Tribunal de Segunda Instância
- Votação : Vencido o relator
- Relator : Dr. Chan Kuong Seng
- Juizes adjuntos : Dr. Lai Kin Hong
- Dr. José Maria Dias Azedo
- Votação : Unanimidade
- Relator : Dr. Chan Kuong Seng
- Juizes adjuntos : Dr. Sebastião José Coutinho Póvoas
- Dr. Lai Kin Hong
- Votação : Vencido o relator
- Relator : Dr. Chan Kuong Seng
- Juizes adjuntos : Dr. Lai Kin Hong
- Dr. Choi Mou Pan
- Votação : Unanimidade
- Relator : Dr. José Maria Dias Azedo
- Juizes adjuntos : Dr. Chan Kuong Seng
- Dr. Lai Kin Hong
- Votação : Unanimidade
- Relator : Dr. Choi Mou Pan
- Juizes adjuntos : Dr. José Maria Dias Azedo
- Dr. Lai Kin Hong
– Âmbito da decisão da causa
– Não conhecimento oficioso dos vícios do art.º 400.º, n.º 2, do CPP
– Inaplicabilidade do art.º 650.º do CPC ao processo penal
– Art.º 392.º, n.º 2, al. a), do CPP
– Guarda da PMF para efeitos da al. d) do art.º 10.º do DL n.º 5/91/M
– Dever geral de disponibilidade do militarizado
– Atenuação livre da pena do n.º 2 do art.º 18.º do DL 5/91/M
– Atenuação especial da pena do CP
– Recebimento ou mera detenção da droga
– Art.º 355.º, n.º 2, do CPP
– Livre apreciação da prova
– Erro notório na apreciação da prova
– Bem jurídico do crime de tráfico de droga
– Crime de perigo abstracto ou presumido
– Critério de aplicação do art.º 9.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 5/91/M
– Quantidade diminuta de droga - definição
– Comprimidos com Metanfetamina e Ketamina no seu interior
– Crime de traficante-consumidor
– Crime de tráfico de quantidades diminutas
– Falta de investigação
– Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
– Insuficiência da prova
– Nulidade do art.º 107.º, n.º 2, al. d), segunda parte, do CPP
1. O tribunal ad quem só vai resolver as questões concretamente postas pelo recorrente e delimitadas pelas conclusões da sua motivação de recurso, transitando em julgado as questões nelas não contidas, cabendo-lhe, por outro lado, decidir das questões assim delimitadas, e já não apreciar todos os fundamentos ou razões em que o recorrente se apoia para sustentar a sua pretensão, sem prejuízo da possibilidade de o tribunal se pronunciar, caso o entender conveniente, sobre qualquer dessas razões invocadas.
2. Os três vícios previstos no n.º 2 do art.º 400.º do Código de Processo Penal de Macau (CPP), possibilitadores da reapreciação da matéria de facto julgada pelo tribunal a quo, não são de conhecimento oficioso mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.
3. Pois, a clara redacção do n.º 2 do art.º 400.º, conjugada com o disposto nos art.ºs 402.º, n.ºs 1 e 3, e 415.º, n.º 1, e o seu confronto com o art.º 393.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPP, apontam no sentido de os vícios em causa só poderem justificar o reenvio do processo (art.º 418.º, n.º 1, do CPP) quando sejam invocados “como fundamentos do recurso”; e isso estará em sintonia com a mens legislatoris, enquanto se atribui aos sujeitos processuais, como recorrentes, uma inequívoca co-responsabilidade no bom e rápido êxito final da causa, nomeadamente consentindo-se-lhes a limitação do recurso nos amplos termos do art.º 393.º do CPP e impondo-se-lhes apertadas regras na motivação, que, além do mais, terá de enunciar especificamente os fundamentos do recurso e formular conclusões de acordo com o art.º 402.º, n.ºs 1 e 2, do CPP.
4. Com efeito, se o arguido se conformou com a decisão a quo feita no tocante à matéria de facto, e tão-só recorre da parte da decisão condenatória referente à medida da pena, não faz sentido conhecer oficiosamente dos eventuais vícios do n.º 2 do art.º 400.º contra a “vontade” do arguido, já que este, se entendesse haver esses vícios, bastaria argui-los na motivação do recurso a caber do veredicto do tribunal a quo.
5. É inaplicável, a título subsidiário, o art.º 650.º do Código de Processo Civil de Macau (CPC) aos eventuais casos de verificação dos vícios previstos no n.º 2 do art.º 400.º do CPP, dada a auto-suficiência do processo penal nesta matéria relativa a esses mesmos vícios.
