Mas, a Administração só se situa ao nível do poder fazer, não do ter que fazer, e os tribunais não podem intervir na escolha da Administração nesse domínio. Quanto à questão dos prejuízos sofridos pelas referidas pessoas e empresas, não podem deixar de ser equacionados à luz de uma disciplina dos riscos do negócio ou da responsabilidade civil por parte de quem lhes deu azo. Dado que os despachos do Chefe do Executivo de 17 de Março de 2006 enfermam do vício devido à corrupção passiva praticada pelo Secretário para os Transportes e Obras Públicas, a declaração da sua nulidade corresponde a um acto vinculado por lei, sem qualquer vertente discricionária da Administração, pelo que, não se pode falar da violação do princípio da proporcionalidade e da adequação. A par disso, o interesse público principal que a Administração tem que salvaguardar na actividade administrativa é o estreito rigor pelo princípio da legalidade administrativa. Quando os actos que autorizaram a transmissão dos direitos resultantes da concessão de terreno fundaram-se na corrupção passiva, mesmo que o preço da transmissão oferecida pela recorrente seja bem elevado e o projecto de construção seja bem favorável ao desenvolvimento urbanístico de Macau, o que a Administração pode fazer é, tão-só, recuperar a legalidade administrativa abalada pelo crime, por isso, não existe a violação dos princípios da justiça e da boa-fé nem ignorando os interesses públicos.

      Pelas apontadas razões, o Tribunal Colectivo julgou improcedente o recurso contencioso, mantendo o acto administrativo recorrido.

      Cfr. Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, Processo n.º 755/2012.

 

 

Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância

24 de Junho de 2015