6. Quando os arguidos recorrentes não foram acusados a título de co-autoria, a procedência de qualquer dos recursos em causa, independentemente da questão de se saber se estão a recorrer por motivos estritamente pessoais, não irá aproveitar a outros recorrentes, nos termos do art.º 392.º, n.º 2, al. a), do CPP.
7. A um arguido que era guarda da Polícia Marítima e Fiscal à data da prática dos factos ilícitos pelos quais vinha condenado como autor material, na forma consumada, de um crime de tráfico do art.º 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 5/91/M, é, indubitavelmente, aplicável a circunstância da al. d) do art.º 10.º do mesmo diploma, por causa do dever geral de disponibilidade inerente a qualquer guarda daquela Corporação como um militarizado, por estar efectiva e permanentemente incumbido, mesmo fora das horas de serviço ou do exercício formal das suas funções, de tomar imediatamente todas as providências para evitar a preparação ou consumação de algum crime mesmo fora da sua área de responsabilidade ou para descobrir os seus autores, até que o serviço seja assegurado pela autoridade ou agentes competentes.
8. Pois, a própria lei não distingue se o agente referido na al. d) do art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 5/91/M deve ser incumbido especialmente da prevenção ou repressão das infracções em causa, ou tão só em geral, pelo que ao proceder à interpretação e aplicação desta norma, há que observar o cânone de interpretação da lei de que quando a lei não distingue, também o intérprete-aplicador não deve distinguir.
9. A atenuação livre do n.º 2 do art.º 18.º do Decreto-Lei n.º 5/91/M, de 28 de Janeiro (DL 5/91/M), não é feita nos termos previstos do art.º 67.º do Código Penal de Macau (CP), por se tratarem de institutos de “atenuação da pena” bem distintos.
10. Assim, essa atenuação livre do n.º 2 do art.º 18.º do DL 5/91/M é feita em função da livre resolução do julgador, tendo em conta as circunstâncias apuradas na situação concreta considerada, a serem avaliadas caso a caso.
11. E como método para isso, há que determinar, primeiro, a pena concreta a impor ao arguido dentro da moldura penal abstracta correspondente ao crime por ele praticado, sem considerar as circunstâncias entretanto apuradas a seu favor que tenham a ver com o instituto do n.º 2 do art.º 18.º do DL 5/91/M, para, depois, proceder à atenuação livre dessa pena concreta em função da ponderação dessas circunstâncias a que alude a própria norma do n.º 2 do art.º 18.º, tendo em conta, por exemplo, o grau de contributo do arguido para a identificação ou captura de outro ou outros agentes do crime de tráfico, sendo esse grau tanto maior quanto maior for o número de agentes assim descobertos e/ou capturados, ou quanto maior for o auxílio concretamente dado na recolha de provas decisivas.
12. Para verificar o tipo de crime do art.º 8.º, n.º 1, do DL 5/91/M, basta o recebimento ou a mera detenção da droga controlada pelo mesmo diploma sem devida autorização, independentemente da motivação desse recebimento ou da detenção, a não ser que exista alguma causa justificativa da ilicitude ou da culpa.
13. A lei, através da parte final do n.º 2 do art.º 355.º do CPP, só exige a indicação na sentença dos meios de prova que serviram de base à formação da convicção do tribunal.
14. É insindicável a livre convicção do julgador formada ao abrigo do art.º 114.º do CPP, salvo casos de manifesto erro por contrariar as regras da experiência da vida humana ou as legis artis.
15. O erro notório na apreciação da prova, tal como os restantes dois vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de contradição insanável da fundamentação, há-de ser tão notoriamente evidente que não passe despercebido ao comum dos observadores, isto é, que o homem médio facilmente dê conta dele.
16. O bem jurídico que se procura proteger no tipo de crime de tráfico previsto nos seus termos fundamentais no art.º 8.º, n.º 1, do DL 5/91/M, é a saúde pública, na dupla vertente física e moral, pelo que o crime de tráfico é um crime de perigo abstracto ou presumido, para cuja consumação não se exige a existência de um dano real e efectivo, mas sim basta a simples criação de perigo ou risco de dano para o bem protegido.
17. O preceito do art.º 9.º do Decreto-Lei n.º 5/91/M não exige peremptoriamente, para a aplicação do seu n.º 3, a determinação da quantidade da substância ou preparado em causa em termos do seu peso, para qualquer situação concreta que seja, dado que para os efeitos eventualmente a resultar do seu n.º 1, há que atender necessariamente às circunstâncias em que é consumida a droga considerada, daí, aliás, precisamente o espírito do disposto no seu n.º 5, ao abrigo do qual a concretização da quantidade diminuta para cada uma das substâncias e produtos mais correntes no tráfico para efeitos do disposto no mesmo art.º 9.º será apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
18. Assim, como critério da aplicação do n.º 3 do art.º 9.º do Decreto-Lei n.º 5/91/M com relevância para a aplicabilidade da moldura penal mais leve prevista no seu n.º 1, se a substância proibida ou uma das substâncias proibidas em causa for contida em comprimido, pílula ou até cápsula, ou for misturada aí com outras substâncias, em si proibidas ou não, ou até impurezas, só é de considerar o número dos comprimidos, pílulas ou cápsulas que comprovadamente contêm aquela substância ou uma das substâncias proibidas em questão, sem necessidade do apuramento da sua quantidade líquida, o que não conduz à violação do princípio da legalidade em matéria criminal na sua vertente de nullum crimen nulla poena sine lege, visto que é o espírito ínsito no próprio preceito do n.º 5 do mesmo art.º 9.º que permite formar um juízo de valor acerca da verificação ou não de quantidade diminuta, com base na livre convicção da entidade competente e segundo as regras da experiência.
19. Doutro passo, ao definir a “quantidade diminuta” para cada tipo de substância ou preparado em consideração, não se pode olhar demasiadamente à sua quantidade letal, mas sim mais propriamente à “quantidade que não excede o necessário para consumo individual durante três dias”, como diz expressamente a lei.
20. Não se tendo provado quais as quantidades de droga consumidas pelo agente e se o fazia todos os dias, haverá que aferir as suas necessidades de consumo pelas da generalidade dos consumidores nas suas condições.
21. Os consumidores comuns de comprimidos que contêm no seu interior Metanfetamina e/ou Ketamina são adolescentes de “middle-class” e adultos jovens participantes de “rave party” ou frequentadores de “night-club” e “bar” ou mesmo de festas ou convívios em privado, para poderem, através desses comprimidos tidos como “droga de design” e “droga para lazer”, “sentir alto” nesse tipo de ocasiões.
22. Assim, os comprimidos que contêm no seu interior Metanfetamina e Ketamina, nas situações normais da vida humana dos seus consumidores comuns, não podem ser nem são consumidos por três dias seguidos, exactamente porque após o estado de exaustão do corpo humano resultante do efeito de “sentir alto” e inclusive dos actos “involuntariamente” contínuos de “abanar a cabeça” com a sua ingestão oral, o seu consumidor comum carece de tempo para se recuperar fisicamente, pelo que ninguém, do tipo do homem médio e razoável, se propõe a “sentir alto” com consequente estado de exaustão corporal durante três dias ou noites consecutivos através de ingestão deste tipo de comprimidos, ao que acresce que ninguém se atreve, sob pena de correr grave risco se não mortal à sua saúde, a ingerir, na normalidade das situações da vida humana, mais do que um ou dois comprimidos do tipo em causa numa mesma só ocasião, já que por um lado, ninguém lhe garante que o comprimido a tomar só contenha uma quantidade ínfima de Metanfetamina e/ou Ketamina, e mesmo que lhe garanta isto, a gente também não ingere numa mesma ocasião mais do que um ou dois comprimidos, por causa da natureza destes como “droga de design” e “droga para lazer” e não droga que cria toxicodependência habitual em sentido próprio do termo como o caso de heroína, cocaína ou de marijuana, etc..
23. Não vale, por isso, sob pena da tábua rasa às regras da experiência acima referidas, a tese de que se o comprimido contiver uma quantidade ínfima de substância ou substâncias activas proibidas em causa, já o número de uma ou até algumas dezenas de comprimidos poderá ser o necessário para consumo individual durante três dias e, por isso, constituir “quantidade diminuta” para efeitos do disposto no art.º 9.º do DL 5/91/M.
24. E nem se diga que se o consumidor desses comprimidos soubesse, de antemão, da quantidade líquida exacta da substância ou substâncias activas proibidas contidas no seu interior, e se a achasse tão ínfima que não chegaria a “sentir alto”, já estaria disposto a ingerir numa mesma ocasião maior número de comprimidos, por exemplo, uma dezena de comprimidos para poder sentir o mesmo grau pretendido de “sentir alto”, por este tipo de tese também estar a contrariar as mesmas regras da experiência humana na normalidade das situações acima expendidas, para além de não respeitar a própria Dogmática do Direito Penal em matéria da Teoria da Culpa, maxime no que se refere aos critérios da aferição do elemento intelectual do dolo por parte do agente do crime.
25. Com efeito, estando a substância activa em causa encoberta dentro de comprimidos, e normalmente até misturada com outras substâncias activas e/ou impurezas, para cujo consumo nas suas condições normais, o comum dos consumidores não vai nem está disposto a desmantelar primeiro os comprimidos a fim de extrair deles a quantidade líquida da substância activa que pretenda tomar para alcançar lazer em festas ou convívios em discoteca ou em privado, pois para este objectivo ele optará com certeza pela aquisição da mesma substância activa no seu estado puro à vista desarmada e não contida em comprimido, dada toda a inconveniência desse desfazer do comprimido em ocasiões de “rave party” ou convívios em discoteca ou em privado, para além da inerente inviabilidade técnica, para o comum dos consumidores, da extracção e determinação da quantidade líquida exacta da substância activa em causa contida no interior dos comprimidos.
26. Entretanto, aquelas teses já valem se se tratar de Metanfetamina ou de Ketamina no seu estado puro à vista desarmada e sem ser contida em comprimido, pois neste caso, como o comum dos seus consumidores já consegue prever a quantidade líquida da mesma substância, já se sente livre e com vontade para a tomar na quantidade que desejar a fim de matar as suas necessidades com os efeitos da mesma.
27. Provado que está que o agente conhecia as características e a natureza legalmente proibida de uma dada substância estupefaciente contida no interior dos comprimidos em causa, e mesmo assim, os “traficou” de livre vontade mas não por finalidade exclusiva para conseguir substâncias ou preparados para seu uso pessoal, sabendo que assim procedendo iria contrariar a lei, o mesmo agente tem que ser punido a título da autoria material do crime do art.º 8.º do DL 5/91/M, salvo se o tribunal competente a conhecer do caso e apenas esta entidade julgadora entender, sob a égide do espírito do n.º 5 do art.º 9.º do mesmo Decreto-Lei, portanto, por sua livre convicção e segundo as regras da experiência, que a quantidade dos comprimidos em questão que comprovadamente contêm no seu interior aquela mesma substância estupefaciente “não excede o necessário para consumo individual durante três dias”, hipótese em que o agente só será punido com a moldura mais leve do art.º 9.º do mesmo DL 5/91/M.
28. Com isso se demonstra também a impropriedade da “tese de importância e prevalência da análise quantitativa mesmo para os casos de droga contida em comprimidos”, pois esta tese, se fosse adequada, não deveria ver a sua aplicação em concreto condicionada à pressuposta premissa natural da possibilidade técnica da análise quantitativa, uma vez que a tese, assim formulada, iria acarretar a uma aplicação sua de modo bifronte e desigual, pois que para as situações em que não fosse tecnicamente possível a análise quantitativa mas sim tão-só possível a análise qualitativa, se iria, por exemplo, absolver o arguido pelo princípio de in dubio pro reo, enquanto em toda a situação em que fosse tecnicamente possível tal análise quantitiva, já se iria condenar o agente pelo crime de tráfico do art.º 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 5/91/M, caso a quantidade líquida da substância proibida activa e contida nos comprimidos em causa tivesse excedido o necessário para consumo individual durante três dias.
29. Assim sendo, o critério mais defensável para efeitos da aplicação do n.º 3 do art.º 9.º do Decreto-Lei n.º 5/91/M, por ser um critério sobretudo igual para toda a gente que trafique qualquer substância proibida pelo mesmo diploma legal e apresentada no interior de comprimido, pílula ou cápsula, quer misturada com outra substância ou substâncias, proibidas ou não, quer com simples impurezas ditas inócuas, é unicamente o de número deste tipo de comprimidos, pílulas ou cápsulas, desde que se constate que contenham no seu interior qualquer uma das substâncias proibidas ou controladas pelo mesmo Decreto-Lei, independentemente da questão de se saber se é tecnicamente viável a análise quantitativa da dose líquida da substância proibida activa contida nesse tipo de comprimidos, por esta análise quantitativa não ser pertinente para a formação da livre convicção da entidade julgadora em sede da concretização da “quantidade diminuta” com base nas regras da experiência vivida pelo comum dos consumidores daquele tipo de comprimidos, pílulas ou cápsulas.
30. Desde que não se prove que o tráfico da droga seja praticado com a finalidade exclusiva para conseguir substâncias ou preparados para uso pessoal, já não é de aplicar o tipo privilegiado de crime de “traficante-consumidor” descrito no art.º 11.º, n.º 1, do DL 5/91/M.
31. E desde que o tribunal não considere que o total da droga encontrada na disponibilidade da arguida seja de quantidade diminuta, já não é de aplicar também o tipo privilegiado de crime de “tráfico de quantidades diminutas” do art.º 9.º do DL 5/91/M (cfr. o critério do n.º 3 do art.º 9.º do mesmo diploma), isto independentemente da questão de saber qual a porção ou parte do total de droga encontrado na disponibilidade do agente do crime é que se destina a seu eventual consumo próprio ou a fornecimento a terceiro, pois a norma incriminadora do mesmo art.º 9.º não distingue isto para efeitos da sua aplicação.
32. Atento o bem jurídico em causa no crime de tráfico de droga, e a necessidade da sua protecção, na punição das condutas de tráfico de droga, é considerada toda a quantidade traficada pelo arguido durante uma certa época, e não um determinado momento, daí que não pode haver lugar ao concurso real efectivo do crime de tráfico de quantidades diminutas do art.º 9.º do DL 5/91/M com o crime de tráfico do art.º 8.º do mesmo diploma.
33. Assim sendo, não se provando in casu que ao agir com agiu, o arguido teve por finalidade exclusiva para conseguir substâncias ou preparados para seu consumo pessoal, nem que o total da droga encontrado na sua disponibilidade é considerado de “quantidade diminuta”, a sua conduta provada nos autos nunca pode conduzir à aplicação do tipo de crime de traficante-consumidor do art.º 11.º, n.º 1, do DL 5/91/M, nem do tipo de crime de tráfico de quantidades diminutas do art.º 9.º, n.º 1, do mesmo diploma, não havendo, pois, lugar à aplicação do princípio in dubio pro reo.
34. A falta de realização de diligências de investigação quanto à acusação, defesa ou discussão da causa pelo tribunal a quo não conduz à insuficiência para a decisão da matéria de facto provada como vício previsto na al. a) do n.º 2 do art.º 400.º do CPP, visto que essa insuficiência de realização de diligências deveria ter sido detectada durante a audiência de julgamento para a produção da prova, com requerimento ao tribunal a quo para que tais diligências fossem realizadas, a título de arguição de uma nulidade do processo fundada na omissão de uma diligência que pudesse reputar-se essencial para a descoberta da verdade e prevista no art.º 107.º, n.º 2, al. d), segunda parte, do CPP.
35. Portanto, provado que está que o total da quantidade encontrado na disponibilidade do arguido foi por ele destinado a consumo pessoal e a fornecimento a terceiros, e enquanto esse total de droga não pode ser considerado como de quantidade diminuta, o arguido tem que responder forçosamente pela autoria material, na forma consumada, de dois crimes dolosos, em concurso real efectivo, quais sejam, o de tráfico de droga do art.º 8.º, n.º 1, do DL 5/91/M, e o de “consumo” do art.º 23.º, al. a), do mesmo diploma.
– Recurso contencioso
– Vícios do acto respeitantes à violação da Constituição da República Portuguesa
– Ordem de conhecimento dos vícios
– Audiência prévia do arguido no processo disciplinar
– Nulidade insuprível do art.º 298.º, n.º 1, do ETAPM
1. Dada a alteração superveniente do Estatuto Político de Macau ocorrida na Data de Transferência de Poderes em 20 de Dezembro de 1999, o Tribunal de Segunda Instância não pode conhecer dos vícios invocados em recurso contencioso de um acto administrativo anterior que respeitem à violação da Constituição da República Portuguesa, por obediência ao espírito da norma do art.º 70.º, n.º 2, al. 3), da Lei de Bases da Organização Judiciária da R.A.E.M..
2. De entre os vícios arguidos no recurso contencioso, é de conhecer primeiro, segundo o prudente critério do tribunal, daqueles cuja procedência determine mais estável ou eficaz tutela dos interesses alegadamente ofendidos, ou seja, daqueles vícios cuja procedência impeça a renovação do acto.
3. Omitida a audiência pessoal do arguido de um processo disciplinar após a realização das diligências de prova complementares na fase de instrução do processo e antes da elaboração do relatório pelo instrutor, e enquanto o arguido chegou a apresentar tempestivamente a sua resposta escrita à acusação então contra ele formulada, é de anular todo o processado anterior do processo a partir do momento em que se preteriu tal audiência prévia do arguido, por se tratar, nestas precisas circunstâncias, de uma nulidade insuprível nos termos do art.º 298.º, n.º 1, parte inicial, do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, interpretado em necessária conjugação com os seus art.ºs 329.º, n.ºs 1 e 3, e 334.º, n.º 4.
– Âmbito de conhecimento da causa
– Interpretação da lei
– Incompetência do tribunal como questão prévia
– Art.º 293.º do CPP
– Art.º 318.º, n.º 1, do CPP
– Art.º 349.º, n.º 1, do CPP
– Despacho de saneamento
– Caso julgado formal
– Prevenção de prática de actos inúteis
– Princípio da limitação dos actos
– Reunião interna do Colectivo
– Função da audiência de julgamento
– Elementos integradores do crime de burla
– Intenção criminosa sem suporte fáctico
– Promessa de compra e venda de bem imóvel
– Omissão de informação sobre o estado registral do imóvel
1. O tribunal ad quem só vai resolver as questões concretamente postas pelo recorrente e delimitadas pelas conclusões da sua motivação de recurso.
2. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão, sem prejuízo da possibilidade de, em sede de recurso, o tribunal ad quem se pronunciar, caso entender conveniente, sobre qualquer dessas razões invocadas.
3. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada, isto precisamente por causa do facto de que quem aplica uma norma, está a aplicar todo o sistema.
4. A questão de incompetência do tribunal para conhecer, num processo penal, de uma questão exclusivamente de foro cível deve ser encarada como uma “questão prévia” (e não uma questão incidental), visto que a constatação da mesma questão obsta, de antemão à apreciação do objecto da causa inicialmente tido como de natureza penal.
5. O art.º 293.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP) só se aplica aos casos de não aceitação da acusação por falta de observância do n.º 1 do art.º 266.º ou do n.º 4 do art.º 267.º.
6. À luz do n.º 1 do art.º 293.º do CPP, o juiz titular de um processo penal, logo que os respectivos autos tenham sido recebidos no seu juízo e a ele conclusos, tem de pronunciar-se sobre as questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa de que possa, desde logo, conhecer, isto apesar de o conhecimento das questões prévias ou incidentais poder ainda ter indubitavelmente lugar em dois momentos posteriores ao do saneamento do processo: um, no momento da prática de actos introdutórios da audiência de julgamento nos termos do art.º 318.º, n.º 1, do CPP; e outro, posterior a este, no início da deliberação e votação nos termos do art.º 349.º, n.º 1, do mesmo diploma.
7. Depois da fase de saneamento do art.º 293.º do CPP, e até antes da realização da audiência de julgamento, o juiz titular do processo pode ainda vir a conhecer das questões prévias ou questões incidentais, que entretanto não tenham sido por ele conhecidas aquando do saneamento do processo em sede do n.º 1 do art.º 293.º, possibilidade de conhecimento esta que sempre se justifica, ao fim e ao cabo, pela necessidade de prevenção da prática de actos inúteis no processo, em prol dos princípios gerais das economia e celeridade processuais. Pois, se se constatar a existência de alguma questão prévia ou questão incidental que obste à apreciação do mérito da causa, é de resolvê-la quanto antes e logo que se aperceba dela e desde que haja já condições para o efeito, aí residindo, aliás, a razão de ser e o espírito das normas dos art.ºs 293.º, n.º 1, 318.º e 349.º do CPP.
8. Assim, se o juiz se tiver pronunciado “por alto”, sob a égide do art.º 293.º, n.º 1, do CPP, no sentido de inexistência de questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa de que possa, desde logo, conhecer, poderá o mesmo juiz vir, em momento posterior, a conhecer, em concreto, e como que em segunda via, de qualquer questão prévia ou incidental que se tenha escapado à vista dele no anterior momento de saneamento dos autos, visto que a decisão “por alto” ou “tabelar” em causa não pode constituir caso julgado formal quanto às questões “assim apreciadas”.
9. Contudo, se o juiz tiver chegado a conhecer em concreto (e no sentido próprio do termo) alguma questão prévia ou incidental então descoberta dos autos, essa decisão assim feita, logo que transite em julgado, já constitui caso julgado formal no processo em causa, sem que o mesmo juiz possa vir a conhecer de novo da questão anteriormente apreciada, conforme o disposto no art.º 429.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, do Código de Processo Civil de Macau, ex vi do art.º 4.º do CPP.
10. O juiz titular de um processo comum colectivo é o “porta-voz” ou “gestor” do correspondente tribunal colectivo. Assim sendo, nada obsta a que, e na medida em que for permitido por lei, o colégio em que se integra o juiz “porta-voz” venha a decidir definitivamente em modo diverso do “decidido” anteriormente por este, pois tratando-se de um processo que caiba a um tribunal colectivo, é o tribunal colectivo, no seu todo, que está a julgá-lo.
11. Assim, a questão suscitada oficiosamente, em sede do visto dos autos, pelo juiz presidente do tribunal colectivo, de incompetência do tribunal para conhecer exclusivamente de uma questão cível no âmbito de um processo autuado como sendo de natureza penal, pode realmente ser objecto de deliberação e decisão no seio do mesmo colégio em reunião interna para o efeito convocada, sem recurso à audiência de julgamento na presença dos demais sujeitos e intervenientes processuais, já que a procedência dessa questão implica necessariamente a não apreciação da questão então posta pelo Ministério Público na acusação deduzida.
12. Na verdade, a audiência de julgamento tem por escopo original e essencial a produção da prova e a discussão do mérito da causa (cfr. os art.º 318.º, n.º 1, e 319.º, n.º 1, do CPP), e não para discutir qualquer questão de direito que desde logo já tenha condições para poder e dever ser decidida (cfr. o espírito do art.º 294.º, n.º 1, do CPP).
13. Com efeito, insistir na realização da audiência, sabendo de antemão que a acusação não proceda mesmo que se venha a provar a verdade de toda a matéria fáctica nela descrita, é pretender fazer praticar um acto inútil, com dispêndio mormente dos recursos judiciais, do tempo dos sujeitos processuais em geral, e, em especial, das testemunhas convocadas, ao arrepio do “princípio da limitação dos actos” segundo o qual não é lícito realizar no processo actos inúteis, sem poder olvidar, por outro lado, dos efeitos facticamente estigmatizantes a resultar da realização da audiência de julgamento de um arguido em relação a quem já se saiba com antecedência que irá ser absolvido da acusação, por não estar em causa a verificação de nenhum tipo de crime, mas sim tão apenas um eventual litígio de foro cível que como tal escapa à jurisdição do “tribunal penal”, efeitos negativos estes que nem o precioso princípio da presunção da inocência do arguido possa neutralizar.
14. E seja como for, não há nenhuma diferença material a nível do seu valor jurídico, entre uma decisão tomada por um colégio de juízes acerca de uma questão prévia que obste ao conhecimento do mérito da causa, no seio de uma reunião interna entre os seus três membros realizada antes de qualquer marcação da audiência de julgamento, e uma decisão com um mesmo conteúdo e sobre uma mesma questão prévia proferida pelo mesmo colectivo de juízes, no início da audiência de julgamento ou mesmo depois do encerramento da discussão da causa na audiência.
15. Em face do art.º 211.º, n.º 1, do CP, são requisitos do tipo fundamental do crime de burla: ter o agente a intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo; induzir o agente com tal objectivo, astuciosamente, o ofendido em erro ou engano sobre factos; e assim determinar o mesmo ofendido à prática de actos que causem a este, ou a outra pessoa, prejuízos patrimoniais.
16. O elemento astuciosamente, referido no preceito incriminador do art.º 211.º, n.º 1, do CPP, é limitativo em relação ao elemento de dolo específico traduzido na intenção de enriquecimento ilegítimo.
17. O elemento típico enriquecimento ilegítimo exigido no art.º 211.º, n.º 1, do CPP segue o conceito civilístico de enriquecimento sem causa, que tem como requisitos: a) o enriquecimento de alguém; b) o consequente empobrecimento de outrém; c) o nexo causal entre o enriquecimento do primeiro e o empobrecimento do segundo; e d) a falta de causa justificativa do enriquecimento.
18. A exigência, no crime de burla, de que o erro ou engano tenham sido astuciosamente provocados conduz a que a burla por omissão só possa verificar-se quando por parte do agente havia um dever de informação, que não foi cumprido.
19. O sinal entregue pelo promitente-comprador ao promitente-vendedor deve ser imputado na prestação do preço de compra prometida, a ser devida com a celebração do contrato de compra e venda definitivo, nos termos do art.º 436.º, n.º 1, do Código Civil, como um dos efeitos essenciais do contrato prometido de compra e venda, à luz do art.º 869.º, al. c), do mesmo Código Civil.
20. Se o contrato definitivo de compra e venda pode, nos termos do n.º 1 do art.º 870.º do Código Civil, ter por objecto um bem futuro, então o contrato de promessa pode, por maioria da razão, também incidir sobre uma coisa relativamente futura, como objecto.
21. Não existindo qualquer dever legalmente imposto ao promitente-vendedor, ou resultante das concepções dominantes no comércio jurídico de promessa de compra e venda de imóveis, ou mesmo das cláusulas constantes do contrato de promessa em causa, no sentido de ter que prestar activamente informação ou esclarecimento ao promitente-comprador sobre o actual estado registral da fracção autónoma prometida vender, a mera omissão de informação ou de esclarecimento sobre a situação registral do mesmo bem imóvel pelo promitente-vendedor não configura uma ofensa à boa fé, pelo que o posterior conhecimento pelo promitente-comprador da situação jurídica registral do bem imóvel que não lhe agrade não pode tornar aquele silêncio do promitente-vendedor num engano provocado astuciosamente a ponto de o fazer responsabilizar pelo crime de burla.
22. Só se pode falar da intenção criminosa quando se verifique já um delito criminoso no plano objectivo, daí que uma mera “intenção criminosa” de burla sem suporte em nenhum acto tido pela lei penal como crime não constitui crime, por força nomeadamente do princípio nullum crimen sine lege.
- Crime de “maus tratos a menor” (artº 146º do C.P.M.).
- Suspensão da execução da pena.
1. O artigo 48º do Código Penal de Macau faculta ao juiz julgador a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido quando:
- a pena de prisão aplicada o tenha sido em medida não superior a três (3) anos; e,
- conclua que a simples censura do facto e ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (cfr. artº 40º), isto, tendo em conta a personalidade do agente, as condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste.
2. Assim, e não obstante ser verdade que o instituto de suspensão da execução da pena se baseia numa “relação de confiança entre o Tribunal e o condenado” – o Tribunal convence-se, em juízo de prognose favorável, que o arguido, sentindo a condenação, é capaz de passar a conduzir a sua vida de modo lícito e adequado, acreditando ainda que o mesmo posto perante a censura do facto e a ameaça da pena é capaz de se afastar da criminalidade – dúvidas não há que, tal não basta para se darem por satisfeitos (todos) os necessários requisitos para que seja decretada a suspensão da execução da pena.
De facto, mesmo sendo favorável o prognóstico relativamente ao delinquente, apreciado à luz de considerações exclusivas da execução da prisão, não deverá ser decretada a suspensão se a ela se opuseram as necessidades de reprovação e prevenção do crime.
- Crime de passagem do cartão de crédito falso
- Vício do Acórdão
- Insuficiência da matéria de facto provada
- Erro notório na apreciação de prova
- Contradição insanável na fundamentação
- Fundamentação do acórdão
- Crime continuado
- Suspensão de execução de pena de prisão
1. O erro notório na apreciação da prova só ocorreu quando o Tribunal errou ao considerar determinado facto como assente, que tenha retirado de um facto todo como provado uma conclusão logicamente inaceitável ou, que tenha decidido contra o que ficou provado ou não provado.
2. O vício de contradição insanável da fundamentação só se verifica quando se constata qualquer incompatibilidade, não ultrapassável da própria decisão do Tribunal, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
3. O vício de insuficiência da matéria de facto provada só existe quando o Tribunal não deu como provados todos os factos pertinentes à subsunção no preceito penal incriminador por falta de apuramento de matéria.
4. São completamente diferentes: um diz respeito à nulidade pelo vício formal do Acórdão, e outro relaciona com os vícios, ocorridos no julgamento de matéria de facto, não tendo como consequência a nulidade do Acórdão nos termos do artigo 360º do CPP, mas sim a nulidade do julgamento e a sua repetição, ou pelo Tribunal a quo ou pelo Tribunal ad quem, por via de renovação de prova.
5. 2. Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
6. O artigo 48º do CPM confere ao julgador o poder-dever de suspender a execução da pena de prisão quando a pena de prisão aplicada o tenha sido em medida não superior a três anos e conclua que a simples censura do facto e ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, isto, tendo em conta a personalidade do agente, as condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste.
